Como interpretar corretamente os textos usados para defender o terraplanismo
Kayle B. de Waal
Recentemente, o movimento da “Terra Plana” ressurgiu fazendo muito barulho nas redes sociais como o Twitter e o YouTube, que acabam servindo como incubadoras dessa visão. No meio desse fenômeno, alguns cristãos passaram a acreditar que a Bíblia ensina que a Terra é plana, ao interpretar literalmente algumas passagens das Escrituras.
As supostas evidências bíblicas apresentadas para defender o terraplanismo incluem textos sobre o firmamento, as águas sob e sobre o firmamento, o geocentrismo e versos específicos que se referem a uma Terra plana.1 Esses “argumentos” geralmente são postados sem nenhuma explicação. Assim, este artigo propõe uma análise desses textos, com base em uma ampla perspectiva acadêmica, a fim de minimizar qualquer viés.
O firmamento
“E disse Deus: Haja firmamento no meio das águas e separação entre águas e águas. Fez, pois, Deus o firmamento e separação entre as águas debaixo do firmamento e as águas sobre o firmamento. E assim se fez” (Gn 1:6, 7; ver também 2Sm 22:16; Sl 18:16; 19:4, 5; 104:2, 3; 148:4; 2Pe 3:5; Is 40:22). Com base em interpretações equivocadas desses textos, os terraplanistas defendem que a Terra tenha uma cúpula, abóbada ou copa ao seu redor; haja águas acima dos céus; e haja um círculo acima da terra.
A palavra hebraica rāqîa‘, traduzida como “firmamento” ou “abóbada”, significa “expansão”. Kenneth Mathews afirma que “Deus criou uma extensão para criar um limite, dando estrutura às águas superiores e inferiores (Gn 1:6, 7). A expansão é a atmosfera que distingue as águas da superfície da Terra (as águas debaixo) das águas ou nuvens atmosféricas (as águas acima).”2 A expansão também é o local em que o Sol e a Lua foram colocados (Gn 1:15, 17) e os pássaros voam (Gn 1:20).
De maneira semelhante, Hugh Ross afirma que a “expansão” em Gênesis 1:6 a 8 se refere à troposfera, e as “águas acima” são vapor de água. Ele argumenta que “a separação que Deus faz da água descreve com precisão a formação da troposfera, a camada atmosférica logo acima do oceano onde as nuvens se formam e a umidade reside”.3 Younker e Davidson chegam à mesma conclusão quando afirmam que a água acima da extensão em Gênesis 1:7 refere-se às nuvens.4
É importante ressaltar que rāqîa’ é chamado de céu (šāmayim) em Gênesis 1:8.5 Os usos posteriores do termo no Antigo Testamento não sugerem que o céu seja uma cúpula sólida.6 Algumas pessoas defendem que os hebreus acreditavam haver janelas ou portas literais no firmamento. Contudo, um estudo cuidadoso nos ajuda a interpretar as Escrituras. O Salmo 78:23 lança luz sobre o Salmo 148:4, no que se refere a “portas” e “céu”. O Salmo 78:23 diz: “Nada obstante, ordenou às alturas e abriu as portas dos céus.” A expressão “as portas dos céus” é um paralelismo evidente. Keil e Delitzsch reconhecem que, “de acordo com a representação do Antigo Testamento, sempre que chove muito, as portas ou janelas do céu são abertas”.7 Assim, a expressão não descreve janelas literais no céu, mas expressa de maneira poética e figurativa que chovia muito. Por isso Van Gemeren afirma que as águas “acima do firmamento” no Salmo 148:4 representam várias formas de precipitação.8
Em 2 Pedro 3:5, o apóstolo afirma que os hereges intencionalmente se esqueceram de que os céus surgiram pela Palavra de Deus. Pedro estava fazendo alusão a Gênesis 1:6 a 10 com a sentença “da água e através da água”. O Senhor separou a água da terra, então a parte da frase que diz “da água” é direta. A frase “através da água” é mais difícil, e provavelmente se refira ao fato de que a água tenha sido o meio pelo qual a terra apareceu. Em outras palavras, quando a água retrocedeu, a terra apareceu.9
Em relação a Isaías 40:22, a palavra “redondeza” é a palavra hebraica ḥûg. Ela é usada para se referir a “abóbada” em Jó 22:14 e “horizonte” em Provérbios 8:27.10 Outros textos como Isaías 66:1, 1 Reis 8:39 e Salmo 2:4 ensinam que Deus habita nos Céus (ḥûg).11 Depois de consultar outras passagens, aprendemos que ḥûg se refere à redondeza da Terra em Isaías 40:22, mas também aos céus como horizonte em diversos textos. Portanto, 2 Samuel 22:16 e os Salmos 18:16; 19:4, 5; e 104:2, 3 também devem ser entendidos figurativamente. Assim como o Sol não é um noivo saindo de sua câmara (Sl 19:5), também não há tenda literal ao redor da terra.
Em suma, o estudo desses versículos mostra que a Bíblia não ensina que a Terra tenha uma cúpula ou abóbada ao seu redor. Em vez disso, as Escrituras afirmam que há uma expansão na qual as nuvens, o Sol e a Lua estão (Gn 1:15, 17) e os pássaros voam (Gn 1:20). Não há janelas nem portas literais no firmamento. Em vez disso, janelas ou portas abertas se referem à chuva, quando as nuvens “liberam” a chuva.
Os fundamentos
“Em tempos remotos, lançaste os fundamentos da terra; e os céus são obra das Tuas mãos” (Sl 102:25; ver também 1Sm 2:8; Is 48:13; Zc 12:1). Ao interpretar de modo equivocado esses versículos, os terraplanistas defendem que o planeta tem um fundamento, é plano, e que existem pilares que o sustentam.
Contudo, o conceito de “fundamento” aponta para o fato de que Deus estabeleceu a Terra.12 Isso fica evidente quando vemos o paralelismo no Salmo 78:69, que diz: “Ele construiu Seu santuário como as alturas, como a terra que estabeleceu para sempre”, referindo-se “pictoricamente à firmeza e estabilidade da criação de Deus”.13 Portanto, a noção de fundamento ou estabelecimento aponta para o controle imutável de Deus sobre tudo, destacando Sua singularidade (Dt 32:39; Is 41:4; 43:10; 48:12).14 Assim, ao comparar cuidadosamente texto com texto, podemos nos afastar de uma ideia literalista de “fundamento”.
Por sua vez, 1 Samuel 2:8 menciona as “colunas da terra”. Essa expressão também deve ser entendida em seu contexto bíblico mais amplo, e não tomada literalmente.15 Observe Jó 26:7, que diz: “Ele estende o norte sobre o vazio e faz pairar a Terra sobre o nada.” Parece que esses textos se contradizem: como a Terra pode repousar sobre colunas e, ao mesmo tempo, não se apoiar em nada?
O contexto de cada passagem nos leva a perceber que os autores bíblicos estão usando linguagem figurada quando falam sobre as “colunas da Terra”. Esse tipo de imagem poética – ou seja, colunas e fundamentos – é comumente usado nas Escrituras para descrever como Deus sustenta e mantém o mundo (cf. Jó 38:4-6).
A ideia de que os antigos hebreus e mesopotâmios acreditavam em um planeta plano com quatro cantos foi refutada pela descoberta de uma tábua mesopotâmica, mostrando que os quatro “cantos”, de fato, se referem aos quatro pontos cardeais dentro do círculo da Terra.16 Em Isaías 11:12 e Ezequiel 7:2, as duas principais frases hebraicas que descrevem os confins/cantos da Terra falam literalmente sobre “quatro asas” (kăn·pôt_ʼ).
Seria um erro supor que os textos sugiram quatro cantos de 90 graus literais. Quando os antigos hebreus queriam descrever um objeto com cantos de 90 graus, como os cantos de uma casa ou rua, o termo empregado era pinnah (“canto”). Dessa maneira, Deus usa as imagens dos fundamentos e de uma pedra angular para transmitir algo sobre Sua pessoa: Ele é o poderoso Criador. De idêntico modo, os animais não falam nem riem, mas Deus disse a Jó que o cavalo “ri do medo” (Jó 39:22, NVI). Portanto, a comparação entre textos indica o fundamento como o estabelecimento da Terra por Deus e deve ser usada para interpretar passagens difíceis como 1 Samuel 2:8.
O geocentrismo
“E o sol se deteve, e a lua parou até que o povo se vingou de seus inimigos. Não está isto escrito no Livro dos Justos? O sol, pois, se deteve no meio do céu e não se apressou a pôr-se, quase um dia inteiro” (Js 10:13; ver também 1Cr 16:30).
Às vezes Josué 10:13 é usado para defender o geocentrismo. Contudo, a passagem não afirma que o Sol estivesse se movendo ao redor da Terra. Frequentemente, as Escrituras retratam eventos naturais da perspectiva do observador, mas isso não significa que essa perspectiva reflita todos os aspectos da realidade; apenas nos diz o que percebemos com nossos sentidos, sem usar outras ferramentas de investigação.
O fato de que o Sol “não se moveu” não significa necessariamente que ele orbitava em torno da Terra. O autor do texto desconsiderou nossas preocupações contemporâneas, a parada do Sol e da Lua, mas destacou o fato de que Deus respondeu a oração de Josué (Js 10:14).17 O prolongamento do dia proporcionou um tempo extra aos soldados israelitas para que destruíssem seus inimigos. O milagre demonstrou o poder divino contra Baal e Astarote, provando que “tanto o Sol como a Lua, a quem eles [os cananitas] adoravam, obedeciam às ordens de Josué, sob a direção de Yahweh”.18
Nossa perspectiva humana limita o poder e a capacidade de Deus. Buscamos justificativas naturalistas e evidências científicas, mas a verdade é que não podemos usar a razão para explicar Josué 10:13 e 14. Se pudéssemos, deixaria de ser um milagre. Não podemos explicar como Deus realizou o milagre do dia longo de Josué, assim como não podemos explicar como Jesus ressuscitou Lázaro (Jo 11:38-44) ou como andou sobre as águas (Mt 14:22-33). A natureza inexplicável desses eventos é o que os torna milagres.19
A Terra plana
“Espalharei os elamitas pelos quatro cantos da Terra, levados pelos quatro ventos. Não haverá um país no mundo para onde não fuja algum elamita!” (Jr 49:36, BV; Ez 7:2; 20:8). De maneira equivocada, os terraplanistas entendem que os “quatro cantos” indicam que a Terra seja plana.
A frase “os quatro cantos da Terra” era comum no mundo antigo.20 Em relação à frase em Ezequiel 7:2, ela se refere a Israel (cf. Ez 7:1). Em Apocalipse 7:1 e Jeremias 49:36 é uma expressão metafórica que faz alusão à toda a Terra. O termo grego para “cantos” em Apocalipse 7:1 é gonia, que significa “ângulo” ou “divisão”, e está intimamente relacionado às divisões modernas conhecidas como quadrantes. Assim, não implica nenhum formato específico da Terra.21
James Holding observa que a palavra hebraica mais frequentemente traduzida como “terra” no Antigo Testamento é ‘erets, usada para se referir à Terra, mas também a uma nação ou território específico, como a “terra de Havilá” (Gn 2:11), ou a um terreno definido, como o adquirido por Abraão (Gn 23:15).22 Além disso, os terraplanistas afirmam que não há versículos na Bíblia que ensinem que o planeta seja uma esfera giratória que orbita o Sol. Contudo, o silêncio da Bíblia não prova nem refuta esse fato.
Conclusão
Este artigo examinou os textos usados pelos terraplanistas para apoiar suas reivindicações. Como resultado, concluímos que a Bíblia não ensina que a Terra seja plana, possua uma abóbada ou cúpula literal nem que existam colunas embaixo dela. Os argumentos em defesa da “Terra plana” têm por base as suposições e ignoram uma exegese responsável. Os sites que mencionam essas passagens como evidência geralmente não fornecem explicações para elas. Além disso, os defensores do terraplanismo usam esses textos fora de seu contexto, e isso leva a uma doutrina equivocada.
Uma das suposições que alguns fazem é que a cosmovisão do antigo povo hebreu era devedora a outros povos antigos na Mesopotâmia e, portanto, textos que se referem a uma “Terra plana”, uma “cúpula/abóbada ao redor da terra” e “colunas” sustentando o planeta também refletem visões hebraicas antigas. Com base em nosso estudo, essa visão é insustentável. Herman Bavinck afirma que “as histórias da criação em Gênesis e a da Babilônia são muito diferentes em todos os pontos”.23
Gordon Wenham declara que, “embora Gênesis compartilhe muitos dos pressupostos teológicos do mundo antigo, é melhor ler a maioria das histórias encontradas nesses capítulos como apresentando uma cosmovisão alternativa às geralmente aceitas no antigo Oriente Médio”.24 Moisés, portanto, transmite uma cosmovisão alternativa com base na revelação de Deus, que em vários pontos está em desacordo com a cosmovisão do antigo Oriente Médio.25
A verdade está fundamentada em uma profunda revelação de Deus e Seu grande amor redentor (Jo 3:16; 1Jo 4:8). Uma leitura contextual das Escrituras centrada Nele aponta para Seu poder indescritível e controle soberano da Terra. O evento da criação e o que é descrito ali fornecem uma estrutura para nossa apropriação de textos posteriores (Jó 38:8-11; Sl 104:5-9).26 Para Israel e para nós, o Criador é o Deus que nos acompanha na jornada da vida, em todas suas alegrias e perplexidades. Na antiguidade, não havia divisão entre o sobrenatural e o natural. O Senhor estava envolvido ativamente nos mínimos detalhes do mundo. Isso é algo de que precisamos atualmente.27
Referências
1 Ver “Religious References”, Flat Earth Society, <https://tinyurl.com/t5k6mbh>.
2 Kenneth Mathews, Genesis 1–11:26, New American Commentary (Nashville, TN: Broadman and Holman, 1996), p. 150.
3 Hugh Ross, The Genesis Question: Scientific advances and the accuracy of Genesis (Colorado Springs, CO: NavPress, 1998), p. 34, 199, 201.
4 Randall W. Younker e Richard M. Davidson, “The Myth of the Solid Heavenly Dome: Another look at the Hebrew rāqîa‘”, Andrews University Seminary Studies 49, n. 1 (2011): 1-25.
5 John Sailhamer, “Genesis”, em Tremper Longman III e David E. Garland (eds.), Expositor’s Bible Dictionary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2008), v. 1, p. 59.
6 Mathews, Genesis 1–11:26, p. 150.
7 Carl Friedrich Keil e Franz Delitzsch, Commentary on the Old Testament: The Pentateuch (Peabody, MA: Hendrickson, 1996), v. 1, p. 53, 54.
8 William A. VanGemeren, “Psalms”, em Frank E. Gaebelein (ed.), The Expositor’s Bible Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1991), p. 872.
9 Peter H. Davids, The Letters of 2 Peter and Jude (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2006), p. 270.
10 Francis D. Nichol (ed.), Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2016), v. 4, p. 257.
11 Shalom M. Paul, Isaiah 40-66, Eerdmans Critical Commentary (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2012), p. 149.
12 VanGemeren, “Psalms”, p. 649.
13 Ronald F. Youngblood, “1 & 2 Samuel”, em Frank E. Gaebelein (ed.), The Expositor’s Bible Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1992), p. 581.
14 Hans-Joachim Kraus, Psalms 60–150: A Commentary (Mineápolis, MN: Augsburg Fortress, 1989), p. 286, 287.
15 Ralph Klein, 1 Samuel, Word Biblical Commentary (Dallas, TX: Word, 2008), v. 10, p. 18.
16 Veja a representação do tablet BagM. Beih 2 n. 98 e a discussão de seu significado em Wayne Horowitz, Mesopotamian Cosmic Geography (Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1998), p. 195-206.
17 Gleason L. Archer, The New International Encyclopedia of Bible Difficulties (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1982), p. 161, 162; Walter C. Kaiser, Jr., Peter H. Davids, e Manfred T. Brauch, Hard Sayings of the Bible (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1996), p. 186-188.
18 Francis D. Nichol (ed.), Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), v. 2, p. 221.
19 Michael Youseff, Joshua: Leading the Way Through (Eugene, OR: Harvest, 2013), p. 150.
20 Joan S. Morton, Science in the Bible (Chicago, IL: Moody, 1978), p. 138, 141.
21 Louis A. Brighton, Revelation, Concordia Commentary (Saint Louis, MO: Concordia, 1999), p. 181.
22 J. Holding, “The Legendary Flat-Earth Bible”, Christian Research Journal 36, n. 3 (2013): 1-5.
23 Herman Bavinck, Reformed Dogmatics (Grand Rapids, MI: Baker, 2004), v. 2, p. 477.
24 Gordon J. Wenham, Genesis 1–15, Word Biblical Commentary (Waco, TX: Word, 1987), v. 1, p. xlv.
25 Gerhard F. Hasel, “The Polemic Nature of the Genesis Cosmology”, Evangelical Quarterly 46 (1974): 81–102.
26 Ver Gerald A. Klingbeil (ed.), The Genesis Creation Account and Its Reverberations in the Old Testament (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2015).
27 John H. Walton, Job, NIV Application Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2012), p. 191.
Nota: Este artigo foi adaptado de “Does The Bible Teach That The Earth is Flat?”, Reflections 68, Biblical Research Institute, outubro de 2019.
“É um erro supor que a cosmovisão dos antigos hebreus era dependente do pensamento dos povos do Oriente Médio”.
Kayle B. de Waal, Professor de Teologia na Universidade Avondale, Austrália