Que papeis a Bíblia e a experiência desempenham no crescimento cristão individual

A Reforma Protestante do século 16 estava fundamentada no princípio hermenêutico de Sola Scriptura. Muita ênfase foi posta no significado gramático-histórico do texto bíblico. Outras fontes de conhecimento religioso, como tradição, razão e experiência eram consideradas aceitáveis apenas se harmonizassem com o que era compreendido como ensinamentos da Palavra de Deus. Mas, essa abordagem tem perdido muito do seu poder, sob a influência do existencialismo filosófico, teologia do encontro, pentecostalismo e pós-modernismo. Atualmente, muitos cristãos confiam mais na experiência subjetiva que nos ensinamentos objetivos da Escritura.

Os adventistas do sétimo dia se veem como movimento profético no tempo do fim, suscitado por Deus para manter “a Bíblia, e a Bíblia só, como norma de todas as doutrinas e base de todas as reformas”.1 Porém, se é verdade que a religião cristã é uma experiência viva com Deus e lealdade aos ensinamentos bíblicos, que papéis a Escritura e a experiência desempenham na vida cristã? Como podem elas estar integradas de modo a evitar o risco de se enfatizar demasiadamente uma em detrimento da outra? A essas perguntas este artigo pretende responder.

Escritura acima da experiência

Com o passar do tempo, as denominações cristãs tendem a substituir os ensinamentos bíblicos por componentes da cultura contemporânea.Tentando reverter esse processo, algumas pessoas acabam suplantando a experiência com uma forte ênfase na Bíblia. Sob esse modelo, a dimensão objetiva da religião fala muito mais alto que a subjetiva, e a obediência a determinado corpo de regras obscurece o relacionamento vivo com Cristo. O resultado natural dessa abordagem pode ser formalismo e legalismo.

Sem dúvida, o conteúdo cognitivo da Escritura desempenha papel fundamental dentro da fé cristã. Paulo argumenta que, para alguém crer em Deus, necessita ter compreensão objetiva dEle (Rm 10:13-15). De acordo com Alister McGrath, “não cremos em Deus; cremos em certas coisas muito definidas a respeito dEle. Noutras palavras, a fé tem conteúdo bem como objeto”.3

Cristo afirmou que Seus genuínos seguidores vivem por “toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4:4), ouvem Suas palavras e as praticam (Mt 7:24). No Apocalipse, somos advertidos de que “se alguém…

fizer qualquer acréscimo” às palavras proféticas desse livro, “Deus tirará a sua parte da árvore da vida, da cidade santa” (Ap 22:18, 19). E Pedro acrescenta: “Temos, assim, tanto mais confirmada a palavra profética, e fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em vosso coração! (2Pe 1:19). Assim, não temos o direito de desconsiderar as palavras da Escritura, pois ela é a Palavra de Deus em linguagem humana.

Por mais significativas que as doutrinas bíblicas sejam, verdadeira religião é muito mais que convicção intelectual. Significa conversão espiritual que opera de dentro para fora da pessoa (Jo 3:1-21), de modo que ela se torna “nova criatura” (2Co 5:17). Nem racionalismo nem ativismo social podem gerar tal experiência salvadora.

Experiência acima da Escritura

Partindo do formalismo frio da mera religião intelectual, muitos cristãos têm superado o componente cognitivo da Escritura com algum tipo de religião carismática ou existencial. Influente nesse processo foi Martin Buber, no livro I and Thou, em que sugere a substituição do relacionamento formal pelo pessoal, ou seja, devemos tratar os indivíduos (e Deus) como pessoas com quem mantemos relacionamentos, não simplesmente como objetos de satisfação das nossas necessidades.Tal abordagem ajudou a formar a chamada “teologia do encontro”5 segundo a qual o objetivo é conhecer Deus pessoal e individualmente, não apenas conhecer a respeito dEle.6

Muitos cristãos que acreditam ouvir a “voz do Espírito”, mais que o texto bíblico, lhes falando tentam justificar tal atitude com a declaração paulina de que “a letra mata, mas o espírito vivifica” (2Co 3:6). Porém, o contexto da afirmação revela que o apóstolo simplesmente contrasta o velho e o novo concerto. O velho (referido como “a letra”) foi uma limitada sombra do novo (ver Hb 8). Mas, se assumirmos que o velho concerto foi defeituoso em sua essência, teremos que admitir que Deus estabeleceu um errôneo caminho de salvação para Israel. O problema não foi o concerto, mas sua má interpretação pelo Israel antigo e, depois, pela igreja de Corinto.

Ralph Martin sugere que a “letra” aqui se refere “a alguma interpretação da Torá que prevalecia em Corinto” ou, em outras palavras, “um uso errôneo da lei de Moisés vista como fim em si mesma e que falhou em apreciar seu verdadeiro propósito de conduzir a Cristo (Rm 10:4 – telos; Gl 3:24)”.7

Apesar das distorções da teologia do encontro e da teologia carismática, a experiência pessoal com Deus é básica para a religião cristã. Em contraste com a ênfase grega de o homem conhecer-se, a Bíblia coloca o relacionamento com Deus como fundamento de todo verdadeiro conhecimento. Isaías convidou Israel: “Buscai o Senhor enquanto se pode achar, invocai-O enquanto está perto” (Is 55:6). Oséias adicionou: “Conheçamos e prossigamos em conhecer ao Senhor” (Os 6:3). Jesus declarou que a vida eterna consiste em conhecer Deus, o Pai, e a Ele mesmo, Seu Filho (Jo 17:3). Tal conhecimento inclui profundo aspecto relacionai, bem expresso na analogia da vinha e dos ramos feita por Jesus (Jo 15:1-17), na expressão “em Cristo”, empregada por Paulo (Rm 8:1, 39; 16:3, 7, 9,10; 1Co 1:30; 2Co 5:17; Gl1:22; 5:6; Ef 1:13) e na menção que João faz a respeito de ter o Filho (1Jo 5:12).

Sabendo que a Escritura e a experiência têm papel fundamental na religião cristã, precisamos considerar mais detalhadamente sua interação com a vida cristã.

Experiência igual à Escritura

Visualizando a necessidade de conservar juntas a Escritura e a experiência, alguns cristãos são tentados a igualá-las. Exemplo disso é o assim chamado “quadrilátero Wesleyano”, no qual Escritura, tradição, razão e experiência são postas no mesmo nível de autoridade. Entretanto, Donald A. D. Thorsen assinala que a imagem de um quadrilátero pode não ser a melhor representação da teologia de Wesley:

“Se alguém insiste em escolher uma figura geométrica como paradigma para Wesley, um tetraedro – uma pirâmide tetraédrica – seria mais apropriado. A Escritura serve como fundamento da pirâmide, com os três lados formados pela tradição, razão e experiência como fontes complementares, não primárias, de autoridade religiosa.”8

Toda tentativa de promover a experiência ao nível da Escritura cria algum tipo de lealdade dividida, na qual algumas vezes a Escritura supera a experiência que, em outras vezes, pode superar a Escritura. Haverá ocasiões em que a razão humana e o gosto pessoal decidirão qual desses elementos deverá ter primazia. Assim, os ensinamentos da Bíblia com os quais alguém concorda são reconhecidos como normativos. As partes da Bíblia tidas como absurdas ou desagradáveis são consideradas culturalmente condicionadas e obsoletas. Embora a autoridade da Escritura seja compreendida, não raro ela é suplantada pela experiência.

Contrário à teologia do encontro e à teologia carismática, que tendem a substituir a Escritura pela experiência, o texto bíblico parece ser levado mais a sério na hermenêutica pós-moderna. Porém, ao empregar o “criticismo orientado para o leitor” em ligação com a Escritura,9 a abordagem pós-moderna está preocupada não tanto com o que o texto bíblico diz ou como era compreendido pelos leitores originais, mas como as pessoas hoje o compreendem e o que ele significa para elas. Ao mudar o foco da Escritura para o leitor, os pós-modernistas abrem o texto bíblico a muitas interpretações subjetivas, todas igualmente válidas. Consequentemente, já não há uma clara e consistente Palavra de Deus, mas muitas palavras conflitantes atribuídas a Ele.

Falando sobre “relevância e ambiguidade da experiência”, Anthony C. Thiselton menciona que “se a experiência é abstraída da Escritura, ela é capaz de interpretações diversas e instáveis”.10 Para evitar esse perigo, temos que considerar o que a Bíblia tem a dizer a respeito de si mesma e seu relacionamento com a experiência.

Escritura e experiência

A Bíblia estabelece que nossa experiência com Deus tem que ser informada e mediada por Sua Palavra escrita. No livro dos Salmos, a Palavra de Deus é chamada de “lâmpada” para nossos pés e “luz” para nossos caminhos (Sl 119:105). De acordo com Jesus, Seus seguidores devem viver “de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4:4). E Paulo explica: “Porque: Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarão aquele em que não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas” (Rm 10:13-15).

Esses e outros convites bíblicos para vivermos pela Palavra de Deus implicam que a Palavra precede a experiência. De acordo com Arthur Weiser, “fé é sempre a reação do homem à ação primária de Deus”.11

As evidências bíblicas indicam que a “palavra” pela qual devem viver os cristãos não é uma impressão subjetiva do Espírito Santo na consciência deles, mas refere-se às vozes proféticas objetivas relatadas nas Escrituras. Isaías adverte: “À lei e ao testemunho! Se eles não falarem desta maneira, jamais verão a alva” (Is 8:20). E Pedro acrescenta: “Temos, assim, tanto mais confirmada a palavra profética, e fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em vosso coração, sabendo, primeiramente, isto: que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1:19-21).

Mesmo aceitando a primazia da Escritura sobre a experiência, muitos cristãos hoje leem a Bíblia não mais para aprender a verdade, mas apenas para nutrir seu relacionamento místico com Cristo.12 A obediência aos componentes éticos da Bíblia é considerada derivação espontânea de um relacionamento com Jesus. Os componentes que não se enquadram nesse conceito são considerados insignificantes e irrelevantes. Por mais atraente que seja essa noção, precisamos compreender que a aceitação de Cristo como Salvador não leva alguém automaticamente a seguir certos componentes do estilo de vida cristão como guarda do sábado, entrega do dízimo e reforma de saúde. Quando alguém aceita Cristo, o princípio e a motivação para obediência são implantados em sua vida (Fp 2:13), não dando margem a qualquer mérito humano da salvação. Mas, a obediência em termos concretos tem que ser aprendida nas Escrituras.

A Bíblia declara que Jesus “crescia em sabedoria” (Lc 2:52). Ellen G. White menciona que “dos lábios dela [Maria] e dos rolos dos profetas, [Jesus] aprendeu as coisas celestiais”.13 E Paulo aconselhou a Timóteo nos seguintes termos: “Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste e de que foste inteirado, sabendo de quem o aprendeste. E que, desde a infância, sabes as sagradas letras, que podem tornar-te sábio para a salvação pela fé em Cristo Jesus” (2Tm 3:14, 15). Isso significa que o conhecimento salvador de Deus deve ser aprendido da Escritura e praticado na vida diária.

Palavra eterna

Desde que a verdadeira religião cristã é uma experiência pessoal com Deus e com os semelhantes (Mt 22:34-40), não podemos descartar seu elemento experimental sem arruinar nossa religião completa. Porém, muitos cristãos atuais aceitam uma abordagem de experiência que deixa as Escrituras abertas a muitas interpretações subjetivas. Aqueles que apoiam o princípio Sola Scriptura jamais considerarão a experiência como tendo o mesmo valor, ou até mais valor, que a Escritura. O mesmo Espírito que inspirou os profetas canônicos guiará os crentes à completa conformidade com a Palavra de Deus. “Quando vier, porém, o Espírito da verdade, Ele vos guiará a toda a verdade” (Jo 16:13). “Santifica-os na verdade; a Tua palavra é a verdade” (Jo 17:17). Em outras palavras, nossa experiência deve ser mediada e guiada pela Escritura. Nossa experiência pessoal com Deus, em vez de nos afastar de Sua Palavra, crescerá cada vez mais intimamente com ela.

Pensamento independente é considerado característica básica da pessoa amadurecida. Porém, ao mesmo tempo, maturidade cristã também significa crescente dependência de Deus e Sua Palavra.

Referências:

  • 1 Ellen G. White, O Grande Conflito, p. 595.
  • 2 Jacques Ellul, The Subversion of Christianity (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1986).
  • 3 Alister McGrath, Understanding Doctrine: Its Relevance and Purpose for Today (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1990), p. 39.
  • 4 Martin Buber, I and Thou (New York: Charles Scribner’s Sons, 1970).
  • 5 Charles B. Ketcham, A Theology of Encounter: The Ontological Ground for a New Christology (University Park, PA: Pennsylvania State University Press, 1978).
  • 6 Herold Weiss, Spectrum 7, n° 3,1975, p. 53.
  • 7 Ralph Martin, 2 Corinthians (Word Biblical Commentary; 52 v.; Waco, TX: Word Books, 1986), v. 40, p. 55.
  • 8 Donald A. D. Thorsen, The Wesleyan Quadrilateral: Scripture, Tradition, Reason & Experience as a Model of Evangelical Theology (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1992), p. 71.
  • 9 Edgar V. McKinght, Postmodern Use of the Bible: The Emergence of Reader-oriented Criticism (Nashville, TN : Abingdon, 1988).
  • 10 Anthony C. Thiselton, The mermeneutics of Doctrine (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2007), p. 451, 453.
  • 11 Arthur Weiser, em Gerhard Friedrich, ed., Theological Dictionary of the New Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1968), v. 6, p. 182.
  • 12 Morris Venden, Love God and Do as You Please: A New Look at the Old Rules (Nampa, ID: Pacific press, 1992).
  • 13 Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, p. 70.