Elbio Pereyra

Verbal, Mecânica ou Dinâmica?

A Bíblia certamente contém uma doutrina sobre a revelação-inspiração. Paulo e Pedro, em especial, fazem clara alusão a ela.1 Evidentemente, os orientais não pareciam estar tão preocupados com o como, quanto com o quê da revelação. Aquilo que os preocupava, acima de tudo, não era a maneira, e sim, o conteúdo. A mente ocidental parece inverter o grau de interesse: a maneira preocupa mais que o conteúdo do assunto. É por isso que os profetas bíblicos não se detêm a explicar os pormenores do fenômeno da inspiração-revelação.

Nós adventistas não temos sido uma exceção entre os cristãos no tocante às duas posições mais comuns a respeito do tema de que nos ocupamos. Poucos são os que conscientemente aderem à idéia de uma inspiração verbal segundo a qual Deus ditava ao instrumento humano o que Ele queria que esse indivíduo comunicasse aos outros; a maioria defende o contrário. Deus comunica idéias e pensamentos, mas deixa com o indivíduo a redação e transmissão da mensagem. A cultura, educação e instrução do profeta são refletidas na revelação escrita. Esta é a posição que, pelo menos teoricamente, tem sido adotada pela Igreja Adventista. Cumpre reconhecer, no entanto, que na prática, muitos adventistas ainda atuam, quanto à Bíblia e aos escritos de Ellen G. White, com o critério talvez não bem definido de revelação-inspiração verbal, segundo a qual as palavras seriam inspiradas. Deus as ditava ao profeta. Este era um simples amanuense, um gravador a serviço do ditame divino.

Podemos afirmar sem receio de equivocar-nos que, oficialmente, a Igreja Adventista nunca aprovou a teoria da inspiração verbal. Em 1883 a Associação Geral achou necessário expressar-se sobre este ponto quando se fazia uma nova impressão dos Testimonies, e isso exigiu pequenas correções.

“Cremos que a luz dada por Deus a Seus servos é por meio da iluminação da mente, comunicando-lhes assim os pensamentos, e não (exceto em raros casos) as próprias palavras, através dos quais as idéias devem expressar-se.2

W. C. White, comentando essa resolução em 1928, escreveu o seguinte ao Pastor L. E. Froom:

“O irmão se refere à breve declaração que lhe enviei em relação com a inspiração verbal. A mesma, formulada pela Associação Geral em 1883, está em perfeita harmonia com a crença e posição dos pioneiros desta Causa. E foi, penso eu, a única posição adotada por nossos ministros e professores, até que o Prof. Prescott, diretor do Colégio de Battle Creek, apresentou com firmeza outro ponto de vista: o que era mantido pelo Prof. Gaussen. A aceitação por parte dos estudantes do Colégio de Battle Creek e de muitos outros, incluindo o Pastor Haskell, acabou introduzindo crescente e infindo número de interrogações e perplexidades. A irmã White nunca aceitou a teoria de Gaussen sobre inspiração verbal para sua própria obra, nem para a Bíblia.”3

Para Prescott surgiram alguns problemas quando ele mesmo provavelmente notou a maneira como se trabalhava com os manuscritos de alguns livros de Ellen White. Certa vez permaneceu na Austrália por uns dez meses, quando se organizava o Colégio de Avondale. Provavelmente teve a oportunidade de conversar sobre o assunto com W. C. White, M. Davis ou com a própria Sra. White. Não somente chegou a saber que Ellen G. White submetia os manuscritos de alguns de seus livros a certos pastores, antes de sua publicação, mas pediu-se que ele mesmo fizesse isso. E sugeriu algumas alterações para a edição revista de O Conflito dos Séculos de 1911.

Ao Pastor Haskell, W. C. White escreveu o seguinte:

“Creio, irmão Haskell, que existe o perigo de prejudicar a obra de mamãe, demandando mais do que ela reivindica para sua obra; mais do que os Pastores Andrews, Waggoner e Smith declararam. Não vejo consistência na apresentação da inspiração verbal, quando mamãe não afirma tal coisa. 4

Dirigindo-se ao concilio da Associação Geral em outubro de 1911, W. C. White declarou o seguinte:

“Mamãe nunca afirmou haver tido inspiração verbal. … Se tivesse havido inspiração verbal na redação de seus manuscritos, por que, pois, ela mesma tinha que fazer adições e adaptações a eles? É um fato que mamãe amiúde toma seus manuscritos e os revisa em forma meditativa, acrescentando então palavras aos pensamentos expressos e desenvolvendo-os mais ainda.”5

Conceitos Sobre Inspiração da Parte de Ellen G. White

Há duas fontes muito apropriadas para termos uma idéia bem clara do conceito de inspiração em Ellen G. White: a introdução de O Conflito dos Séculos e os dois primeiros capítulos de Mensagens Escolhidas, livro 1. O que segue é uma tentativa de resumir as idéias expressas por Ellen G. White:

1 • Não são as palavras da Bíblia que são inspiradas, e, sim, os homens que escreveram a Bíblia. A inspiração não atua sobre as palavras utilizadas pelos instrumentos da revelação-inspiração, mas sobre os próprios instrumentos, imbuindo-os de pensamentos. Eles devem expressá-los com seus próprios recursos de idioma e cultura, ajudados, é claro, pelo Originador da inspiração: o Espírito Santo. As diferenças de estilo de seus autores constituem uma prova disso.

2. A Bíblia expressa idéias divinas nas formas limitadas da linguagem humana. O que resulta da fusão do divino com o humano é Palavra de Deus. Tal união aparece também em Cristo. Mas Deus, que é o autor da Bíblia, não é representado nela como escritor, através de grandiosa linguagem sobre-humana. As Escrituras são uma manifestação de divina condescendência e adaptação às necessidades humanas. 

revelação-inspiração seria um ato de condescendência divina pelo qual Deus confere à criatura humana a possibilidade de chegar a conhecer o que esta não poderia jamais saber por si mesma, mas Ele acha que ela deveria chegar a conhecer, e o faz por meio de um profeta.

3. Sendo que a linguagem usada é a humana e tudo que é humano é imperfeito, podem ser atribuídos a uma palavra diversos significados. A Bíblia não é a forma de pensamento e expressão de Deus. É a forma da humanidade. “Foi dada com propósitos práticos.” 

4. Ninguém tem o direito de afirmar que algumas partes da Escritura são inspiradas, e outras não. Toda ela é inspirada.

Estas afirmações eliminam a possibilidade de inspiração ver­ bal. A inspiração verbal ou mecânica suscita problemas não so­mente em relação com os escritos de Ellen G. White, mas também com a própria Bíblia. Alguns dos problemas que a Igreja enfrenta atualmente em relação com os escritos de Ellen G. White de­ rivam da prática, por parte de muitos, de aplicar a eles, cons­ciente ou inconscientemente, os princípios da revelação ditada. Todavia, os eruditos das línguas originais da Bíblia ou os que pre­ tendem poder fazer bom uso delas se emaranham no problema. A doutrina do santuário parece depender de uma forma verbal única na Bíblia, contida no livro de Daniel: nisdac.6

Os adventistas, seguindo o método da analogia, relacionamos a purificação do santuário de Daniel, capítulo 8, com aquela a que estavam acostumados os judeus, pela prática anual, contida em Levítico 16. Os entendidos dizem que não existe conexão lingüística entre o texto de Daniel e o de Levítico. Só há idéias paralelas.

Nossos pioneiros usaram muito o método da prova por meio de passagens ou textos bíblicos. Tomavam todos os textos possíveis sobre determinados assuntos e, do conjunto, tiravam suas conclusões. Alguns eruditos têm procurado pôr em descrédito esse método, aderindo ao que se qualifica com o nome de contextual histórico gramatical. Como às vezes suas considerações giram tanto em torno de palavras, como no caso de nisdac, afigura-se que dão muito mais importância à inspiração verbal do que à dinâmica, que temos procurado descrever com idéias de Ellen G. White.

Algumas Definições Úteis

Com o propósito de que algumas idéias que se seguirão possam ser bem interpretadas, torna-se necessário definir três vocábulos: revelação, inspiração e iluminação, em suas conotações teológicas. Há os que definem os dois primeiros separadamente e os que os consideram equivalentes, mas não o são. Os dois primeiros se aplicariam aos instrumentos humanos utilizados por Deus para receber e comunicar mensagens. O terceiro se aplicaria a qualquer pessoa que se acercasse da Palavra de Deus para entendê-la, sem que necessariamente esteja dotado do dom profético que se manifesta naqueles que são escolhidos por Deus para os fenômenos da revelação ou da inspiração. Os três são, finalmente, operação do Espírito Santo.

revelação-inspiração seria, pois, um ato de condescendência divina pelo qual Deus confere à criatura humana a possibilidade de chegar a conhecer o que esta não poderia jamais saber por si mesma, mas Ele acha que ela deveria chegar a conhecer, e o faz por meio de um instrumento humano chamado profeta ou profetisa. Por esse ato divino o próprio Deus capacita o referido instrumento para transmitir a mensagem de maneira fidedigna.

Cumpre salientar três idéias básicas da definição: a de captação do desconhecido, implícita na palavra revelação; a de transmissão, presente no termo inspiração; e a de fidedignidade, embora a linguagem usada seja a humana e no processo tenha havido uma mescla da informação ou mensagem básica originada em Deus e do meio humano da linguagem utilizado para transmití-la.

A afirmação que segue pode ser melhor aceita com base na definição precedente: toda a Bíblia é divinamente inspirada (II Tim. 3:16), mas nem toda a Bíblia é material que nos veio por revelação. O indiscutivelmente revelado, por exemplo, é tudo aquilo que o homem não podia chegar a conhecer por si mesmo, como as revelações de natureza apocalíptica contidas nos livros de Daniel e Apocalipse. Mas não é revelação a parte histórica de Daniel. O profeta relata acontecimentos da História como protagonista ou ator. Não necessitou de revelação especial para poder consignar por escrito os versículos 1 a 29 do capítulo dois. Esses fatos eram conhecidos. Mas não podemos dizer a mesma coisa dos que aparecem a partir do verso 29. Isso lhe era desconhecido. É pura revelação.

Pode-se dizer algo semelhante da maior parte dos livros históricos do Velho e Novo Testamentos: Samuel, Reis, Crônicas, Ester, os Evangelhos, o livro de Atos, etc. As evidências favorecem a opinião de que o Evangelho Segundo Lucas constitui um trabalho de investigação. Note-se a diferença nas introduções de Lucas e do Apocalipse: são diferentes. O primeiro é material inspirado. O segundo é uma revelação e, além disso, escritura inspirada. Nem tudo que é inspirado é revelação, mas tudo que é revelação é inspirado. A Bíblia inteira é inspirada, embora nem toda ela consista de material revelado. Deus tomou providências para que o desconhecido que Ele comunica em Sua Palavra (revelação), bem como os fatos históricos relatados pelos escri­tores da Bíblia (material inspi­rado) chegassem até nós na forma escrita da Bíblia, para nosso bem, e de maneira fidedigna.

Os Dez Mandamentos estão expressados definidamente. Constituem uma revelação clara. Os israelitas receberam-na em sua língua original, em forma de escritura divina, e não de um mero ditado a Moisés. Chegou, pois, até nós de maneira diferente do resto da Escritura. 

Se a inspiração fosse verbal, não encontraríamos, por exemplo, alguns detalhes diferentes nos Evangelhos. Consideremos um caso bem simples: a inscrição da cruz.

S. Mat. 27:37: “Este é Jesus, o Rei dos Judeus.

S. Mar. 15:26: “O Rei dos Judeus.”

S. Luc. 23:38: “Este é o Rei dos Judeus.

S. João 19:19: “Jesus Naza­reno, o Rei dos Judeus. ”

Qual das quatro declarações é a que verdadeiramente foi posta sobre a cruz? Necessitaríamos de uma revelação para sabê-lo definitivamente. As quatro diferem em detalhes, mas todas têm algo exatamente igual: “Rei dos Judeus. Os detalhes das diferenças não importam muito no caso. Ninguém se perderá por desconhecer qual era, exatamente, das quatro, a inscrição autêntica.

Os Dez Mandamentos estão expressados definidamente. Constituem uma revelação clara. Os israelitas receberam-na em sua língua original, em forma de escritura divina, e não de um mero ditado a Moisés. Chegou, pois, até nós de maneira diferente do resto da Escritura. O que Paulo disse em sua segunda epístola a Timóteo, capítulo 4, versículos 10 a 22, não é uma revelação divina. Não é tão importante, em matéria de salvação, como o que disse o Senhor e que está registrado em S. João 3:16. Ambas as declarações são inspiradas porque fazem parte da Escritura. Mas uma é mais transcendente que a outra no tocante à salvação: a de Jesus.

O humano, pois, está mesclado com o divino na Bíblia. Não somente alguns horríveis atos do homem, mas também os maravilhosos atos de Deus, para que aprendamos alguma coisa de ambos.7 Não somente os pobres elementos da linguagem humana, para expressar as grandes idéias de Deus, mas também os grandes e maravilhosos feitos, verdades e promessas de Deus.

“O tesouro foi confiado a vasos de barro, todavia não é por isso menos do Céu. O testemunho é transmitido mediante a imperfeita expressão da linguagem humana, e não obstante é o testemunho de Deus; e o obediente, crente filho de Deus nele contempla a glória do poder divino, cheio de graça e de verdade. 8

Referências

1. II Tim. 3:16 e 17; II S. Ped. 1:21; I Cor. 2:1-16; Heb. 1:1 e 2; Apoc. 1:1.

2. Review and Herald, 27 de novembro de 1883.

3. W. C. White, Carta a L. E. Froom, 8 de janeiro de 1928.

4. W. C. White, Carta a S. N. Haskell, 21 de outubro de 1912. A carta contém uma nota do próprio punho da irmã White: “Aprovo as afirmações formuladas nesta carta. Ellen G. White.”

5. Selected Messages, vol. 3, pág. 437, Apêndice A. De uma apresentação de W. C. White perante o Concilio da Associação Geral, 30 de outubro de 1911.

6. Nisdac é a forma verbal que aparece em Daniel 8:14. Trata -se da forma passiva do verbo hebraico sadac, traduzida geralmente por “será purificado . Admite-se que o espectro de significados é amplo, mas a idéia de purificação não pode ser descartada. Tal foi o sentido que deram a essa forma verbal os tradutores que prepararam a Septuaginta. Usaram um derivado verbal grego de catarizo, que corresponde à idéia de purificar. Os tradutores da Versão dos Setenta dominavam o grego e, por certo, estavam mais próximos das línguas mortas do Velho Testamento — hebraico e aramaico — do que os eruditos atuais. (Ver o artigo de W. E. Read: “Daniel 8:14 e a Purificação do Santuário , The Ministry, março de 1967.)

7. Rom. 15:4; I Cor. 10:11.

8. Mensagens Escolhidas, livro 1, pág. 26.