Uma das obras mais influentes na história do adventismo é lançada no Brasil e possibilita novas reflexões

Em outubro de 2007, um grupo de teólogos adventistas e evangélicos se reuniu na Andrews University, nos Estados Unidos, para celebrar os 50 anos de lançamento do livro Adventists Answer Questions on Doctrine, mais conhecido como (Questions on Doctrine, ou simplesmente QOD.1 A conferência evidenciou ainda mais o papel desse clássico na história do pensamento teológico adventista, que virou até assunto de tese.2

O livro nasceu de um diálogo entre os evangélicos fundamentalistas Donald Grey Barnhouse (1895-1960) e Walter Martin (1928-1989) e os líderes adventistas LeRoy Edwin Froom (1890-1974), Roy Allan Anderson (1895-1985) e Walter E. Read (1883-1976). Barnhouse era pastor presbiteriano e editor da revista Eternity; Martin era pesquisador de movimentos religiosos e caçador de seitas no cenário norte-americano.

“É possível dialogar com o mundo religioso, sem comprometer a nossa mensagem”

Tobias Edgar Unruh (1894-1982), então presidente da Associação da Pensilvânia Leste, havia escrito para Barnhouse elogiando sua fala pelo rádio sobre justificação pela fé. Barnhouse ficou surpreso porque achava que os adventistas não criam na justificação pela fé, e sim pelas obras. A partir daí, teve início o diálogo, que culminou com o lançamento do livro em 1957. Reuben R. Figuhr (1896-1983), então presidente da Associação Geral, apoiou o projeto.

Agora, o público adventista do Brasil tem acesso a essa obra, que foi lançada pela Casa Publicadora Brasileira sob o título Questões Sobre Doutrina.3 O livro, com 512 páginas, é um presente aos leitores que gostam de substancioso material teológico e doutrinário. Quem quer entender melhor a mudança de ênfase que ocorreu na teologia adventista a partir da década de 50 não pode deixar de ler esse material. Todo pastor bem informado deve ter a obra em sua biblioteca. A introdução e as notas preparadas pelo Dr. George Knight, historiador adventista, ajudam a situar os fatos.

Polêmica

Para Knight, o livro se tornou o mais polêmico na história da Igreja Adventista. Um dos principais críticos foi Milian L. Andreasen (1876-1962), que na época era influente na teologia adventista e foi deixado de lado na preparação do livro. Knight especula que, se Andreasen tivesse sido consultado a respeito da posição adventista sobre a expiação, se Froom e seus colegas tivessem lidado de maneira mais transparente sobre o assunto da natureza humana de Cristo e se Froom e Andreasen tivessem personalidades mais flexíveis, o resultado poderia ter sido diferente.4 Mas a história não é feita de “SEs”.

O segmento adventista que gosta de enfatizar a santificação (ou, como diriam alguns, o perfeccionismo), especialmente os adeptos da teologia da “última geração”, ainda critica o livro. O teólogo Herbert Douglass é um deles. Num livro recente,5 que inclui sua palestra na conferência da Andrews University, ele faz várias ponderações e insiste que os líderes adventistas desconsideraram a lógica da teologia adventista. Eles eram notáveis e altamente respeitados, mas não tinham formação em teologia sistemática. Usando a metáfora das placas tectônicas, Douglass afirma que a placa tectônica adventista, influenciada pela teologia arminiana, com ênfase no livre-arbítrio, não se encaixa com a placa calvinista, influenciada pela teologia agostiniana, com ênfase na predestinação. Na tentativa de fundir as duas, o resultado só poderia ser um terremoto!6

Alguns conservadores podem achar que o livro comprometeu a mensagem adventista original. Mas, na verdade, ele foi uma forte e inteligente defesa da teologia adventista tradicional em vários pontos relevantes, como o sábado, Babilônia, a profecia condicional, o pré-milenismo e a imortalidade condicional. Para um livro que visava ganhar a simpatia do mundo evangélico, isso foi marcante. Se a linguagem usada foi diferente, a substância não mudou muito.

Diversidade

Para David Larson, professor na Universidade de Loma Linda, o livro desagradou na época a ala direita da igreja e também a esquerda. Enquanto a ala direita o criticou, a ala esquerda o ignorou, porque preferia dialogar com gente como os filósofos-teólogos Charles Hartshorne e Paul Tillich.7 Todavia, se o livro desagradou os extremos, mas representou o centro e estimulou o debate, então cumpriu papel importante. Ele evidenciou e aprofundou a diversidade no pensamento adventista, o que não é necessariamente ruim, porque pode haver mais de uma maneira correta de pensar e ver as coisas, como pode ser ilustrado pela existência de quatro evangelhos.

Hoje, de acordo com Jon Paulien, decano da Escola de Religião da Universidade de Loma Linda, a diversidade no pensamento adventista é refletida em quatro vertentes principais: (1) tradicionalismo criativo, expresso por evangelistas e missionários; (2) biblicismo respeitoso, expresso por eruditos adventistas “liberais” e “conservadores”; (3) minimalismo indiferente, expresso especialmente pelos membros jovens e pós-modernos do primeiro mundo; e (4) criatividade apaixonada, expressa basicamente pelo adventismo do Hemisfério Sul, o qual é “guiado pela tradição e a leitura devocional da Escritura”.8

Paulien completa a análise com uma analogia da igreja primitiva. Após a morte do último apóstolo, dentro de poucas gerações, a igreja cristã começou a se fragmentar em cinco grupos, todos com diferentes soluções para o “problema da unidade da igreja”: (1) os gnósticos, enfatizando que as ideias certas iriam manter a igreja unida e pura; (2) os monásticos, pregando que a separação do mundo manteria a igreja unida e pura; (3) os montanistas, ensinando que uma conexão direta de cada membro com o Espírito de Deus iria manter a igreja unida e pura; (4) os marcionitas, argumentando que somente o evangelho manteria a igreja unida e pura; e (5) os institucionalistas, defendendo que deixar os líderes decidirem as questões mais importantes iria manter a igreja unida e pura. Por volta do tempo de Constantino, os institucionalistas haviam se tornado o grupo dominante, e o resultado, no Ocidente, foi a igreja medieval.9

Após a morte de Ellen White, completa Paulien, a Igreja Adventista experimentou igual processo de fragmentação. Nesse contexto, que caminho seria mais recomendável hoje? A igreja cristã primitiva optou pela quinta abordagem, entregando o poder aos bispos, e o resultado não foi dos melhores. “Será que faremos melhor?”, ele pergunta. Dependendo de nossas escolhas, poderemos fazer.

Mais importante do que discutir a existência de diferentes grupos dentro da igreja, talvez seja reavaliar o papel da igreja como movimento profético no século 21. Será que ela deve abandonar seus pontos distintivos e se acomodar ao mundo evangélico, em busca de reconhecimento e status? Ou será que deve apostar no confronto, como defendem certos grupos mais radicais? Seriam essas as únicas opções?

Povo singular

Em seu discurso de despedida em 1978 como presidente da Associação Geral, durante o Concilio Anual, Robert Pierson (1911-1989)10 descreveu como uma seita se torna uma igreja, ao atingir completa aceitação pela sociedade, e apelou: “Irmãos e irmãs, isso nunca deve acontecer com a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Esta não é apenas outra igreja; é a igreja de Deus!” Para ele, alguns estavam cortejando a simpatia dos evangélicos e minimizando o caráter peculiar do povo adventista, mas isso jamais deveria ocorrer. “Nós não somos anglicanos do sétimo dia, nem luteranos do sétimo dia; somos adventistas do sétimo dia!

Esta é a última igreja, com a última mensagem de Deus!”

“Dialogar com amor e cordialidade é preciso.

Mas sem o temor de expor as razões de nossas peculiaridades”

A preocupação do pastor Pierson era legítima. Porém, com as mudanças do mundo e a perspectiva do século 21, podemos dizer que é possível dialogar com o mundo religioso e manter nossa peculiaridade. Preconceitos podem ser vencidos, mitos podem ser desfeitos e um maior entendimento pode ser conseguido. O diálogo não é para comprometer a mensagem, mas para ajudar a partilhá-la com inteligência e ousadia.

Uma das características da fase inicial do movimento adventista era a capacidade de buscar a verdade, inovar e expor claramente seus pontos de vista. Se o movimento não tivesse ousado inovações, não teria progredido em sua visão doutrinária. Quando a igreja pesquisa, questiona tradições e dialoga, ela se torna mais relevante; quando se acomoda e passa a viver de tradicionalismos, torna-se irrelevante.

Portanto, dialogar com amor e cordialidade é preciso. Mas sem o temor de expor as razões de nossas peculiaridades. O adventismo em seu melhor não é exclusivista nem “assimilacionista”, mas dialogai. A igreja somente terá relevância em uma esfera mais ampla se valorizar o aprofundamento constante da compreensão da verdade bíblica e tiver coragem de apresentar suas descobertas ao mundo. Se o enfoque no lado prático da religião é importante para o dia a dia da igreja, a ênfase no pensamento teológico não é menos importante em termos de estratégia a longo prazo.

Há quem faça restrições aos diálogos com outros grupos religiosos. Mas, se há uma crítica que poderia ser feita com mais propriedade, é que a igreja não ampliou sua influência o suficiente entre o mundo pensante da teologia. Por exemplo, hoje muitos teólogos conceituados pensam basicamente como os adventistas no que tange à imortalidade condicional e ao conceito bíblico de inferno. Contudo, parece que eles chegaram a essa conclusão mais por estudo próprio, apoiado pela evolução da teologia e o peso das evidências científicas, do que por influência da literatura adventista.

Questões Sobre Doutrina é símbolo de uma época em que a igreja tentava estabelecer melhor sua identidade em relação ao mundo evangélico. Nesse processo, acertou em algumas coisas e pode ter errado em outras. Isso é parte normal de qualquer empreendimento humano, mesmo quando ordenado por Deus. O importante é que estava agindo e tentando construir pontes. Essa ainda é a nossa missão.

Referências:

1 Os documentos apresentados durante a conferência podem ser acessados no site: www.qod.andrews.edu/downloads.html.

2 Ver Juhyeok Nam, “Reactions to the Seventh-day Adventist Evangelical Conferences and Questions on Doctrine, 1955-1971” (tese de PhD, Andrews University, 2005).

3 Questões Sobre Doutrina: O Clássico Mais Polêmico da História do Adventismo, edição anotada (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2009).

4 George R. Knight, “Introdução Histórica e Teológica à Edição Anotada”, em Questões Sobre Doutrina: O Clássico Mais Polêmico da História do Adventismo (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2009), p. 11, 21, 22.

5 Ver Herbert E. Douglass, A Fork in the Road (Coldwater, MI: Remnant Publications, 2008).

6 Ibid., p. 15-29.

7 David R. Larson, “Comments by a Left-Wing Neo-Andreasenite”, artigo apresentado

na Questions on Doctrine 50* Anniversary Conference, Andrews University, 24-27 de outubro de 2007, p. 1.

8 Jon Paulien, “Question on Doctrine and the Church: Present and Future”, artigo apresentado na Questions on Doctrine 50* Anniversary Conference, Andrews University, 24-27 de outubro de 2007, p. 3, 4.

9 Ibid., p. 6, 7.

10 Robert H. Pierson, “An Earnest Appeal from the Retiring President of the General Conference”, Adventist Review, 26 de outubro de 1978, p. 10,11.