II. A Contaminação do Santuário e os Ritos de Purificação

sistema israelita de sacrifícios tinha como principal objetivo gravar no pensamento do povo o princípio de que cada pecado é punido com a morte (cf. Rom. 6:23). Nosso problema, no entanto, consiste em saber por que, às vezes, a morte de um animal substitutivo não era para expiar a falta cometida, e que relação tinha esse tipo de pecado com a contaminação do santuário.

Até agora os eruditos têm encontrado certa dificuldade para estar de acordo no tocante aos pecados que eram punidos com a morte em Israel.1 A dificuldade principal provém talvez da distinção feita em Números 15, entre os pecados involuntários e os pecados inexpiáveis, que são pecados de toda evidência, pecados deliberados. Não obstante, devemos perguntar a nós mesmos se esse contraste entre pecados inconscientes e pecados deliberados deve necessariamente e em todos os casos ter uma correspondência exata com o contraste entre pecados perdoáveis e pecados mortais.2

Outro fato embaraçoso se impõe quando consideramos certas prescrições levíticas. Com efeito, elas por vezes fazem distinção entre os pecados involuntários, hatta’t (Lev. 4), e os pecados de culpabilidade, ‘asam (Lev. 5).3 Apesar do inegável caráter deliberado de alguns ‘asam, ficamos perplexos diante do fato de que esse tipo de pecados também pode ser expiado.4 Além disso, tuna olhada mais atenta às palavras fundamentais utilizadas no Antigo Testamento para definir os pecados, nos mostra que elas podem descrever tanto os pecados dignos de morte como os pecados perdoáveis.5

Como alguns teólogos têm negado a possibilidade do perdão para os pecados deliberados e premeditados,é necessário considerar com um pouco mais de cuidado alguns exemplos precisos encontrados nas leis levíticas que afirmam o contrário. Além disso, vários exemplos encontrados nos livros históricos reforçam este último ponto de vista.

a) Os pecados deliberados e o arrependimento

Entre os pecados ‘asam que podem ser expiados se encontra o falso juramento pronunciado diante de Jeová por um ladrão (Lev. 6:2-7; cf. 19:11-13).7 Este fato é mais assombroso se levarmos em conta que “toda promessa ou compromisso feito no nome de Deus é irrevogável”8 (Êxo. 20:7; Lev. 19:12; Núm. 30:3; Deut. 23:21-23; Jos. 9:19; Juí. 11:35, etc.). Além disso, “o pecado de blasfêmia não podia jamais ser anulado ou atenuado”.(Êxo. 22:28; Lev. 24:11-17; I Reis 21:10-13.) Como pode ser, então, que Lev. 6:2-7 trate de tuna expiação possível para o que se arrepende?10

É evidente que um ladrão que tenha sido acusado como suspeito, embora sem testemunhas, pode ser capaz, premido pelas circunstâncias, de utilizar até o nome de Jeová para ocultar sua mentira. Apesar disso, depois de haver refletido sobre o caso, atormentado por uma consciência culpável, de sua própria vontade, sem que haja alguém para testificar contra ele, pode fazer a confissão de seu pecado deliberado e obter o perdão.11

Assim, os delitos normalmente punidos com a morte eram reduzidos à condição de pecados involuntários. A capacidade de arrepender-se, em alguns casos, era pois “um fator que atenuava a retribuição divina”.12

Outro grupo de textos, sempre em Levítico, tem que ver também com pecados deliberados (Lev. 5.-1-5).13 Neste grupo, a redução dos pecados ‘asam para a categoria de hatta’t está bem definida;14 esses pecados ‘asam estão, além disso, em contraste direto com os pecados hatta’t, involuntários, do capítulo anterior.

Fora dos códigos levíticos encontramos outros exemplos de pecados deliberados que foram reduzidos pelo arrependimento à condição de pecados involuntários.15 Entre eles se encontram: o pecado de Davi (II Sam. 12:13; cf. Sal. 51:1-4 e 9-12; II Sam. 24:10); a abominável debilidade de Acabe (I Reis 21:25-29); a assassina apostasia de Manassés (II Crôn. 33:2-10), onde sobressai seu arrependimento quase incrível (vs. 12-16, 18 e 19); o despertar da consciência de Josias em nome da nação (II Reis 22:18-20); e, de maneira mais geral, a reação positiva de Nínive (Jon. 3:4-10).16

Nesta mesma ordem de ideias, os profetas convidam para arrependimento, mesmo por pecados conscientes, normalmente não expiáveis (Isa. 1:5 e 6 e 15-18; Ezeq. 33:10 e 11, etc.). Nesses apelos, o propósito não consiste num simples arrependimento que abandona o pecado, mas também na reparação do mal cometido (ver Miq. 6:6-8, etc.).

Chegamos, pois, à conclusão de que o pecado imperdoável, no Antigo Testamento, não pode ser definido simplesmente como “pecado deliberado” ou “premeditado” ou “voluntário”.17 Por certo, a pena de morte era aplicada somente em casos de pecados conscientes e premeditados, mas nem todos os pecados desse tipo eram punidos desse modo. Entre os pecados conscientes, somente aqueles que eram cometidos “atrevidamente” (“à mão levantada”: biyad ramah — Núm. 15:30), em rebelião aberta’ contra Deus, não podiam ser expiados, e isto só ocorria em certas circunstâncias muito especiais.

b) Circunstâncias especiais nas quais o pecado é inexpiável

Uma vez aclarado este ponto, não é difícil de ver que todos os castigos mortais exigidos nos diferentes códigos do Pentateuco e executados segundo os diversos relatos do Antigo Testamento, devem ser julgados pelas circunstâncias, e não simplesmente pelo delito em si. A severidade, às vezes aparentemente excessiva, das leis levíticas, pode ser, então, melhor compreendida à luz do contexto sob o qual foram ordenadas. Com efeito, elas foram prescritas a um povo que vivia ao redor de uma montanha ou de uma tenda na qual a presença da divindade era visível18 — embora oculta detrás duma cortina ou sob uma nuvem. Podemos perguntar, portanto: Em que sentido esta circunstância especial de um povo que rodeava o santuário divino podia agravar a penalidade dos pecados?

1) A consciência da presença divina e o conhecimento de Sua vontade eram favorecidos pela vivência cotidiana do povo ao redor do santuário (Núm. 2:2; Êxo. 33:5-7, etc.).

2) O perigo de contaminar o tabernáculo divino e o caráter sagrado do culto de Jeová se tornava mais evidente por sua proximidade do povo (Lev. 15:31).

Estes dois aspectos explicam também por que alguns pecados capazes de ser perdoados nalgumas ocasiões adquiriam, diante da tenda divina, uma conotação de pecado “à mão levantada”. Por esta razão, as leis eram muito mais severas para os sacerdotes do que para o povo (ver por exemplo Lev. 21:4 e 17-23) e mais estritas ainda para o sumo sacerdote (Lev. 21:10-15). O próprio Pentateuco passava a ser, nalgumas ocasiões, o relato de um Deus que vacilava entre deslocar Sua tenda para fora do acampamento onde habitava Seu povo, ou destruir o povo por sua rebelião (Êxo. 32:10; 33:5 e 7-10; Lev. 10:1-3; Núm. 11:1-3, 24-30, 33 e 34; 14:10-12 e 37; 16:19-21, 31-35 e 41-50; cf. Êxo. 19:12, 13 e 21-24; 20:19 e 20).

No entanto, uma vez dispersado na Terra Prometida, o afastamento do santuário podia causar a apostasia do povo mais rapidamente.20 A relação privilegiada de ser vizinhos de Deus, vivida cotidianamente, não seria daí tão frequente. O risco de contaminar o tabernáculo divino, por outro lado, seria eventualmente menos direto (cf. Jos. 22:19). Por conseguinte, as represálias divinas podiam ser atenuadas ou retardadas devido à ignorância.

Isto não quer dizer que as leis do Pentateuco, tão severas por seu contexto de proximidade do santuário, em volta do qual o povo vivia no deserto, não deviam manter seu rigor na Terra Prometida. A condição de santidade do povo com o qual fora firmado o concerto divino devia projetar-se também para a época sedentária, a fim de que Israel continuasse a ser o povo de Jeová. O propósito era que o tabernáculo, ou, mais tarde, o templo, estendessem constantemente sua influência sobre toda a terra da Palestina (Lev. 26:11 e 12; cf. v. 6; 25:2). Mas, para impor essas leis na Terra Prometida, era requerido esse estado ideal de relações entre Deus e Seu povo. Entre esse ideal e a realidade, infelizmente se encontra um abismo que só a graça divina, sempre levando em conta as situações diferentes, podia transpor.

Para enfrentar esse perigo de apostasia na Terra Prometida, ou melhor ainda, para manter ali a relação ideal entre Deus e Seu povo, os escritores bíblicos falam essencialmente de quatro soluções positivas e eventuais:

1) O ensino doméstico-religioso, acompanhado de certos sinais pedagógicos (Deut. 6:7-9; 11:18-21).

2) A peregrinação ao santuário nas festas religiosas, a qual era obrigatória três vezes por ano (Êxo. 23:14-19; 34:18-26; Deut. 16:1-17; Lev. 23; Deut. 31:10-13).

3) O envio de mensageiros (profetas) para advertir o povo contra a apostasia (Deut. 18:15-19; cf. 20-22; 13:l-5).21

4) As escolas dos profetas (cf. I Sam. 10:10-12; II Reis 2:3, 5, 7, 15 e 16).

Além disso, as bênçãos e maldições deuteronômicas mostram certa preocupação por manter a coerência cívico-religiosa de Israel (Deut. 27:11-26; 28:1-68). Vários preceitos no Pentateuco buscam também, mediante prescrições bem severas, evitar que o povo se contamine com os pecados capitais dos pagãos que os haviam precedido (Lev. 18:20 e 26; Deut. 7:1-5; 8:19 e 20; 12:29; 14:2; 16:18; 17:23; 18:9-14, etc.).22

A despeito de todas essas prevenções e medidas adotadas, a conservação dos vínculos religiosos e nacionais nem sempre pôde ser mantida, e tanto a paciência como a tolerância divinas tiveram de ser maiores. À medida que a apostasia se ampliava, as ordens de morte não podiam ser executadas de maneira coerente. A falta de conhecimento por um lado, e a falta de pessoas com suficiente valor moral e capacidade para impor-se diante de uma maioria apóstata, por outro lado, dificultava a aplicação dessas leis cívico-religiosas de Israel. Então, o Deus da Bíblia é apresentado como chamando os pagãos para castigar a Seu povo.

Precisamos, pois, levar também em conta a condição espiritual do povo quando esses pecados eram cometidos, e o número de desobedientes em relação com o número total de pessoas da congregação. Quando a apostasia era generalizada, podia conduzir ao extermínio total do povo ou à preservação de um remanescente fiel (Êxo. 32:9, 10 e 31-34; I Reis 19:18; Isa. 1:9; 4:2-4; 11:11 e 16; 27:6, 12 e 13; Jer. 31:27 e 28; Ezeq. 37:11-14 e 21-28, etc.). Mas, no quadro de um povo santo, separado do mundo e contando com a bênção divina, o pecado individual ou o que era cometido por um pequeno número de pessoas, ou mesmo por um grupo mais considerável, sem constituir, porém, a maioria, podia tornar-se inexpiável e, por conseguinte, punido sem demora. A tolerância quebraria a comunhão do povo com o seu Deus, e as consequências seriam piores (Lev. 20:4 e 5).

Podemos concluir, então, dizendo que quando o povo, em conjunto, estava em boas relações com o Deus do santuário, ou quando o arrependimento depois de uma apostasia era geral, a persistência individual ou minoritária em continuar na apostasia, ou a desobediência aberta à vontade divina, era punida com a morte. Nesses casos, até pecados normalmente expiáveis pelo sacrifício podiam adquirir a característica de pecados “à mão levantada” (biyad ramah) e ser punidos com a morte. O Dia da Expiação se situa justamente no quadro de uma situação dessa natureza (Lev. 16:29; 23:27, 29 e 30; Núm. 29:7).

Referências

1. Tem-se procurado classificar os diversos tipos de pecados em “pecados de omissão” e “pecados de comissão” (B. A. Levine, In the Presence of the Lord. Leiden, 1974, pág. 109; segundo este autor, os pecados ‘asan são pecados de omissão, e os hatta’t, pecados de comissão], “pecados furtivos ou não furtivos” (J. Milgrom, Cult and Conscience, Leiden, 1976, págs. 102 e 126), pecados premeditados e não premeditados, deliberados e não deliberados, voluntários e de inadvertência, etc. Ver Mischnah Shebuoth 1:6.

2. Entre os autores que pensam que os pecados deliberados não eram expiáveis, se encontram R. de Vaux, Les Institutions de l’AT, Paris, II, 1967, pág. 297; H. H. Rowley, Worship in Ancient Israel. Its Forms and Meaning, Londres, 1967, pág. 134.

3. Levine reconhece que essas prescrições “sempre têm sido uma fonte de confusão e dificuldade para os estudantes do culto israelita”, op. cit., pág. 108. De Vaux: “É bem difícil determinar o que distingue essas duas espécies de sacrifícios. Já os antigos não estavam de acordo como por exemplo Filon e Josefo, op. cit., pág. 298.

4. De Vaux admite que algumas prescrições hatta’t e asam de Levítico 5 não são “de simples inadvertência”. Por exemplo, Levítico 5:1, 15 e 16. Mas ele pensa que “os últimos redatores que estabeleceram essas regras confusas não sabiam claramente o que era o sacrifício hatta’t e o sacrifício ‘asam; ou melhor, eles queriam distinguir os termos que originalmente eram sinônimos; ou ainda, eles confundiram os termos dos quais não conheciam mais o valor específico”, op. cit., pág. 299. Milgrom vê em Levítico 6:2 e Núm. 5:6-8, pecados ‘asam deliberados, mas crê que o “arrependimento neutraliza o aguilhão de um falso juramento reduzindo sua condição a um pecado involuntário”, op. cit.. pág. 118.

5. Ver A. Treiyer, Le Jour des Expiations et la Purification du Sanctuaire. Tese doutorai em Teologia, Strasbourg, 1982, págs. 122 e 123, com um quadro de textos abrangendo as palavras ‘asam, awon, pasa e ma’al.

6. Ver referência 2.

7. J. Milgrom, op. cit., págs. 84-128; especialmente a página 85, ref. 300: “… ele o nega sob juramento. Se assim é, a ‘transgressão contra o Senhor’ que nos vs. 15 a 19 foi atribuída à real ou suposta profanação da propriedade de Deus é agora atribuída à profanação do nome de Deus.” Na página 101, este autor conclui: “Levítico 5 também trata do roubo, não a categoria geral em que o ladrão é inidentificável, mas os casos especiais em que a sua identificação conduz a um falso juramento.”

8. Idem, pág. 118.

9. Ibidem.

10. É verdade que os votos podiam ser anulados quando algumas circunstâncias superavam a capacidade da pessoa para cumpri-los (Núm. 6:12; 30:6, 9, 13 e 14; cf. I Sam. 14:24. 26-28, 37 e 43-45). Aqui, porém, se trata do juramento de um ladrão.

11. Esta é a opinião também de J. Milgrom, op. cit., pág. 124.

12. Idem, pág. 119; ver especialmente páginas 123 e 124.

13. G. F. Hasel, “Studies in Bliblical Atonement I”, em The Sanctuary and the Atonement, Washington. 1981, pág. 105.

14. R. A. Levine, op. cit., pág. 109.

15. Ver J. Milgrom, op. cit., págs. 119-121.

16. A expiação feita com o incensário em Números 16:46-48 mostra como por ocasião de um juízo, Deus levou em conta a intercessão de Arão de uma maneira semelhante à intercessão de Moisés (Êxo. 32:30-35), de Abraão (Gên. 18:23-32) e de outros profetas, para com aqueles que eram dignos de morte. Arão, na verdade, não pôde eliminar a pena de morte, mas só a supressão ou demora do juízo (cf. Êxo. 32:33 e 34). Unicamente o arrependimento posterior, acompanhado do sacrifício, podia salvá-los definitivamente da morte.

17. Embora a distinção comissão-omissão, furtivo-não-furtivo, esteja mais próxima em princípio da realidade das leis e práticas do Antigo Testamento, estas palavras não são suficientes para abranger toda a realidade veterotestamentária. E. Jacob crê também que, “de modo geral …. a expiação não se restringe unicamente ao pecado cometido por inadvertência, bishegagah, pois os pecados mencionados (Lev. 5:14-19; 19:20-22; Núm. 5:5-8) são perfeitamente conscientes e voluntários, sendo, portanto. suscetíveis de punição”, Théologie de l’AT, Neuchatel, 1968, pág. 236.

18. Êxodo 19:16; 20:18, 19 e 22; 34:1, 2 e 28; 40:34-38; Lev. 1:1; 16:1; 25:1; Núm. 1:1; 3:1; 7:1 e 4; 9:1 e 15-23, etc.

19. Nenhuma ocasião estava tão carregada de advertências e ameaças de morte como o dia em que o sumo sacerdote entrava no lugar santíssimo; ver A. Treiyer, op. cit., págs. 13-17. Os diferentes ritos para os leprosos que eram curados, para que pudessem aproximar-se do templo como os outros pecadores dentre o povo, também ensinam de outra maneira esta mesma verdade. Idem, págs. 135-138.

20. Alguns textos do Pentateuco advertem contra este perigo com exortações para não olvidar a relação ideal de santidade mantida com Deus no deserto (Deut. 6:10-12; 8:11, 14-16, 18 e 19; 12:29; 14:2; 16:18; 17:23; 18:9-14, etc.).

21. As advertências contra os falsos profetas pressupõem também a existência de verdadeiros mensageiros divinos.

22. Cumpre destacar que em geral estas prescrições partem da base de um povo santo que deve manter sua pureza, e não de uma degradação geral que deve ser ajustada por tais leis.