O assunto do Milênio constitui um dos ensinos mais controversos e, ao mesmo tempo, mais impressionantes da igreja. Esse vocábulo não se encontra na Bíblia, mas encerra uma importante doutrina que data do período intertestamentário, quando os judeus esperavam a derrota de seus inimigos mediante a intervenção de acontecimentos de dimensões apocalípticas. O conceito etimológico da palavra faz alusão ao espaço de mil anos (do latim milleannum). Os seguidores desse ensino eram conhecidos pelo nome de “quiliastas (do grego xilio: “mil”), entre os membros da Igreja do Oriente, desde a primeira metade do primeiro século.
O uso constante desse termo deu à palavra uma aplicação restrita, mas sempre procurando dirigir o pensamento para a esperança, comumente aceita, de um período no qual viria o reino hegemônico de Davi, na pessoa do Messias, para submeter todas as nações e restituir a Israel o cetro do mundo. Então Jerusalém tornar-se-ia a capital do mundo e o lugar onde todos os homens passariam a conhecer a Deus.
Cumpre perguntar: De onde obtiveram os judeus tais asseverações? ou melhor: Qual é a origem dessa doutrina milenária? Havia uma tradição judaica muito popular no primeiro século da era cristã, a qual afirmava que os “seis dias empregados na criação do mundo são símbolos, cada um, de mil anos, e o descanso do sétimo, uma figura do milênio sabático do mundo”.1
Este ensino se apoiava com um grande sentimento de entusiasmo e confiança na breve vinda do Messias, pouco depois do cativeiro em Babilônia, e, embora a noção dessa crença se encontrasse também entre os ensinos “dos caldeus e dos egípcios”2, sua primeira fonte de inspiração foi extraída da Sagrada Escritura (Gên. 2:3; Êxo. 20:8-11; Lev. 25:1-7)
Até o tempo em que a nação judaica se manteve separada de interferências estrangeiras, o ensino do milênio abrangia um belo quadro do reino de Davi, com o cumprimento de todas as bem-aventuranças prometidas a Israel. Mas quando perderam seus direitos como nação, o Messias do reino foi transformado num comandante belicoso que viria esmagar os inimigos e restaurar o domínio mundial de Israel sobre as nações. Foi esta a interpretação que prevaleceu pouco antes do primeiro século da era cristã.
Vemos assim como os judeus proveram o ambiente escatológico da doutrina que foi abraçada com ligeiras modificações por muitos cristãos, desde a era apostólica.
A Posição dos Cristãos do Primeiro Século
É mister levar em conta que, no princípio da era apostólica, não havia acentuadas diferenças entre os conceitos teológicos defendidos pelos judeus e pelos cristãos. Era um lento processo mudar completamente a mentalidade dos judeus que aceitavam o cristianismo conservando muitas de suas antigas tradições e, em especial, as que não entravam em aberto conflito com sua nova crença. Assim, o cristão milenialista é o mesmo judeu milenialista, com uma posição teológica firmada mais sobre a segunda que sobre a primeira vinda de Cristo. Por isso proclamava que havia duas ressurreições e um milênio intermediário como prelúdio do eterno reino celestial.
Imediatamente após a disseminação da fé cristã, deparamos com destacados escritores cristãos que usaram a doutrina do milênio como meio de esperança e consolo para aqueles que sofriam perseguições, perdiam seus bens ou, em último caso, perdiam sua vida. Barnabé, o qual “escreveu muito antes que João, o apóstolo”3, é considerado como um dos primeiros expositores do milenialismo. Em sua concepção prevalece o tema judaico dos seis mil anos, sendo usada, possivelmente em termos literais, a declaração do Salmo 90:4 e a nova esperança messiânica: “que porá fim ao tempo do anticristo, mudará o Sol, a Lua e as estrelas, e reinará gloriosamente no sétimo dia’4, ou seja, no sétimo milênio.
Decadência do Conceito Judaico
Papias, o qual, segundo sua própria declaração, era discípulo do apóstolo João, escreveu um documento intitulado: “A Segunda Vinda de Nosso Senhor ou Milênio”, onde já se toma visível a separação do ponto de vista puramente judaico e a virtual preferência pelo ensino segundo o livro do Apocalipse. Dessa maneira, Papias representa a última manifestação do pensamento judaico-cristão a envolver essa doutrina.
Por outro lado, em Justino Mártir, contemporâneo de Papias, se destaca a transição definitiva da antiga posição judaica para a nova interpretação cristã. Seu ensino acerca da “parousia” abrangia um série de declarações que colocam a vinda de Cristo numa época muito posterior a seu tempo. Seus pronunciamentos constituem uma porta aberta para o estabelecimento definitivo da correta interpretação bíblica.
Justino localiza o milênio no fim da história humana. Antes dessa ocasião, é necessário que se cumpra a predição bíblica contra o homem do pecado, “que proferirá blasfêmias contra Deus e reinará três anos e meio (uma alusão ao período de Daniel 7:25). Manifestar-se-ão as heresias dos falsos profetas; Cristo virá ressuscitar os piedosos e depois virá o milênio ”4.
Entre os escritores cristãos da época pós-apostólica, aparecem várias posições, segundo ia diminuindo o apego ao texto bíblico e, como é natural, em conflito com a interpretação aceita pelos cristãos ortodoxos.
Agostinho, de Hipona, por exemplo, ensinava que o período do milênio se iniciou com a primeira vinda de Cristo e “continuará até a segunda vinda”’, afirmação que foi adotada pela Igreja até ser modificada pelo pre milenial ismo medieval que estabelecia a completa instauração do reino no fim dos mil anos.
Enfoque Teológico do Século XIX
Como a igreja cristã do primeiro século abraçou a doutrina com todos os seus antecedentes judaicos, sua verdadeira interpretação só foi conhecida depois de sérias controvérsias teológicas.
Não obstante, foi ao século dezenove que coube a satisfação de fixar a interpretação mais sensível ao ensino bíblico do milênio. Enquanto a escola milenialista volvia ao conceito judaico, os adventistas, guiados por Guilherme Miller, descobriam que Abraão, Isaque e Jacó, com todos os judeus e gentios que abraçaram a fé em Cristo, estarão juntos para gozar da herança eterna, no fim, em vez de possuir a terra de Canaã por mil anos” 6
Dentro do corpo doutrinário da igreja hoje em dia, o milênio constitui um elemento básico na predição dos eventos escatológicos. O que está envolvido nesse evento apocalíptico é o que levou a igreja a sua formação. Dizia Guilherme Miller: “Eu encontrei plenamente ensinado na Escritura que Jesus descerá outra vez à Terra, vindo nas nuvens do Céu e com toda a glória de Seu Pai; que em Sua vinda os corpos dos justos mortos serão ressuscitados para encontrar o Senhor nos ares, e reinarão com Ele. . . . Descobri que o único milênio ensinado na Palavra de Deus são os mil anos que separarão a primeira ressurreição e a dos outros mortos, como aparece em Apocalipse 20, e que deve seguir necessariamente a vinda pessoal de Cristo e a regeneração da Terra”7.
Dentro do corpo doutrinário da igreja hoje em dia, o milênio constitui um elemento básico na predição dos eventos escatológicos.
1. Jorge Bush, The Millennium, Dayton and Newman, Nova Iorque, pág. 4.
2. Idem, pág. 5.
3. Idem, pág. 9.
4 Epístola de S. Barnabé, Capítulo 15.
5. W. A. Jurgens, The Faith of the Early Fathers, Liturgical Press, Minns., 1970, pág. 61.
6. SDA Bible Student s Source Book, pág. 640.
7. SDA Encyclopedia, pág. 1.017.
Ramon Araújo C., Do Departamento de Religião do Colégio Adventista Dominicano