A participação de homens e mulheres na liderança da igreja local

Precisamos ver o quadro geral da revelação de Deus, a unidade das Escrituras e a intenção final do conteúdo bíblico como um todo (uma abordagem canônica), a fim de discernir corretamente o significado da mensagem divina. A trajetória da humanidade, construída com base na metanarrativa bíblica a partir da Criação, Queda e Recriação, apresenta para os adventistas do sétimo dia o padrão fundamental. Não vamos além do texto bíblico; tudo está firmemente enraizado nele. Nossa hermenêutica é elaborada considerando a compreensão do grande conflito.1 Em relação à posição de Adão e Eva antes da Queda, a Bíblia os apresenta como sacerdotes em posição de responsabilidade sobre toda a humanidade.2

Essa postura hermenêutica, que traça suas raízes desde a Criação, é consistente, por exemplo, com a posição adventista relacionada à homossexualidade como estilo de vida. O relato bíblico da Criação apresenta o raciocínio que fundamenta a desaprovação à prática da homossexualidade. Esse pensamento está enraizado na legislação da Criação, é universal, atemporal e nunca mudou (Gn 1:26-28; 2:24;
Lv 18:22; 20:13; Rm 1:26, 27). Assim, é consistente com a trajetória bíblica construída no padrão desde a Criação, passando pela Queda e indo até a Recriação.3

Relendo a Bíblia com novo olhar

Não estamos lendo no texto algo que não esteja lá nem impondo à Bíblia um padrão externo de interpretação. A verdade sempre esteve presente; mas pode não ter sido reconhecida, ou talvez tenha sido esquecida. Assim, queremos reconhecer a verdade profunda que as Escrituras trazem, com o objetivo de redescobri-las e reaplicá-las. Ao fazer isso, entendemos que a intenção do texto está em harmonia com a metanarrativa bíblica e o caráter divino. Refletimos sobre a revelação de Deus da perspectiva da primeira vinda de Cristo, da revelação que resplandece da cruz, da perspectiva do plano de salvação e do padrão Criação-Queda-Recriação. Esse é um paradigma adventista consistente!

1. Homem e mulher foram igualmente criados à imagem de Deus. “Assim Deus criou o ser humano [ha’adam] à Sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” (Gn 1:27). Observe cuidadosamente que ambos, homem e mulher, foram criados, individualmente e juntos, à imagem de Deus. O que os torna diferentes é sua sexualidade e, com ela, seu papel particular (como paternidade e maternidade). Ser mulher não é ser subordinada aos homens, imperfeita, errada ou até mesmo má!

2. Adão e Eva eram sacerdotes no Jardim do Éden. “O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar [le’abdah uleshomrah]” (Gn 2:15). O Jardim do Éden era um santuário, e Adão e Eva eram sacerdotes nesse jardim. No Éden, o trabalho atribuído ao homem era, em realidade, “servir” (‘abad, servir) e “guardar” (shamar) o jardim (2:15), termos usados para descrever a atividade dos sacerdotes e levitas no santuário (Nm 3:7, 8; 18:3-7). A ideia de que o Jardim do Éden era um santuário é aceita por acadêmicos adventistas e não adventistas.4

3. Parceria e igualdade. “Não é bom que o homem esteja só; farei para ele uma auxiliadora [ezer kenegdo, ‘ajudadora’, ‘correspondente a ele’] que seja semelhante a ele” (Gn 2:18). Eles são diferentes, mas iguais. Contribuem um com o outro, são parceiros.

4. Pertencimento mútuo. “Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; será chamada varoa, porque do varão foi tirada” (Gn 2:23). Essa é uma declaração poética de surpresa e apreço da parte de Adão por receber um presente especial de Deus: uma linda esposa. Adão usou uma fórmula de reconhecimento, de pertencimento mútuo. Eles formam uma unidade; não é uma fórmula de nomeação.
A palavra shem não ocorre em Gênesis 2:23 como está presente em Gênesis 2:19 e 3:20. Adão deu nome a Eva somente depois do pecado (Gn 3:20).

5. Extensão dos resultados do pecado. “E à mulher Ele disse: Aumentarei em muito os seus sofrimentos na gravidez; com dor você dará à luz filhos. O seu desejo [anseio por amor, apoio, segurança, afeto e cuidado] será para o seu marido, e ele a governará’ (Gn 3:16). Como entender o versículo? Ele não prescreve ao marido que subjugue e governe a esposa (a palavra hebraica é mashal e focaliza, em última instância, a liderança do servo). O termo usado aqui é diferente das palavras empregadas em Gênesis 1:28 (kabash e radah).

A punição divina não prescreve que os humanos sejam passivos e não tentem ajudar. Essas complicações vêm como resultado e consequência do pecado, portanto, esse julgamento sobre a dor de ter um bebê, dar à luz e criar filhos não deve nos impedir de fazer todo o possível para aliviar a dor das mulheres.

Da mesma forma, o verso descreve as dificuldades no relacionamento entre marido e mulher e nos obriga a superá-las pela graça divina e por meio da conversão verdadeira (Ef 5:21-33; 1Pe 3:1-7). Isso é impossível sem a ajuda de Deus. Assim, tanto o marido quanto a esposa (e o Senhor não está falando do relacionamento entre homens e mulheres no geral) precisam dedicar a vida a Deus e viver em um relacionamento pessoal com Ele para que haja harmonia, submissão e amor mútuos no casamento. Verdadeiramente, um belo casamento só é possível para pessoas convertidas.

Ellen White explicou: “Eva foi a primeira a transgredir e caiu em tentação afastando-se de seu companheiro, contrariamente à instrução divina. Foi atendendo ao seu pedido que Adão pecou, e então foi posta em sujeição ao seu marido. Se a raça decaída tivesse cultivado os princípios ordenados na lei de Deus, essa sentença, embora proveniente dos resultados do pecado, teria sido uma bênção para o gênero humano. Entretanto, o abuso da supremacia assim dada ao homem tem frequentemente tornado muito sofrida a vida da mulher, transformando-a em um peso para ela.”5

“Ao criar Eva, Deus pretendia que ela não fosse inferior nem superior ao homem, mas em todas as coisas lhe fosse igual. O santo casal não devia ter nenhum interesse independente um do outro e, no entanto, cada um possuía individualidade de pensamento e de ação. Depois do pecado de Eva, porém, tendo ela sido a primeira na transgressão, o Senhor lhe disse que Adão teria domínio sobre ela. Devia ser sujeita ao seu marido, o que constituía parte da maldição. Em muitos casos, essa maldição tem tornado o destino da mulher extremamente doloroso, fazendo de sua vida um fardo. O homem tem abusado em muitos aspectos da superioridade que Deus lhe deu, exercendo poder arbitrário. A sabedoria infinita idealizou o plano da redenção, pelo qual a humanidade tem um segundo tempo de graça mediante outra prova.”6

6. Homem e mulher eram sacerdotes, mesmo depois do pecado. “O Senhor Deus fez roupas [kotnot] de peles [‘or], com as quais vestiu [labash] Adão e sua mulher” (Gn 3:21). Deus vestiu [labash] Adão e sua esposa com “casacos” [ketonet]. Esses são os termos usados para descrever as roupas de Arão e seus filhos (Lv 8:7, 13; Nm 20:28; cf. Êx 28:4; 29: 5; 40:14).

7. Tanto homens quanto mulheres formam o reino de sacerdotes. “Agora, pois, se ouvirem atentamente a Minha voz e guardarem a Minha aliança, vocês serão a Minha propriedade peculiar dentre todos os povos. Porque toda a Terra é Minha, e vocês serão para Mim um reino de sacerdotes e uma nação santa. São estas as palavras que você falará aos filhos de Israel” (Êx 19:5, 6). Por causa da infidelidade de Israel, um plano alternativo foi dado: somente uma família de uma tribo de Israel seria “um reino de sacerdotes”. No entanto, no Novo Testamento, Pedro aplicou Êxodo 19:5 e 6 ao sacerdócio de todos os crentes (1Pe 2:9).

8. Mulheres em posições de liderança no Antigo Testamento. Veja, por exemplo, Miriã (Êx 15:20, 21), Débora (Jz 4–5), Hulda (2Rs 22:13, 14; 2Cr 34:22-28), Ester, entre outros exemplos (Êx 38:8; 1Sm 2:22;
2Sm 14:2-20; 20:14-22).

9. Uma grande quantidade de pregadoras. “O Senhor deu a palavra, e grande é o exército das mensageiras das boas-novas” (Sl 68:11).

10. A promessa do derramamento do Espírito Santo a todos os crentes no tempo do fim, incluindo as mulheres. “E acontecerá, depois disso, que derramarei o Meu Espírito sobre toda a humanidade. Os filhos e as filhas de vocês profetizarão, os seus velhos sonharão, e os seus jovens terão visões. Até sobre os servos e sobre as servas derramarei o Meu Espírito naqueles dias” (Jl 2:28, 29).

11. A prática da igreja do Novo Testamento. Veja, por exemplo, Febe, uma diaconisa (Rm 16:1), e as mulheres que exerciam liderança na igreja de Filipos (Fp 4:2, 3). Priscila era mestra reconhecida pela igreja (At 18; Rm 16:3). A “senhora eleita” mencionada por João (2Jo 1) provavelmente fosse uma líder da igreja.

12. A igualdade defendida por Paulo. “Pois todos vocês são filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus; porque todos vocês que foram batizados em Cristo de Cristo se revestiram. Assim sendo, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vocês são um em Cristo Jesus. E, se vocês são de Cristo, são também descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa” (Gl 3:26-29).

Essa não é apenas uma declaração sobre o acesso igualitário à salvação entre vários grupos (ver Gl 2:11-15; Ef 2:14, 15). Nesse texto, Paulo falou sobre igualdade de maneira geral. Ele se concentrou especialmente em três relacionamentos de seus dias que estavam distantes do plano divino original, conforme Gênesis 1: (1) Judeu e gentio; (2) senhor e escravo; e (3) homem e mulher. No que diz respeito ao relacionamento homem e mulher, ao usar o termo grego arsēnthēlys (“homem-mulher”) em vez de anēr-gynē (“marido-mulher”), Paulo estabeleceu uma ligação com Gênesis 1:27 (a LXX emprega o termo arsēnthēlys), e assim mostra como o evangelho nos leva de volta ao ideal divino, que não tem lugar para a subordinação geral das mulheres aos homens.

13. A concessão de dons na igreja cristã. O Espírito de Deus dá gratuitamente dons espirituais, inclusive às mulheres (Jl 2; 1Co 12:11). Se o Senhor concede Seus dons espirituais às mulheres, quem somos nós para impedir? A obra de Deus só tem a ganhar se mulheres consagradas trabalharem em posições de liderança em Sua vinha.

Conclusão

Embora a Bíblia não declare especificamente que devemos ordenar mulheres como anciãs em congregações locais, não há obstáculo teológico para fazer isso. Ao contrário, a análise bíblico-teológica aponta nessa direção, porque o Espírito de Deus derruba todas as barreiras entre os diferentes grupos de pessoas na igreja e dá gratuitamente Seus dons espirituais a todos, inclusive às mulheres, a fim de cumprir a missão.

Enquanto nos aproximamos do fim da história do mundo, Deus chama Seu remanescente para se voltar à Criação (Ap 14:7) e restabelecer os ideais de Seu plano original de igualdade entre homens e mulheres. O movimento adventista deve ser um exemplo de adoração genuína e relacionamento humano verdadeiro. Mesmo que homens e mulheres sejam biologicamente diferentes e, portanto, tenham funções fisiológicas diferentes, o papel espiritual para ambos os sexos é o mesmo.

Precisamos voltar ao ideal da Criação, apesar do problema do pecado, porque a graça transformadora de Deus é mais poderosa do que o mal e pode transformar o antigo sistema em algo novo na igreja, sendo assim um modelo do mundo por vir. Da Criação à Recriação! Esse é o padrão bíblico expresso no nome adventistas do sétimo dia! 

Jirí Moskala, diretor do Seminário Teológico Adventista da Universidade Andrews, Estados Unidos

Referências

1 Ver os cinco volumes da série Conflito, de Ellen G. White

2 Richard Davidson, “Should Women Be Ordained as Pastors? Old Testament Considerations”, artigo apresentado ao General Conference Theology of Ordination Study Committee, 22 a 24 de julho de 2013, p. 1-88.

3 Ver, por exemplo, Richard M. Davidson, “Homosexuality in the Old Testament”, em Roy Gane, Nicholas Miller e H. Peter Swanson (orgs.), Homosexuality, Marriage, and the Church: Biblical, Counseling, and Religious Liberty Issues (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2012), p. 5-52.

4 Ver Richard M. Davidson, Song for the Sanctuary (Silver Spring, MD: SDA Biblical Research Institute, a ser publicado); Margaret Barker, The Gate of Heaven: The History and Symbolism of the Temple in Jerusalem (Londres: SPCK, 1991), p. 68-103; G. K. Beale, The Temple and the Church’s Mission: A Biblical Theology of the Dwelling Place of God (NSBT 17; Downers Grove, IL: InterVarsity, 2004), p. 66-80; Donald W. Parry, “Garden of Eden: Prototype Sanctuary”, em Donald W. Parry (org.) Temples of the Ancient World: Ritual and Symbolism (Salt Lake City, UT: Deseret, 1994), p. 126-151; Terje Stordalen, “Echoes of Eden: Genesis 2–3 and Symbolism of the Eden Garden in Biblical Hebrew Literature” (CBET 25; Leuven, Bélgica: Peeters, 2000), p. 111-138; Gordon J. Wenham, “Sanctuary Symbolism in the Garden of Eden Story”, Proceedings of the World Congress of Jewish Studies 9 (1986), p. 19-25.

5 Ellen G. White, Patriarcas e Profetas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), p. 34, 35 [58, 59].

6 Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), v. 3, p. 402 [484].