Qualquer método missionário que não estiver centralizado na teologia é mera antropologia

O termo “missões” foi usado inicialmente pelos jesuítas, no século 16. Desde então, tem sido usado em referência a movimentos missionários. No Ocidente, muitas missões serviam para evangelizar e “aculturar” a partir de uma pretensa cultura superior. Alguns, com certa soberba, criam que quando o missionário pisava no campo missionário, “Deus chegava àquele território”. Na década de 50, o cristianismo despertou a ideia de “missio Dei” e, com ela, a utilização no singular da palavra “missão”.1

Isso significou a mudança de paradigma; a missão passou a ser entendida como sendo de Deus com a colaboração do homem. O primeiro expoente desse conceito foi Karl Barth. “A igreja existe porque existe a missão, e não o contrário”.2 A missão nasce no coração de Deus, e existe “porque Deus ama as pessoas”. O reconhecimento dessa realidade foi uma descoberta assombrosa, em relação aos séculos anteriores, e libertou a igreja de uma ideia estreita da missão. “A missão é primeira e finalmente obra do Deus triúno… um ministério no qual a igreja tem o privilégio de participar.”3

A missão não deve estar à frente de Deus. Ele é quem vai à frente dela. Antes da antropologia, metodologia e tecnologia, está a teologia. Qualquer método de missão que não estiver centralizado na teologia é mera antropologia.

No Gênesis

O Antigo Testamento apresenta a expressão “El Shadday” 48 vezes. Em Gênesis, aparece seis vezes, identificando Deus no trato com Abraão, Isaque e Jacó. No livro de Jó, aparece 31 vezes. No livro do Êxodo, a expressão é vista apenas uma vez, também referindo-se a Deus no trato com Abraão, Isaque e Jacó. Em Números, aparece duas vezes, ligada a Balaão (Nm 24:4,16). Moisés menciona a expressão El Shadday 33 vezes em relação a pessoas fora do povo de Deus; e sete vezes relacionando-a com Abraão, Isaque e Jacó, no sentido de ser uma bênção para todas as etnias da Terra (Gn 17:1; 28:3; 35:9-11; 43:14; 48:3, 4; 49:25; Êx 6:3).

No contexto da missão no Antigo Testamento, El Shadday é quem envia e promete que “serão abençoadas” todas as famílias e nações da Terra.

A ordem de crescer e multiplicar (Gn 1:28; 9:1) chegou a ser uma fórmula usual de bênção, presente em toda a Bíblia.4 Nas seis vezes em que El Shadday aparece em Gênesis (Gn 17:1-6; 28:3; 35:9-11; 43:14; 48:3,4; 49:25), está relacionada com “bênção” e “crescer e multiplicar”. Deviam crescer as aves e os peixes (Gn 1:22); Adão e Eva (Gn 1:28); Noé e sua família (Gn 9:1, 7); Abraão, Isaque, Jacó e sua descendência (Gn 17:1-6,16; 35:9-11; 48:3, 4), assim como Israel no Egito (Êx 1:7).

Com base nesses textos e suas relações, é possível analisar três aspectos da missão: 1) O Onipotente conduz a missão de abençoar, fazer crescer e multiplicar todas as etnias. 2) Seres humanos comuns partilham as bênçãos do Messias. 3) O destino da bênção é todas as etnias da Terra. Neste artigo, analisaremos apenas o primeiro aspecto.

A direção divina

Deus abençoou os israelitas no Egito, de modo que “foram fecundos, e aumentaram muito, e se multiplicaram, e grandemente se fortaleceram, de maneira que encheram a Terra” (Êx 1:7). O inimigo tentou destruí-los, “mas, quanto mais os afligiam, tanto mais se multiplicavam e tanto mais se espalhavam” (Êx 1:12). Quando o povo se queixou por causa da opressão, Moisés se dirigiu a Deus, dizendo: “e Tu, de nenhuma sorte, livraste o Teu povo” (Êx 5:23). Deus, então, lembrou que a missão no Egito seguia o modelo da que tinha sido dada a Abraão, Isaque e Jacó, sob Sua direção: “Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-poderoso [El-Shadday]” (Êx 6:3).

Também diz que Ele Se lembrou da aliança (Êx 6:4, 5), que ouviu os gemidos de Seu povo, e que tudo estava sob Seu controle. E lhe ordenou dizer ao povo: “Eu sou o Senhor, e vos tirarei de debaixo das cargas do Egito, e vos livrarei da sua servidão, e vos resgatarei com braço estendido e com grandes manifestações de julgamento. Tomar-vos-ei por Meu povo e serei vosso Deus; e sabereis que Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos tiro de debaixo das cargas do Êxito. E vos levarei à terra a qual jurei dar a Abraão, a Isaque e a Jacó; e vo-la darei como possessão. Eu sou o Senhor” (Êx 6:6-8).

Com efeito, “partiram… de Ramessés no décimo-quinto dia do primeiro mês … os filhos de Israel, corajosamente, aos olhos de todos os egípcios” (Nm 33:3). El-Shadday dirigia a missão. Tirou-os do Egito, para ser seu Deus (Lv 26:45). “O que fiz, porém, foi por amor do Meu nome, para que não fosse profanado diante das nações no meio das quais eles estavam” (Ez 20:9). “As nações [sempre] foram testemunhas reais. Os atos salvadores de Jeová, o castigo e a restauração de Israel foram ao mesmo tempo uma pregação para as nações.”5 Somente Deus pode fazer a igreja crescer; mas a igreja deve testemunhar. “A missão de Deus envolve o Seu povo vivendo à maneira de Deus, à vista das nações.”6

Desvio de rota

Durante aproximadamente dez anos, Abraão e Sara permaneceram em Canaã, cumprindo a missão de erguer altares, mas a descendência continuadora da missão não surgia. Os registros mesopotâmicos aludem a costumes vigentes, segundo os quais casais ricos deixavam sua herança a um dos seus criados de confiança. Abraão questionou que seu herdeiro tivesse que ser Eliezer, e Deus lhe respondeu: “Não será esse o teu herdeiro; mas aquele que será gerado de ti será o teu herdeiro” (Gn 15:4). Porém, aparentemente, Sara percebeu um plano divino sem ela: “Eis que o Senhor me tem impedido de dar à luz filhos; toma, pois, a minha serva, e assim me edificarei com filhos por meio dela. E Abraão anuiu ao conselho de Sara” (Gn 16:2).

Sara atribuiu sua esterilidade a Jeová. Amargurada, enveredou pelo caminho errado da missão, propondo a Abraão que tivesse filhos com Agar, sua serva egípcia. “Esse modelo estava em harmonia com os costumes da Mesopotâmia durante a era patriarcal”.7 Mas não estava em harmonia com a vontade de Deus. Era o plano humano sem fé nas promessas feitas a Abraão (Gn 15:4). Eram as folhas de figueira de Adão e Eva (Gn 3:7), o “fruto da terra” do sacrifício sem sangue de Caim (Gn 4:3), “e tudo o que não provém de fé é pecado” (Rm 14:23).

Deus não necessitava da missão humana de Sara e Abraão, tentando ajudá-Lo. Ismael nasceu trazendo problemas (Gn 16:4-9) que até os nossos dias têm sido estorvo para a missão entre seus descendentes literais e espirituais. Sempre que tomarmos a iniciativa de suprir com ações humanas a ausência dos feitos poderosos do grande El-Shadday, colheremos a maldição do homem “que confia no homem” (Jr 17:5). Mas, “colaborando a vontade do homem com a de Deus, ela se torna onipotente”.8

Assim como no caso de Ismael, o proselitismo judeu também foi um desvio da missão divina. Diferente de evangelização, proselitismo é a ação de conquistar seguidores para um grupo, como um partido político. Horácio, poeta latino do primeiro século, dizia: “Se não queres vir voluntariamente, faremos como os judeus e te obrigaremos a vir”.9 Segundo Latourette, “pelo judaísmo helenístico, foram conquistados muitos conversos entre as comunidades gentias vizinhas. Os judeus estavam profundamente convencidos de que sua religião era a única verdadeira e que, algum dia, se tornaria mundial”.10

Quer seja pelo enfoque humano e de coação, ou porque os judeus “praticavam… todas as suas obras com o fim de serem vistos pelos homens” (Mt 23:5), Jesus condenou seu proselitismo: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque rodeais o mar e a Terra para fazer um prosélito; e, uma vez feito, o tornais filho do inferno duas vezes mais do que vós!” (Mt 23:15). Os prosélitos eram judeus fanáticos. “Justino… conta que um judeu prosélito blasfema de Cristo duas vezes mais que um judeu de sangue.”11 Muitos deles eram convertidos só na aparência e traíam o judaísmo. “O próprio Talmude chega a dizer que os prosélitos eram uma doença em Israel. E os apresenta como obstáculo à vinda do Messias.”12

Em 1882, Ellen White advertiu contra o perigo de hábitos e práticas não cristãs, iguais ao proselitismo judeu: “A aquisição de membros que não foram renovados no coração nem reformados na vida é uma fonte de fraqueza para a igreja. Este fato é muitas vezes passado por alto. Alguns pastores e igrejas se acham tão desejosos de assegurar um aumento de membros, que não dão testemunho fiel contra hábitos e costumes não cristãos.”13

O plano de Deus

Abraão, com 100 anos, e Sara, com 90 anos e estéril, não podiam ser progenitores de multidões que abençoariam as nações. Por isso, El-Shadday apareceu a Abraão e lhe disse: “Anda na Minha presença e sê perfeito. Farei uma aliança entre Mim e ti e te multiplicarei extraordinariamente” (Gn 17:1, 2). Abraão devia ser diferente, deixar as práticas e os costumes pagãos, e cooperar com El-Shadday, caminhando com Ele e ser perfeito. Deus mudou os nomes do casal. O pai Abrão tinha que ser humilde e confiar no Senhor, a fim de poder ser “pai de numerosas nações” (Gn 17:4). Sarai, “minha princesa”, seria Sara, “a princesa”, ou “mãe de nações” (Gn 17:15,16).

Abraão não podia entender como poderiam ter filhos. E voltou a pensar em Ismael: “Tomara que viva Ismael diante de Ti” (Gn 17:18). “Intercedeu em favor de Ismael a quem amava entranhavelmente e a quem considerava seu filho e herdeiro.”14 Preferia “o filho de seu plano, mesmo em lugar do que nasceria de Sara. Ademais, isso o livraria de ter que renunciar publicamente ao plano de fazer Ismael seu herdeiro.”15 Em Sua misericórdia, Deus lhe repetiu a fórmula de bênção dada a Adão e a Noé: “Quanto a Ismael, Eu te ouvi: abençoá-lo-ei, fá-lo-ei fecundo e o multiplicarei” (Gn 17:20). Era uma missão dentro da missio Dei, porém, fora do plano que tinha para Isaque. Era uma bênção sobre um Ismael não culpável. Mas, de todas as formas, “Ismael não podia ficar mais tempo no lar, sem pôr em perigo o plano de Deus para Isaque”, para quem convergiam a aliança divina e as bênçãos espirituais.16 Abraão devia entender que “nossos planos são com frequência frustrados, a fim de que sejam cumpridos os planos de Deus a nosso respeito”.17

O segredo consiste em cooperar com o Todo-poderoso, fazendo discípulos que deem testemunho a toda nação, tribo, língua e povo.

Sinais de esperança

Assim como, nos anos 50, o cristianismo mudou em direção à missio Dei, nos anos 80, a Igreja Adventista começou a mudar na mesma direção, ao estabelecer a Crença Fundamental 17, sobre os dons e ministérios espirituais. E, novamente, mudou em 2005, ao acrescentar a crença intitulada “Crescimento em Cristo”.

A Igreja Adventista já penetrou em 204 dos 228 países, e trabalha de forma oral ou escrita em 817 idiomas e dialetos. Porém, existem 13.600 idiomas e dialetos vivos.18 A Bíblia está escrita em 6.600 desses idiomas e dialetos, falados por 6.405 milhões de pessoas, o que corresponde a 95,6% da população do mundo. Ainda é necessário divulgar a Bíblia em sete mil idiomas e dialetos falados por 286 milhões de pessoas, ou 4,4% da população mundial.19

Por outro lado, há entre doze mil a cem mil grupos em que necessitamos estabelecer o adventismo. De acordo com Mike Ryan, um dos vice-presidentes da Igreja Adventista, investimos 99,98% dos dízimos e ofertas em áreas em que a igreja está estabelecida, e apenas 0.02% em territórios de Missão Global. Na chamada Janela 10-40, vivem 60% dos habitantes do mundo, porém somente 10% de adventistas.20

Como se percebe, ainda necessitamos de uma estratégia mais agressiva para alcançar todas as etnias. Felizmente, atitudes como humildade para corrigir erros e analisar as razões pelas quais, em alguns lugares, poucas pessoas são batizadas; maior interesse pela oração intercessora e pela busca do Espírito Santo, maior atenção aos ministérios dos dons espirituais, pequenos grupos como estilo de vida, projeto como as 40 madrugadas, ciclo do discipulado, entre outros planos, evidenciam que estamos colaborando para que El-Shadday cubra toda a Terra com Sua glória. A igreja está se movendo conforme os seguintes princípios:

  • ♦ Oração intercessora – deixar nas mãos de Deus a missão de abençoar todas as etnias, crescendo e multiplicando.
  • ♦ O entendimento que a missão é, primeiramente, divina; depois, humana. É missão divina com a cooperação humana. Portanto, humildemente, devemos cooperar com Deus.
  • ♦ A conscientização de que desvios de rota, como no caso de Sara e Abraão, proselitismo ou jogo de números com motivação não cristã, somente a enfraquecem.
  • ♦ Sendo que toda a Bíblia trata da relação do Messias com as etnias, focalizar ainda mais a missão de cada igreja no estabelecimento de novas congregações em todos os bairros, tribos, povos, línguas e nações.

Referências:

  • 1 Walter C. Kaiser Jr., Mission in the Old Testament: Israel as a Light to the Nations (Grand Rapids, MI: Baker Books, 2000), p. 11.
  • 2 David Bosh, Misión en Transformación: Cambios de Paradigmas en la Teologia de la Misión (Grand Rapids, MI: Libros Desafio, 2000), p. 477.
  • 3 Ibid., p. 479.
  • 4 Francis D. Nichol, Comentario Bíblico Adventista, v. 1, p. 226.
  • 5 Walter Vogeis, God’s Universal Covenant:A Biblical Study (Ottawa: University of Otawa Press, 1986), p. 67, 68.
  • 6 Ibid., p. 68.
  • 7 Sigfried H. Horn, Diccionario Bíblico Adventista del Séptimo Dia (Florida, Buenos Aires: Aces, 1995), p. 589.
  • 8 Ellen G. White, Parábolas de Jesus, p. 333.
  • 9 Horácio, Sátiras 1.4.142,143.
  • 10 Kenneth Scott Latourette, Historia del Cristianismo (El Paso, Texas: Casa Bautista de Publicaciones, 1983), p. 45.
  • 11 Manuel de Tuya, Bíblia Comentada, p. 505.
  • 12 Ibid.
  • 13 Ellen G. White, Evangelismo, p. 319.
  • 14 Siegfried H. Horn, Op. Cit., p. 582.
  • 15 Francis D. Nichol, Op. Cit., p. 336.
  • 16 Ibid., p. 357, 331, 336.
  • 17 Ellen G. White, A Ciência do Bom Viver, p. 473.
  • 18 Associação Geral da IASD, Annual Statistical Report 2000, p. 67, 75.
  • 19 David B. Barret, Todd M. Johnson e Peter F. Crossing, “Missionetrics 2008”, IBMR, v. 32, n° 1, p. 29, 30.
  • 20 John Dybdahl, Adventist Mission in the 21st Century, p. 160,161.