Relações Entre a Igreja e o Estado

Com frequência a expressão “América Latina” é aplicada às repúblicas do Novo Mundo cuja língua e cultura procederam dos povos latinos de Portugal, Espanha e França. Essa terminologia, entretanto, não é inteiramente satisfatória. Não podemos estudar essas repúblicas como uma unidade. É verdade que os países ibero-americanos tiveram quase que a mesma história colonial e um movimento comum de independência. Não obstante, cada país tem sua vida peculiar e distinta.

Neste artigo, ao invés de generalizações a respeito da América Latina, consideraremos o problema da liberdade religiosa de cada nação, em separado.

Brasil

Ocupando aproximadamente metade da superfície do continente (8.511.965 km2) e possuindo mais ou menos 85 milhões de habitantes, o Brasil é a maior e mais populosa de tôdas as repúblicas da América do Sul, e distingue-se também das demais por suas peculiaridades lingüísticas e raciais.

Os primeiros colonos só chegaram à nova terra três décadas depois de ter sido descoberta em 1500 por Cabral, um navegante português. Nos séculos dezesseis e dezessete vieram ao Brasil colonizadores portuguêses, organizando diversas províncias, sob um forte govêrno central.

Enquanto os espanhóis criavam muitos Estados autônomos, que são agora os países modernos de língua castelhana, as diversas províncias (capitanias) portuguêsas se tornaram uma grande nação.

Durante três séculos o Brasil foi a maior colônia pertencente a Portugal. Entretanto, foram surgindo sentimentos nacionalistas e ideais brasileiros que culminaram na declaração de independência em 1822. Em contraste com os outros países latino-americanos que se tornaram repúblicas, quando o Brasil obteve sua liberdade êle tornou-se um império. Sob êsse regime político o Brasil desfrutou anos de unidade política, reformas sociais, forte economia agrícola e tolerância religiosa.

No entanto, o positivismo foi acolhido com prazer e se desenvolveu ràpidamente, em grande parte como resultado do crescente espírito de liberdade. 23 Dirigentes do exército e da marinha estavam imbuídos das idéias de Comte. Um ardoroso positivista, Benjamim Constante, agraciado com o título de “Fundador da República,” e seus amigos, acabaram com o império em 1889 e proclamaram a República do Brasil, com uma constituição quase idêntica à dos Estados Unidos. 24

Rui Barbosa, o brilhante jurisconsulto que se tornou Ministro da Justiça, sob a influência de idéias positivistas “redigiu o decreto separando a Igreja do Estado, que foi promulgado em 7 de janeiro de 1890, apenas pouco mais de sete semanas após a derrocada do império.” 25 Como resultado dêsse decreto, os cemitérios foram secularizados, foi instituído o casamento civil e a instrução católica foi eliminada do sistema de educação do govêrno.

Hoje, completa liberdade religiosa e de culto é garantida pela constituição e ninguém é destituído de qualquer posto na República devido a suas crenças religiosas. Com efeito, êste tem sido o clássico exemplo na América do Sul da vantagem de manter uma igreja livre num Estado livre.

As Repúblicas do Rio da Prata

O estuário do rio da Prata provê acesso ao Atlântico para três países sul-americanos: Argentina, Uruguai e Paraguai. Estas três nações estão estreitamente ligadas entre si por sua situa

ção geográfica e por seu passado histórico. Contudo, manifestam atualmente três conceitos dife-rentes e peculiares de democracia e religião.

Argentina

A República Argentina, por sua posição geográfica, pela vasta extensão de seu território, por estar situada na zona temperada, pela variedade e abundância de seus produtos naturais, parece destinada a tornar-se uma das principais nações do hemisfério sul.

No decorrer de sua história, a Argentina tem dado indicações da posição de liderança que está fadada a ocupar entre as populações espanholas do Nôvo Mundo. Havendo sido a primeira das colônias espanholas na América do Sul a reivindicar sua independência, a Argentina tornou-se dirigente e libertadora de povos vizinhos. Sob a liderança do General José de San Martin, os argentinos transpuseram os cumes dos Andes e deram independência política ao Chile. Mais tarde organizaram um exército de libertação e estenderam seus triunfos sôbre o domínio espanhol até as remotas regiões dos Andes Superiores, e libertaram a República do Peru.

A Argentina é uma república federal com uma constituição adotada em 1853, a qual foi modelada estritamente de acôrdo com a dos Estados Unidos da América. Êste fato foi reconhecido oficialmente pelo Supremo Tribunal Federal, ao declarar: “O sistema de govêrno pelo qual somos regidos não é criação nossa. Nós o vimos em funcionamento, comprovado por longos anos de experiência, e nos apoderamos dêle.” 26 Alberto Padilla, erudito argentino, apontou semelhanças em sessenta dos cento e dez artigos. 27

Contudo, há nesse documento político certos vestígios de influência espanhola. Entre êles pode-se mencionar em primeiro lugar que o catolicismo romano é declarado ser a religião oficial apoiada pelo Estado. Ordena-se que o presidente e o vice-presidente sejam membros “da comunhão católica apostólica romana,” e o Estado se reserva o direito de nomear os bispos para cada diocese, dentre uma lista de três candidatos apresentados pelo senado.

No parágrafo que segue, M. Searle Bates sintetiza essa relação entre o Estado e a Igreja:

A Argentina subsidia a Igreja Catálica Romana e exige que seu presidente pertença a essa religião, pois êle nomeia os bispos. Existe assim o fundamento de uma igreja oficial, embora não de nome, ou como sistema completo. O culto e o ensino da religião estão livres de regulamentação desfavorável. Em determinadas províncias há instrução religiosa por professores católicos nas escolas públicas elementares, mas as crianças procedentes de lares com outras crenças podem com facilidade conseguir isenção dessas aulas. Assim, a Igreja Católica goza de privilégio e apoio, mas não de domínio exclusivo e opressor.”28

A despeito dessas estipulações da constituição, ela assegura a liberdade de culto para todos, e o próprio congresso tem outorgado subvenções a escolas protestantes.

Uruguai

A República do Uruguai é o menor de todos os países da América do Sul, com uma superfície de 186.926 quilômetros quadrados, e está situada entre seus dois poderosos vizinhos: o Brasil e a Argentina. Tem sido comparado a um jardim entre dois grandes Estados.

Em 1828 foi estabelecida a sua independência, e o Uruguai passou a pertencer à família das nações sul-americanas. Dessa época em diante, durante muitos anos, e mesmo até o início de nosso século, revoluções sangrentas diversas vêzes atrasaram o progresso do país.

As diferenças políticas de facções rivais conduziram à formação de dois partidos políticos: os “Colorados” e os “Blancos,” e mesmo na época atual êsses dois partidos históricos dominam a vida da nação. Os “Blancos” conservadores eram em geral o partido da Igreja, e os “Colorados,” seus radicais oponentes.

Durante quase cem anos os “Blancos” defenderam a primazia da religião católica. Foram, porém, derrotados e a Igreja foi desoficializada. Barclay declara:

“De forma invariável, a Igreja foi perdendo terreno. Em 1838 foram suprimidos os conventos franciscanos, e confiscadas suas propriedades, para utilização pública. Em 1859 os jesuítas pela segunda vez foram expulsos do país. Em 1885 o casamento civil se tomou compulsório e a única forma legal. Finalmente, em 1919, quando foi adotada a constituição atual, a Igreja Católica foi completamente desoficializada no seguinte artigo: ‘Todos os cultos religiosos são livres no Uruguai. O govêrno não reconhece qualquer religião. . . ’ Ao mesmo tempo, o govêrno abandonou tôda reivindicação concernente ao controle do padroado eclesiástico. Após a desoficialização, a Igreja não tem sido influente ou ativa como fator político. ”29

Hoje, a maioria dos homens que ocupam posições de grande influência política são declaradamente ateístas ou, quando muito, agnósticos, e faz-se tôda tentativa para excluir o nome de Deus e qualquer referência ao cristianismo em documentos oficiais e mesmo em jornais diários controlados pelos “Colorados.” O Dr. João A. Mackay, atento observador de questões latino-americanas, afirma:

“No Uruguai … foi mantida a liberdade religiosa, mas o calendário tradicional foi revolucionado, sendo o Natal transformado em ‘dia da familia,’ e a Semana da Páscoa em ‘semana de turismo.’ O nome de Deus era impresso com ‘d’ minúsculo. E quando era necessário fazer alusão ao papa, mencionava-se apenas seu sobrenome e êle era chamado simplesmente de ‘cavalheiro que vive em Roma’. ”30

Por muitos anos a igreja oficial no Uruguai semeou ódio e intolerância, e agora está colhendo frutos amargosos. Infelizmente, essa reação é manifestada hoje em dia não só contra o domínio católico mas também contra a própria crença religiosa.

Paraguai

A República do Paraguai, que muitas vêzes é denominada a “Mesopotâmia da América do Sul, está situada bem no interior, quase inteiramente cercada pelos grandes rios que vertem suas águas no rio da Prata.

Sua capital, Assunção, foi o primeiro núcleo colonial permanente dos espanhóis na parte oriental da America do Sul, e durante muitos anos continuou sendo um centro de influência espanhola, embora situada a mais de mil e quinhentos quilômetros do oceano.

O período colonial foi seguido pela vida nacional independente. Mas o país era uma república apenas no nome, e após um período de anarquia, o famoso Dr. Francia conseguiu estabelecer uma ditadura que durou quase trinta anos. Por ocasião de sua morte, sua autoridade foi transmitida para a família Lopez. A relativamente branda e benéfica autoridade do Lopez mais antigo tornou-se nas mãos de seu filho e sucessor, a mais odiosa das tiranias. Êsse homem precipitou o seu país numa guerra contra o Brasil, a Argentina e o Uruguai, e por cinco anos sustentou sua autoridade e manteve sua posição contra os aliados, recorrendo aos expedientes mais cruéis. De acôrdo com Roberto E. Speer, quando a guerra terminou “o recenseamento oficial mostrava haver 231.079 habitantes em todo o país, dos quais apenas 28.746 eram homens.” 31

Pereceram cêrca de sete oitavos da população e o país ficou em extrema miséria.

Assim, durante muitos anos o Paraguai “esteve sob o domínio de ditadores que oprimiram impiedosamente a igreja e a subordinaram a sua tirania política.” 32

Foi apenas em 1870 que o povo do Paraguai ficou livre para moldar seu prósprio destino. Nesse ano êles adotaram uma constituição que se mostrou incompatível com as necessidades de um país moderno. Essa lei fundamental declarava no Artigo IV que “a religião católica apostólica romana” era a religião oficial. 33

A Constituição de 1870 continuou a vigorar até 1940, quando foi adotada uma nova lei, a mais curta da América Latina. 34 Em suas 7.600 palavras há dispositivos constitucionais para liberdade religiosa. Barclay, referindo-se a êsse documento político, declara:

“Embora o catolicismo romano ainda seja considerado a religião oficial, ao Congresso é negado expressamente o poder de proibir o livre exercício de qualquer outra religião, e a tôdas as pessoas, tanto a cidadãos como a estrangeiros, é assegurado o direito de professar livremente a religião em que crêem. As escolas particulares têm liberdade para ensinar religião como assunto especial.”35

Até alguns anos atrás o Paraguai oferecia um triste espetáculo de intolerância que abrangia muitos exemplos de violação dos direitos de consciência.

Referências

  • 23. W. Stanley Rycroft, Religion and Faith in Latin America (Filadélfia: The Westminster Press, 1958), pág. 59.
  • 24. James e Martin, op. cit., pág. 139.
  • 25. Austin F. Macdonald, op. cit., pág. 126.
  • 26. Macdonald, op. cit., pág. 20.
  • 27. Idem, pág. 22.
  • 28. M. Searle Bates, Religious Liberty (Nova Iorque: lntemational Missionary Council, 1945), pág. 78.
  • 29. Barclay, op. cit., pág. 71.                           
  • 30. João A. Mackay, “América Latina e Revolução, The Christian Century, Vol. 82 (1965), pág. 1.439.
  • 31. Roberto E. Speer, op cit., pág. 50.
  • 32. Barclay, op. cit., pág. 12.
  • 33. Ibidem.
  • 34. Macdonald, op. cit., pág. 502.
  • 35. Barclay, op. cit., pág. 102.