O Senhor deseja que incentivemos o doente aflito e desesperado a contar com Sua força

Que ensinamento quer Deus nos transmitir através da prática da unção de enfermos (Tiago 5:14 e 15)? Passados mais de dois mil anos, ainda deveriamos continuar cumprindo esse ritual? Em caso afirmativo, por quê? Com o passar do tempo, essa cerimônia deixou de ser considerada caelestis medicina (cura celestial) de doenças para ser considerada um rito espiritual que deve ser praticado apenas em alguém prestes a morrer. Por quê?

Há, na Bíblia, diferença entre unção sagrada e mundana? O hebraico1 usa basicamente dois verbos traduzidos como unção: mashah e suk (embora haja algumas referências à unção em que essas palavras não aparecem: II Crô. 16:14; Isa. 1:6; 61:3; Jer. 50:2; 51:8). No Antigo Testamento, esses dois verbos expressam dois aspectos diferentes da unção. Mashah aparece 130 vezes contra escassas 12 vezes de suk. Os dois termos expressam diferentes conotações, com apenas quatro exceções (II Sam. 1:21; Isa. 21:5; Jer. 22:14; Amós 6:6). Mashah sempre se refere às atividades rituais e formais, como uma inauguração, dedicação ou consagração. Suk diz respeito ao uso de ungüen-to medicinal ou cosmético. O uso mais freqüente da raiz verbal suk está relacionado à aplicação de ungüento ou loção corporal cosmética, usualmente após o banho (Êxo. 30:32; Juí. 3:24; Rute 3:3; II Sam. 12:20; 14:2; II Crôn. 28:15; Dan. 10:3). As referências de II Crônicas 28:15 e Ezequiel 16:9 sugerem um possível uso medicinal de loção.

Assim como no hebraico, no idioma grego existem dois termos distintos para unção: Chrio/chrisma e aleifo. No Novo Testamento, chrio ocorre apenas cinco vezes, e chrisma aparece somente três vezes, em I João 2:20; 2:27 (duas vezes). Os termos chrio/chrisma são usados metaforicamente para se referir à decida do Espírito Santo, o que implica consagração. Em quatro ocorrências, a referência é à unção de Jesus por Deus o Pai (Luc. 4:18; Atos 4:27; 10:38; Heb. 1:9). O pano de fundo desses textos é, provavelmente, o batismo de Jesus, no qual Ele recebe simbolicamente a unção real e sacerdotal, que O constitui Cristo.

Na Septuaginta, o termo aleifo2 normalmente é usado para traduzir o hebraico suk em seu sentido literal de aplicação de loção para cuidado corporal após o banho. Apenas ocacionalmente o termo é sinônimo de chrio, quando é usado para traduzir o hebraico mashah (unção com significado simbólico). São os casos de Gênesis 31:13, onde uma coluna é ungida, e Números 3:3, durante uma consagração sacerdotal.

No Novo Testamento, aleifo ocorre oito vezes, nos quatro evangelhos e na epístola de Tiago. Aqui o termo é usado exclusivamente para designar o ato físico de ungir pessoas com as seguintes finalidades: loção corporal (Mat. 6:17); sinal de hospitalidade (Luc. 7:38 e 46; João 11:2; 12:3); honrar o corpo de Jesus (Mar. 16:1); e cuidado de doente (Mar. 6:13; Tiago 5:14). H. Schlier levanta uma questão quanto à interpretação desses textos,ao dizer que, para compreendê-los, necessitamos analisar o significado dessa unção com propósito de cura, no helenismo e no judaísmo. Sua pesquisa apresenta evidência para o uso medicinal do óleo no judaísmo helenista para cura e alívio de incômodos como problemas das costas, desordens cutâneas, dor de cabeça, feridas e outros.

Medicina e magia

Junto com a utilização medicinal, também usava-se óleo como remédio mágico, particularmente na prática de exorcismo. O mundo antigo estabelecera relacionamento entre doença e pecado.4 O conceito de doença estava diretamente associado à presença demoníaca. Isso esclarece o que existe por trás do uso do óleo no exorcismo. De acordo com Schlier, os valores medicinais e exorcistas do óleo são encontrados também na cristandade. Ele argumenta que os cristãos também atribuíram essa relação ao óleo santo, documentando suas palavras com referências a Tertuliano, Paládio, e uma citação de Atos de Tomé, na qual Jesus é solicitado a ungir pessoas endemoninhadas.

Sobre a base de considerações filológicas, podemos afirmar que a Bíblia geralmente distingue entre dois tipos de unção, ao usar termos distintos. No conceito de unção para consagração, os escritores bíblicos usam mashah e chrio/chrisma. Para propósitos terapêuticos, cosméticos e exorcistas, eles usam suk e aleifo. Tendo examinado a terminologia para unção, estamos prontos a desvendar o significado de Tiago 5:13-18.

Compreensão exegética

Parece-nos que há uma estrutura concêntrica em Tiago 5:13-18. Deveríamos estudar essa passagem no seguinte formato: versos 13,17,18; 14,16 (últ. parte); 15 (prim. parte), 16 (seg. parte); 15 (últ. parte), 16 (prim. parte); 15 (seg. parte).

Verso 13: Está alguém entre vós sofrendo? Faça oração. Está alguém alegre? Cante louvores. 17: Elias era homem semelhante a nós, sujeito aos mesmos sentimentos, e orou, com instância para que não chovesse sobre a terra, e, por três a-nos e seis meses, não choveu. 18: E o-rou, de novo, e o céu deu chuva, e a terra fez germinar seus frutos.

Freqüentemente, Tiago se refere aos que sofrem (1:2, 12 e 14; 2:6 e 15; 3:14-16; 4:7; 5:6). Agora, no verso 13, ele faz referência a outra categoria de pessoas: aquelas que estão bem (eutsumei). O escritor da epístola convida alguns a orar e outros a cantar louvores (psalleto), ou melhor, a tocar um instrumento de cordas.5 Oração e canto estão relacionados aos conceitos de sofrimento e alegria.6 Orar e cantar são demonstrações de uma fé perseverante, amadurecida, que compreende que o centro do cristianismo é viver no presente a promessa do que será plenamente realizado no futuro. “Ao termos orado pela restauração de um enfermo, seja qual for o desenlace do caso, não percamos a fé em Deus.”7 Em Lucas 18:1 e em I Tess. 5:17, somos encorajados a perseverar em oração independentemente do que possa acontecer.

Elias é apresentado como modelo. Ele era humano como nós, capaz de ter depressão e alegria. Também era homem de oração. A declaração literal de que ele “orou com instância para que não chovesse” não é achada na passagem de I Reis. Como deveríamos compreender esse texto? Talvez a idéia seja esta: Quer estejamos tristes ou felizes, devemos orar zelosamente, como o fazendeiro espera os frutos, ou como a gestante espera o nascimento do bebê. Foi assim que Elias orou. Embora sofresse, vendo o estado de seu povo (I Reis 18:21 e 22), ele continuou orando e agindo, até que os israelitas professassem fé em Jeová (I Reis 18:39). Satisfeito com a resposta, o profeta não deixou de orar (v. 42), para que a fome cessasse e Israel se alegrasse. Em resposta, a chuva caiu.

Verso 14: Está alguém entre vós do-ente? Chame os presbíteros da igreja, e estes façam oração sobre ele, ungindo-O com óleo, em nome do Senhor. 16 (últ. parte): Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo.

É o doente quem busca ajuda. Assim, o texto ensina uma ação da pessoa que está sofrendo e está consciente de seu estado. Estamos tratando aqui com alguém que está bem desperto quanto à sua condição, possibilidades de cura bem como dos riscos presentes. É claro que isso está em contraste com a prática de ungir alguém inconsciente no leito de morte. Tiago não está descrevendo esse tipo de situação.8

A pessoa que está doente deve chamar os anciãos (presbíteros) da igreja. Esse termo, sempre usado no plural no Novo Testamento, se refere àqueles que lideram igrejas locais. Eles tinham, e têm, um papel que herdaram do Antigo Testamento, onde os “anciãos” em muitos casos eram pessoas honradas e de influência, que exerciam função pública.9

O corpo de anciãos deve agir orando poderosamente. Ou seja, devem fazer oração poderosa e eficaz (energoumene), não apenas oração “fervorosa”. Os falsos profetas de Baal que enfrentaram Elias no Monte Carmelo não eram faltos de zelo e fervor. Se pensarmos apenas em oração “fervorosa”, entenderemos mal o texto e pensaremos que a eficácia da oração está relacionada à força da pessoa que a oferece. Tal com-preensão também poderia nos levar a ver a oração como uma fórmula quase mágica. Na verdade, nossas orações deveriam ser de intercessão; não uma ordem exigindo respostas.

A oração dos anciãos é efetiva no sentido de que eles oram e ungem o doente (aleipsantes). O texto sugere u-ma ação enérgica em favor do enfermo necessitado de ajuda. O que é necessário é fé que opera por amor (Gál. 5:6). O uso do verbo aleifo leva-nos a pensar nos anciãos da igreja como um tipo de paramédicos, pronto a ministrar imediato cuidado, apoiados por fé operante e oração. Vimos anteriormente as qualidades terapêuticas, cosméticas e exorcistas atribuídas ao óleo. Quem deveria ser capaz de administrar tal remédio, se não as pessoas mais respeitadas na comunidade? Na verdade, um cristão jamais deveria ir a um médico pagão que invoque sobre si todo tipo de espírito para realizar cura.

Oração eficaz pode fazer muito, mas não tudo. Quando oramos pelo doente, deveriamos lembrar que não sabemos orar como convém (Rom. 8:26). Ao lado disso, deveriamos ter em mente que o inescrutável amor de Deus é infinitamente superior ao nosso.10

O justo é alguém justificado pela graça de Deus. Ele aceita orar pelo doente, confiante nas promessas divinas, a despeito das aparências. E continuará crendo nessas promessas, independentemente do resultado de suas orações, porque ele sabe que nem todos receberão a cura. Esse fato, salientado por Ellen White, deveria eliminar completamente a idéia de que a ausência de cura deve ser atribuída ao doente ou à pessoa que ora em seu favor.11

Em todo caso, o holofote deve sempre focalizar o Senhor. Orar em nome do Senhor significa reconhecer que a oração e o ato sucessivo, embora importantes, serão apenas um instrumento que certifica nossa cooperação com o divino e soberano Médico.

15 (prim. parte): E a oração da fé salvará o enfermo… 16 (seg. parte): Orai uns pelos outros, para serdes cura-dos. Qual é o conceito de fé que Tiago tem em mente? Fé mística? Misteriosa? Podemos encontrar a resposta em outro texto de sua epístola – Tiago 2:15-26. Para o autor, fé é algo que opera através de alguém, não apenas que esse alguém possui (2:18). Fé e religião têm uma demonstração prática (2:27). Nosso desejo de compreender a frase “a oração da fé salvará o enfermo” é satisfeito em Tiago 2:14, onde há uma construção idêntica: “Pode… semelhante fé salvá-lo?”

Essa questão está imersa no contexto do tratamento de fé prática. De acordo com Kari Barth, oração é aceitar o convite de Deus para participar em Sua obra e Seu governo.12 Não devemos Lhe pedir que nos dê o que desejamos; devemos buscar compreender Seus planos e cumpri-los. Orar a Deus é um sinal importante de nossa aceitação dos Seus planos. Será Ele quem intervirá, de acordo com Sua vontade e Seus planos. É o Senhor, não a oração nem o óleo, que salva.

Tiago não usa o verbo “curar”, mas o verbo “salvar”, no tempo futuro (sosei). Esse verbo sempre aparece no Novo Testamento, em casos de recuperação milagrosa de saúde (Mat. 9:22; Mar. 6:56; Atos 3:7; 14:8-10). O contexto de cura no qual o encontramos e o fato de que curas milagrosas são parte de sua ordem semântica nos impedem de ver, aqui, uma referência à salvação futura, no retomo de Cristo.

15 (últ. parte): se houver cometido pe-cados, ser-lhe-ão perdoados. 16 (prim. parte): Confessai, pois, os vossos peca-dos uns aos outros… Os santos do Antigo Testamento deixavam suas enfermidades diante de Deus. A Ele ofereciam suas súplicas (Sal. 38). Era de Deus que recebiam cura (Sal. 6:4). De acordo com a experiência dos israelitas, a doença é ligada ao pecado e ao mal, de modo misterioso. Porém, a fidelidade e obediência a Deus produzem vida (Êxo. 15:26).

O mundo antigo relacionava doença e pecado. Não estamos discutindo a-qui a questão do pecado como transgressão da lei como causa ou efeito. A Bíblia aceita essa conexão, pelo menos no sentido de que o mal é oposto ao plano original de Deus para os seres humanos. Assim, sofrimento e morte devem ser vistos como conseqüências do pecado (Gên. 3:16-19). Esse foi o contexto no qual Jesus viveu, embora não partilhasse dele (João 9:2).

A partícula condicional “se” (kan) elimina de uma vez por todas o relacionamento de casualidade entre pecado e doença. Para Tiago, pecados indicam transgressões isoladas, em particular as que geram morte ( Tiago 1:15; 5:20).13 A confissão de pecados também possui efeito psicossomático. Preocupações sobre nós mesmos enfraquecem-nos e aumentam as chances de doença. Se tivermos atitude positiva, confiante, nossas chances de melhora serão maiores. O aspecto psicossomático não deveria ser subestimado, embora até pouco tempo atrás se pensasse que era relevante apenas em males tais como úlceras.

15 (seg. parte): e o Senhor o levantará. Esse verso é crucial, embora não esteja no centro estrutural da passagem. Tudo o que está implícito nos outros versos é tomado explícito aqui. O doente está prostrado em seu leito; os anciãos oram em seu favor, e o Senhor o levanta. Ellen White escreve: “NEle há bálsamo curativo para toda doença, poder restaurador para toda enfermidade.”14 O poder da cura está no Senhor, não na oração, muito menos no óleo empregado. Ele deseja que incentivemos o doente aflito e desesperado a contar com Sua força.

O texto de Tiago enfatiza mais o Curador que os instrumentos usados para restabelecer o doente. O Senhor é Aquele sobre quem o holofote brilha nesse texto. O emprego do verbo aleifo pressupõe (embora não estabeleça explicitamente) que aqui temos a utilização não religiosa do óleo, ou seja, como simples loção medicinal. Essa breve investigação me permite ver com outros olhos a menção feita por Tiago dois mil anos atrás. O escritor bíblico parece promover mais um estilo de vida que um sacramento; um modo de ver a vida, mais que um ritual. Tiago não é místico. Ele nos anima e exorta em direção a um ato que toma visível nossa fé.

Davide Mozzato, pastor adventista em Florença, Itália

Referências:

1 Willem A. VanGemeren, New lntemational Dictionary of Old Testament Theology and Exegesis, Zondervan Reference, versão software 26/03/2001.

2 Coll in Brown, New lntemational Dictionary of New Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan Corporation, versão software 22/02/99.

3 H. Schlier, Theological Dictionary of the New Testament, versão italiana, págs. 617-626.

4 G. Boggio, Schede Bibliche Pastorali (Bologna: Dehoniane, 1989), págs. 3998-4008.

5 Simon, Une Ethique de la Sagese (Geneve: Labor et Fides, 1961), pág. 176.

6 SDABC, vol. 7, pág. 540.

7 Ellen G. White, A Ciência do Bom Viver, pág. 233.

8 No verso 15, o autor relaciona a pessoa doente com a palavra kamontta, que significa, literalmente, “desanimado, desencorajado” (Heb. 12:3).

9 Louis Simon, Op. Cit., pág. 180.

10 Ellen G. White, Op. Cit., pág. 229.

11 Ibidem, pág. 230.

12 Louis Simon, Op. Cit., pág. 182.

13 G. Boggio, Op. Cit., pág. 4007.

14 Ellen G. White, Op. Cit., pág. 226.