cerimônia do lava-pés nos lembra da humanidade de Jesus, que rejeita todas as formas de força ou retaliação

A cerimônia da humildade não é praticada por todas as religiões cristãs em nossos dias. Uma razão para isso pode ser o fato de que somente o evangelista João escreveu sobre o ritual do lava-pés em um contexto litúrgico. As outras duas vezes no Novo Testamento em que tal cerimônia é mencionada (Lc 7:44; 1Tm 5:10) se referem à hospitalidade normal. Outra possível razão é que, por causa da vasta diferença cultural entre o tempo de Jesus e o nosso, muitos acham difícil realizá-la.

Evidentemente, isso é lamentável. Estamos perdendo algo muito especial, com a indiferença generalizada para com a cerimônia da humildade, que é um símbolo poderoso de tudo o que Jesus, depois de cear com os discípulos, iria sofrer na cruz.

Esboço do capítulo

João inicia o relato com as seguintes palavras: “Ora, antes da Festa da Páscoa, sabendo Jesus que era chegada a Sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os Seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. Durante a ceia, tendo já o diabo posto no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, que traísse a Jesus, sabendo este que o Pai tudo confiara às Suas mãos, e que Ele viera de Deus, e voltava para Deus” (Jo 13:1-3).

Após essa introdução, a história se desdobra em três partes: A primeira descreve o que Jesus fez (v. 4-11), incluindo o diálogo entre Jesus e Pedro, no qual João descreve o discípulo como não tendo captado o propósito da ação de Jesus. Por três vezes, Pedro reagiu à iniciativa de Jesus em lhe lavar os pés, e por três vezes, Jesus declarou imprópria a reação do discípulo.

A segunda parte começa com uma referência ao que acabara de acontecer: “Depois de lhes ter lavado os pés” (v. 12). Então, após uma detalhada introdução, o texto apresenta um profundo sermão de Jesus (v. 12-20). Parece ser um convite para que os leitores prestem atenção às explanações que irão revelar o significado do capítulo.

Finalmente, a terceira parte inicia fazendo referência ao que Jesus falou: “Ditas estas coisas” (v. 21). Então, o texto retorna para a descrição das ações de Jesus, as quais incluem “um pedaço de pão molhado” que Ele deu a Judas (v. 21-29).

O que Jesus fez

Na primeira e na terceira seção da narrativa, nos deparamos com a cerimônia do lava-pés que, em si mesma, é cheia de significado.

Naqueles tempos, o lava-pés era um item comum dentro da hospitalidade praticada naquela cultura. Esse gesto era realizado envolvendo convidados queridos, a fim de indicar que eles eram bem-vindos (Lc 7:44). O lava-pés era um serviço frequentemente realizado por alguém de condição social inferior, tais como escravos ou filhas mais jovens da família anfitriã. Porém, não muito raramente, a própria dona da casa (1Tm 5:10) e até o chefe da família faziam esse trabalho, com o intuito de expressar especial honra ao convidado. Crianças faziam isso para os pais, e estudantes, para os professores. Nesses casos, a cerimônia demonstrava o serviço de amor (Lc 7:44-47).

O Mestre Se curvou para servir Seus discípulos, humilhou-Se, porque os amava. Assim, praticou um ato que era precursor e símbolo da humilhação que Ele enfrentaria em seguida: a cruz! Um fato ainda mais emocionante foi que Ele Se volveu com coração amorável para aquele discípulo enredado por Satanás, Judas Iscariotes.

O significado de tudo

Pelo fato de que, neste capítulo, João introduz o leitor à paixão de Cristo, devemos ver a cerimônia do lava-pés sob esse ângulo. O que Jesus fez aos Seus discípulos era símbolo de Sua morte, então, prestes a ocorrer. O evangelista afirma o conhecimento que Jesus tinha de “que era chegada a Sua hora” (Jo 13:1). Essa era uma referência ao sofrimento de Jesus (Jo 2:4; 7:30; 8:20; 12:27; 17:1). E era o tempo da Páscoa, também outro indicador da morte de Jesus (Jo 12:1). Impulsionado por Seu grande amor (Jo 15:13), Cristo Se humilhou. Despojando-Se de Suas vestes, entregaria Sua honra e a própria vida.

Pedro ficou confuso. Ele não sabia que a atitude do Senhor significava algo bem maior do que ele pudesse imaginar. Jesus lhe disse: “O que Eu faço não o sabes agora; compreendê-lo-ás depois” (Jo 13:7). Aqui, “depois” não se refere ao sermão em seguida, porque Jesus novamente testificou que os discípulos compreenderíam somente mais tarde (Jo 13:19). Esses versos se referem aos eventos da crucifixão e ressurreição de Jesus, acontecimentos que abriríam os olhos dos discípulos e revelariam o profundo significado do lava-pés.

A objeção de Pedro tipifica a indagação que muitos cristãos têm feito através dos séculos. Como Jesus pode ser nosso Senhor e Deus, se Ele também é humano? Como Ele pode ser Deus, se morreu na cruz? Isso ainda descreve o grande mistério, não somente da encarnação, mas da cruz. Deus Se tomou homem a fim de nos salvar. Não havia outra maneira. Jesus tinha que morrer para nos conceder vida eterna.

Assim, Jesus disse a Pedro que, a menos que ele participasse da cerimônia (Jo 13: 8), não recebería os benefícios do que Jesus faria por ele. Nesse verso, a palavra “parte” significa “porção”, e pode ser ligada a “herança” ou “saque”. A expressão “não tens parte comigo” não fala de comunhão espiritual com Jesus, mas se refere a algo que Ele ganharia e, finalmente, compartilharia com Seus seguidores. Evidentemente, trata-se da vida eterna.

Nos dias em que João viveu, as pessoas preferiam um Salvador que fosse mais um herói, alguém que exibisse poder e esplendor. Porém, o evangelho apresenta um Salvador humilde, alguém que submeteu a Si mesmo às mãos de homens ímpios, e que sofreu morte vergonhosa. O ritual do lava-pés nos lembra da humildade de Jesus, que rejeitou todas as formas de força e retaliação.

No sermão feito após aquele ritual, Jesus lidou com essa incompreensão: “Vós Me chamais o Mestre e o Senhor e dizeis bem; porque Eu o sou” (Jo 13:13). Em outras palavras: “apesar do serviço humilde, apesar da morte vergonhosa, apesar da renúncia a tudo que significa o poder terrestre, Eu ainda sou o Senhor do Universo”.

Esse paradoxo na Terra é verdadeiro no Reino de Deus: Aquele que serve voluntariamente a todos é, de fato, o maior (Mc 9:35; Lc 22:26; Fp 2:6-8). Jesus preparou os discípulos para Seu sofrimento e morte, a fim de que não caíssem no desespero, mas vissem Sua glória e divindade na humildade que revelou.

“Desde já vos digo, antes que aconteça, para que, quando acontecer, creiais que Eu sou” (Jo 13:19). João repete essas palavras, a fim de encorajar os crentes na compreensão do serviço, sofrimento, e mesmo da morte como partes integrantes do verdadeiro discipulado.

Ênfase fora de lugar

A incompreensão dos discípulos vai mais profundo ainda. Isso ficou visível quando Pedro pediu que Jesus lhe lavasse “não somente os pés, mas também as mãos e a cabeça” (v. 9). Ele deve ter pensado que, fazendo assim, podería ser transformado e tornado qualificado para o Reino de Deus. Quanto mais fosse lavado, mais qualificado se tornaria.

Porém, Jesus rejeitou a interpretação de Pedro e disse-lhe: “Quem já se banhou não necessita lavar senão os pés; quanto ao mais, está tudo Empo” (v. 10). Ele ainda declarou que o traidor não estava Empo, apesar do fato de que seus pés também seriam lavados (v. 11). Obviamente, o que Jesus fez aos discípulos foi significativo em um sentido diferente de como isso foi entendido por eles naquele aposento.

O capítulo também revela outro ponto fundamental, procedente da incompreensão deles sobre o evento. Numa demonstração de egoísmo, Pedro se imaginou sendo o primeiro. Depois de aprender que o lava-pés tinha que ver com sua salvação, ele se mostrou interessado somente nele mesmo. Foi como que perguntasse a si mesmo: “Como faço para ganhar o máximo que for possível do fato de ter os pés lavados?”

Seu pedido para ser completamente lavado ergue-se em estrito contraste com o foco do capítulo. João relatou o evento tendo Jesus no centro. A atitude de Cristo está em evidência. É ao Seu amor e Seu serviço que este capítulo diz respeito. A ênfase está sobre Aquele que lava os pés, não sobre aquele que tem os pés lavados.

Isso descreve a importância do relato do lava-pés e revela o significado da submissão de Jesus na cruz em nosso favor. Encontramos Cristo no centro. Ele une o mais baixo serviço de um escravo como sendo o do Senhor dos senhores. Através desse ritual, Jesus deixou um sermão, não em palavras, mas em ação. O tema desse sermão foi Sua morte em nosso favor, a morte que revelou Seu infinito e verdadeiro amor, Seu caráter divino. O apelo desse sermão nos convida a crer nEle em serviço e submissão (Fp 2:5).

O relato de João sobre o lava-pés indica que esse ritual tem o mesmo significado da Santa Ceia. Seguir a Ordem de Cristo e lavar os pés uns aos outros significa que estamos proclamando a morte de Cristo (2Co 11:26). Em suma, a “cerimônia da humildade”, ou lava-pés, demonstra a maneira de servir a outros cristãos e, também, é a maneira de experimentar intensamente por nós mesmos o que Jesus realizou na cruz.