A relevância do princípio soli Deo gloria para a missão da igreja no tempo do fim

Um resumo das crenças básicas das igrejas surgidas durante a Reforma Protestante pode ser encontrado nos “cinco solas”, as cinco frases latinas que identificam o movimento. Cada uma delas expressa uma ideia que se contrapõe a aspectos importantes da doutrina católica romana.

Há quem pergunte se essas expressões, assim como as conhecemos, foram usadas pelos reformadores dos séculos 16 e 17. A esse respeito, Scott Clark afirma que essas “ideias estavam presentes desde a etapa mais remota da Reforma; contudo, as frases atuais se desenvolveram com o tempo”.1 As expressões mais antigas são sola gratia (somente a graça), sola fide (somente a fé) e sola Scriptura (somente a Escritura).2 Embora esses três “solas” iniciais apareçam em vários textos protestantes do século 16,3 eles não foram usados juntos até o início do século 20, quando o teólogo luterano Theodore Engelder os sistematizou em seu artigo publicado em 1916.4 Com o tempo, foram somadas a essa tríade da teologia protestante outras duas famosas frases latinas, solus Christus (somente Cristo) e soli Deo gloria (glória somente a Deus), ideias que também existiam entre os reformadores do século 16.5

Neste artigo tratarei do significado do último dos “solas”, soli Deo gloria. Em primeiro lugar, abordarei os motivos que o originaram; em seguida, revisarei o que a Bíblia diz a respeito do tema; finalmente, farei uma reflexão acerca de como ele se relaciona com o último chamado de Deus ao mundo.

Soli Deo gloria em debate

Como foi dito, o propósito dos “cinco solas” foi contrastar os ensinamentos dos reformadores com as doutrinas da Igreja Católica. Assim, soli Deo gloria tinha o propósito de mostrar que toda glória devia ser dada unicamente a Deus e não aos homens. Evidentemente, nenhum católico romano se oporia a admitir isso; entretanto, para os reformadores, o conceito também implicava excluir do culto a reverência dada aos santos, a Maria e aos papas.

Na atualidade, a partir da compreensão católica, afirma-se que a Bíblia apresenta versículos que mostram Deus compartilhando Sua glória com os seres humanos (Rm 8:17; 2Ts 2:13, 14). Assim, conclui que a interpretação protestante está errada quando busca ser extremamente excludente.6 Contudo, Peter Ditzel afirma que soli Deo gloria não significa que ninguém possa compartilhar a glória de Deus, mas que Deus “é o único que merece a glória. Não granjeamos a glória que Ele nos dá. Não a merecemos. É dom da graça de Deus que Ele nos dá porque estamos em Seu Filho, não porque a temos conquistado”.7 Também significa que todos os méritos pela salvação do homem são unicamente Dele; por isso, todo tipo de obras humanas e méritos próprios são excluídos.

Desde o início, Lutero rejeitou a teologia sacramental romana porque via que ela favorecia a salvação pelas obras e justificava práticas abusivas à fé, como a venda de indulgências, que tanto criticou em suas 95 teses. Desde então, os reformadores buscaram resgatar a singela doutrina da salvação pela graça, mediante a fé, independentemente dos méritos humanos. Entre as respostas da Igreja Católica à Reforma estão as declarações do Concílio de Trento (1545-1563), que enfatizaram que, embora a salvação seja uma iniciativa divina, não basta contar unicamente com a fé para alcançá-la. As afirmações a seguir ilustram esse conceito.

“Cânon 9: Se alguém disser que o ímpio é justificado somente pela fé, entendendo que nada mais se exige como cooperação para conseguir a graça da justificação, e que não é necessário por parte alguma que ele se prepare e disponha pela ação da sua vontade – seja excomungado.”

“Cânon 12: Se alguém disser que a fé que justifica não é outra coisa, senão uma confiança na divina misericórdia, que perdoa os pecados por causa de Cristo ou que é só por esta confiança que somos justificados – seja excomungado.”8

É evidente que, para Roma, não se podia ser justificado unicamente pela fé, já que se requeria algo mais. Em harmonia com as asserções anteriores, o mesmo concílio tridentino declarou que a justificação “é não somente a remissão dos pecados [Cânon 11], mas, ao mesmo tempo, a santificação e renovação do homem interior”.9 Dessa maneira, a igreja deixou claro que as obras eram um elemento indispensável que se somava aos méritos de Cristo para que o homem pudesse chegar ao Céu.
Roma não via que esse entendimento sobre a justificação, como expressava o concílio, revogava “de algum modo a glória de Deus ou os merecimentos de nosso Senhor Jesus Cristo”, mas cria que assim se ilustrava “a verdade da nossa fé e, enfim, a glória de Deus e de Jesus Cristo”.10

Obviamente, os reformadores ligados ao princípio sola Scriptura não podiam aceitar essa ideia de justificação, não somente porque violava os princípios de sola gratia e sola fide, mas também porque negava o verdadeiro soli Deo gloria; uma vez que, ao incorporar obras meritórias ao plano da redenção, a glória da salvação já não era um mérito único e exclusivo de Deus, mas também humano.

Perspectiva bíblica

Depois de considerar algumas razões históricas para o soli Deo gloria dos reformadores, apresento uma síntese com as principais ideias do que a Bíblia diz a respeito.

No Antigo Testamento, a palavra “glória”, na maioria das vezes, é a tradução do termo hebraico kabod, que possui o sentido básico de “ser pesado”,11 “algo pesado que dá importância”,12 e, portanto, pode ser entendido como “‘estima’, ‘honor’, ‘honra’, ‘admiração’ (Dt 5:24; Nm 24:11)”.13 No Novo Testamento, geralmente é a tradução da palavra grega doxa, que transmite um significado semelhante ao do Antigo Testamento,14 sem descartar o sentido abstrato de “poder”,15 “reputação, prestígio”.16

Há várias passagens das Escrituras em que a palavra “glória” é utilizada para falar das manifestações e formas majestosas pelas quais Deus Se revela (Êx 16:10; Ez 1:28; 10:4; Is 6:13). Nesse sentido, Davi escreveu: “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das Suas mãos” (Sl 19:1); a criação, portanto, é uma das maiores evidências de Seu poder infinito que O distingue dos falsos deuses (Sl 96:5; Jr 10:10-12; 1Co 8:6, 7). Em Isaías 43:7, o profeta afirma que o ser humano também foi criado para glória de Deus. Por esse motivo, temos virtudes como amor, misericórdia e criatividade, que não são nossas em si mesmas, mas que refletem os atributos comunicáveis de Deus e mostram como Ele é em uma escala muito maior e mais perfeita. Em outras palavras, tudo procede Dele e Ele é a fonte de todas as coisas. Assim, o Senhor tem o direito absoluto de receber todo louvor, honra e glória. Essa verdade está evidente nas doxologias neotestamentárias, quando dizem: “Porque Dele, e por meio Dele, e para Ele são todas as coisas. A Ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Rm 11:36; cf. 16:27; Gl 1:5; Fl 4:20).

John Piper, baseado na declaração bíblica que diz: “Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos; toda a terra está cheia da Sua glória” (Is 6:3), descreve a glória divina de forma poética ao apresentá-la como “a santidade de Deus posta em uma tela”.17 Essa conexão entre Sua santidade e Sua glória agrega uma visão adicional, porque indica que Ele é separado de tudo aquilo que é comum. O Senhor é único, de infinito valor e poder. Portanto, “dar glória a Deus” ou “glorificar a Deus” significa louvá-Lo, exaltá-Lo, reconhecer Sua grandeza e perfeição, reconhecê-Lo e adorá-Lo como único Deus verdadeiro (Sl 29:1, 2; 96:1-3).

Compreender esse aspecto da glória divina expõe o proceder pecaminoso da idolatria, seja por meio da veneração de ídolos, da natureza ou do próprio homem, pois em lugar de glorificar o supremo Criador, a honra é direcionada ao objeto criado, que não tem glória em si mesmo, mas que reflete palidamente o Todo-poderoso. O Senhor afirma: “a Minha glória, pois, não a darei a outrem, nem a Minha honra, às imagens de escultura” (Is 42:8). Entretanto, esse é precisamente o tipo de pecado que a humanidade rebelde tem cometido de um jeito ou de outro, pois “tendo conhecimento de Deus, não O glorificaram como Deus, nem lhe deram graças […]. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis” (Rm ١:٢١-٢٣). Assim, em uma época de tanto materialismo, secularismo e várias outras correntes de pensamento que excluem a Deus e fazem com que o homem acredite ser o centro de tudo, esses versículos nos lembram de que não fomos criados para glorificar a nós mesmos, mas que existimos para glorificar a Deus.

Jesus glorificou Seu Pai ao viver uma vida santa e de perfeita obediência (Jo 17:4). De Seus seguidores, Ele disse: “Nisto é glorificado Meu Pai, em que deis muito fruto; e assim vos tornareis Meus discípulos” (Jo 15:8). Também afirmou que os crentes devem permitir que sua “luz brilhe” por meio de suas “boas obras”, para que todos “glorifiquem a vosso Pai que está nos céus” (Mt 5:16). Isso quer dizer que quando alguém chega a compreender quão santo e majestoso é o Senhor, ocorrem duas coisas. Em primeiro lugar, cada aspecto de sua vida é dedicado a agradar a Deus: “Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (1Co 10:31). Na sequência, ele verdadeiramente entende sua humilde condição, de tal maneira que não há mais espaço para soberba ou orgulho (1Sm 2:3; Pv 6:16, 17; Tg 4:6). A esse respeito, Ellen White afirmou: “Os que possuem mais profunda experiência nas coisas de Deus são os que mais se afastam do orgulho e da presunção. Como tenham elevada concepção da glória de Deus, sentem que lhes é demasiado honroso ocupar o mais humilde lugar em Seu serviço.”18

Soli Deo gloria e o tempo do fim

Além de tudo que foi dito até aqui, não há dúvida de que dentro de um panorama missiológico e escatológico, um dos textos que com mais seriedade nos convida a glorificar a Deus se encontra em Apocalipse 14:7: “Temei a Deus e dai-Lhe glória, pois é chegada a hora do Seu juízo.” Esse versículo tem uma importância especial para os adventistas do sétimo dia, porque é parte da tríplice mensagem angélica que o Senhor lhes deu para proclamar imediatamente antes da segunda vinda de Cristo (Ap 14:14, 15). É importante destacar que os adventistas sempre se consideraram herdeiros legítimos da Reforma e se alegram pelo esforço que esta fez para devolver a Bíblia às mãos do povo e restaurar a grande verdade da justificação pela fé. Contudo, a Igreja Adventista também compreende que a reforma do cristianismo não deve ser vista como um evento do passado, mas como um processo que não se pode deter e que deve continuar até o fim. Essa é a razão que justifica a existência da denominação, isto é, Deus levantou o adventismo como um movimento reformador, para chamar atenção do mundo às verdades bíblicas que se perderam nos tempos de obscurantismo religioso e que a Reforma Protestante não conseguiu restaurar.

Dentro desse contexto, o evangelho pregado pelo primeiro anjo de Apocalipse 14 é “eterno” (v. 6) porque nunca existiu “outro” (Gl 1:6-9), posto que as pessoas de todas as épocas sempre foram salvas por depositar a fé no Cordeiro de Deus (Hb 4:2; Jo 1:29; 3:16; 1Pe 1:18-20). Entretanto, a resposta daqueles que recebem esse “evangelho eterno” se manifesta19 de duas maneiras distintas (v. 7):

“Temei a Deus e dai-Lhe glória”. Deus está convidando o mundo para reverenciá-Lo como Soberano
(1Ts 1:9, 10; 1Jo 2:15-17), pois é “chegada a hora do Seu juízo”, o que indica que o grande Juiz começou Seu julgamento nas cortes celestiais (Dn 7:9, 10). Portanto, vivemos em um tempo de solene preparação.

“Adorai Aquele que fez o céu, e a terra…”, o que implica adorar ao verdadeiro Deus como Criador. Esse é o ponto em que se destaca a observância do sábado, uma vez que é o único mandamento nas Escrituras cuja obediência aponta para o reconhecimento de Deus como Criador. Deve-se notar que existe um paralelismo muito claro entre as palavras do primeiro anjo de Apocalipse 14:7 e a razão pela qual o Senhor ordena guardar o sábado em Êxodo 20: “porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou” (Ex 20:11).20 Assim, esse anjo mostra que há uma estreita relação entre glorificar a Deus e guardar o verdadeiro dia de repouso. Embora o mundo cristão tenha negligenciado essa verdade, as Escrituras mostram que o povo de Deus nos últimos dias se caracterizaria não somente por guardar “a fé em Jesus”, mas também “os mandamentos de Deus” (Ap 14:12).

Soli Deo gloria continua denunciando os erros religiosos da igreja papal, ao mesmo tempo em que alerta os crentes de pecados mais sutis como a autoexaltação e o orgulho.

Conclusão

Sem dúvida, neste aniversário de 500 anos da Reforma Protestante, soli Deo gloria continua denunciando os erros religiosos da igreja papal, ao mesmo tempo em que alerta os crentes de pecados mais sutis como a autoexaltação e o orgulho. Além disso, é uma lembrança do chamado para glorificar a Deus que está contido na tríplice mensagem angélica (Ap 14:6, 7). Essa mensagem tem como propósito preparar o mundo para o advento do grande Rei dos reis e Senhor dos senhores, o único que merece toda “honra, glória e poder” (Ap 5:13). 

Referências

  • 1 R. Scott Cark, “De dónde provienen las ‘Solas’ de la Reforma?”, <https://goo.gl/r7y6uM>.
  • 2 Ibid.
  • 3 Iglesia Evangélica en Alemania, Justificación y Libertad: Celebrando 500 Años de la Reforma en el 2017 (Hannover: Evangelische Kirche in Deutschland, 2015), p. 30.
  • 4 Theodore Engelder, “The Three Principles of Reformation: Sola Scriptura, Sola Gratia, Sola Fide”, em Commemorative Essays on the Reformation of Dr. Martin Luther and the Blessed Results, ed. W. H. T. Dau (St. Louis, MO: Concordia, 1916), p. 97-100.
  • 5 Com respeito a soli Deo gloria, pode-se ver a ideia em João Calvino, Institutas da Religião Cristã, III, 13, 2.
  • Tim A. Troutman, “Soli Deo Gloria: A Catholic Perspective”, <https://goo.gl/hqXfvj>.
  • 7 Peter Ditzel, “The End of Soli Deo Gloria: ‘Glory to God Alone’”, <https://goo.gl/GtNqLd>.
  • 8 Concílio Ecumênico de Trento, “Cânones sobre a Justificação”, <https://goo.gl/3cspNw>.
  • 9 Ibid., Sessão VI, Capítulo 7.
  • 10 Ibid., Cânon 33.
  • 11 Willen A. VanGemeren, ed., New International Dictionary of Old Testament Theology and Exegesis, 5 vols. (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1997), 2:577.
  • 12 Gerhard Kittel e Gerhard Friedrich, eds., Compendio de Diccionario Teológico del Nuevo Testamento (Grand Rapids, MI: Libros Desafío, 2002), p. 179.
  • 13 Siegfried H. Horn, Diccionario Bíblico Adventista del Séptimo Día (Buenos Aires: Aces, 1995), p. 495.
  • 14 Ibid., p. 496.
  • 15 Kittel, Compendio, p. 181.
  • 16 Alfonso Ropero Berzosa, ed., Gran Diccionario Enciclopédico de la Biblia (Barcelona: CLIE, 2013), p. 1.020.
  • 17 John Piper, “Soli Deo Gloria”, <https://goo.gl/nkeuRu>.
  • 18 Ellen G. White. Obreiros Evangélicos, 5ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2014), p. 142.
  • 19 Na mensagem do segundo e do terceiro anjo se destacam outras respostas.
  • 20 John T. Baldwin, “Revelation 14:7: An Angel’s Worldview”, em Creation, Catastrophe and Calvary, ed. John Templeton Baldwin (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000), p. 19.