DR. CESAR V. DE SOUZA, psiquiatra do Hospital Adventista Silvestre
O Dr. Rollo May, psicólogo e psicanalista cristão, comenta em um de seus livros a importância da relação que existe entre a personalidade de uma pessoa e a maneira em que ela vive a religião. Por acharmos válidas suas idéias, e por continuarmos a crer que é útil entendermos a estrutura psicológica de nós mesmos, isto é, como somos como pessoa, a fim de que até nossa maneira de viver a religião seja melhorada, resolvemos partilhar com os leitores algumas idéias sobre tais questões.
A Psicologia é a ciência que nos auxilia em tal compreensão, e é interessante notarmos que a Sra. White já havia declarado, há muitos anos, o que certos psicólogos estão verificando hoje em dia. Diz ela que os verdadeiros princípios da Psicologia se acham nas Escrituras.1 O Dr. May assim diz: “Há um nítido paralelo entre as descobertas da psicoterapia e os ensinamentos de Jesus.’’2
A SAÚDE DA PERSONALIDADE
Seria bom perguntar-nos, vez por outra, se nossa vida religiosa contribui para a saúde da personalidade ou não. É útil tomarmos consciência da nossa espécie de religião e como esta é vivida por nós. A Bíblia exorta-nos a fazer isto, quando diz: “Examinai-vos a vós mesmos se realmente estais na fé’’ (II Cor. 13:5). Não basta pensarmos que a religião que vivemos é a Verdade; é fundamental termos consciência de como a vivemos! Não nos esqueçamos de que os judeus do tempo de Cristo eram depositários da verdade divina e, no entanto, a deturparam ao máximo. O mesmo pode acontecer hoje com adventistas leigos ou obreiros.
Freud errou ao afirmar que a religião é por si mesma uma neurose compulsiva. Algumas são, é verdade. Mas muita coisa pode servir na vida como fuga compulsiva. Quando a realidade de (ou para) uma pessoa é difícil, sofredora ou angustiante, esta pode agir compulsivamente na vida. Pode tornar-se um bebedor compulsivo, um gastador de dinheiro compulsivo, um trabalhador compulsivo, uma esposa que arruma a casa compulsivamente, um médico que tem compulsão para realizar cirurgias, um pastor com compulsão para atingir alvos, etc. O problema da compulsão é que geralmente é uma tentativa de fuga de alguma realidade emocional angustiante. Agir por compulsão é agir com consciência parcial, ou sem nenhuma, dos motivos que levam à ação.
Uma vez que a pessoa ainda não aprendeu a enfrentar suas realidades internas mais madura e construtivamente, ela foge para a compulsão, isto é, reage compulsivamente. Daí que muito do que ela venha a fazer seja feito devido mais a sua própria dificuldade de enfrentar a realidade do que em função de genuíno benefício do outro, seja este outro uma pessoa ou uma instituição.
Por outro lado, Freud estava tecnicamente certo ao perguntar se a religião, da forma como você a vive, aumentará sua dependência e o manterá infantil e imaturo.3 A Sra. White afirma que a religião de Cristo não é causa de insanidade mental.4 Realmente não é. Mas o que é a religião de Cristo? Pode não ser o que você acha que é, ou o que o pregador diz que é. Os doutores da lei, no tempo de Jesus, pregavam uma forma de religião correta? Nossa atitude deve ser, portanto, a de sempre termos uma humilde consciência crítica positiva, que nos leve a pesquisar as Escrituras e os escritos de E. G. White, observando o que nos dizem as pessoas e o que nós mesmos cremos, pregamos e vivemos, a fim de verificar se “as coisas são de fato assim’’ (Atos 17:11). O ponto que desejamos enfocar aqui, porém, está relacionado mais com aquilo que sou como pessoa ou como personalidade, e como isto influencia minha vivência da religião e até minha crença.
Será que a religião que você vive, serve para mantê-lo num plano infantil de desenvolvimento, capacitando-o a evitar a ansiedade causada pela liberdade e responsabilidade pessoal? Ou serve como algo que afirma seu valor e dignidade, ajudando-o a aceitar corajosamente suas limitações e ansiedades normais, auxiliando-o a desenvolver seus talentos, responsabilidade e capacidade de amar os seus semelhantes? Para tentarmos responder melhor a tais questões, precisamos analisar um pouco a relação entre religião e dependência.
RELIGIÃO E DEPENDÊNCIA
Existe a dependência natural e a doentia. Uma criança de dois anos depende do adulto para atravessar uma rua movimentada. Isto é normal, e seria inadequado em se tratando de alguém com 30 anos. A dependência emocional não é simplesmente uma questão de fracasso em evoluir, mas um comportamento que demonstra a dificuldade e conseqüente fuga da ansiedade.
Um cristão pode sentir-se dependente de Deus, negativamente falando, porque talvez tenha sido educado num ambiente no qual os pais o manipulavam, utilizando erradamente instruções religiosas corretas como “honrar pai e mãe’’. Isto é, os pais podem impedir o filho de atingir alguma liberdade normal, utilizando com sutileza inconsciente argumentos religiosos, como por exemplo, afirmar que é “da vontade de Deus’’ que o jovem permaneça sob a direção dos pais.
Os pais podem agir assim como se o filho ou filha só pudessem conseguir realização pessoal estando sob o controle deles. Contudo, as intenções inconscientes desses pais podem ser bem diferentes das intenções conscientes. A questão é que a libertação dos filhos provoca às vezes ansiedade nos pais. E esta ansiedade os impede de crer nas potencialidades da criança, quem sabe, até por ser difícil aos pais crerem em suas próprias potencialidades.
O mesmo pode ocorrer em nível de instituição, isto é, uma autoridade (política, eclesiástica, etc.) pode ter tendência para manter seu poder, submetendo outros ao seu domínio, porque a liberdade dos que estão submissos pode criar ansiedade, e colocar a descoberto as reais motivações do exercício da autoridade, as quais podem não ser adequadas. Por isso, os que têm posição de mando e são dominadores (autoritários) não gostam que os outros pensem muito, que façam críticas positivas e firmes, mas sim, que aceitem pacificamente suas determinações e explicações.
A tendência de alguém sujeitar-se ao poder de outro, pode ter origem em desejos infantis de que alguém cuide dele. Isto pode levar a pessoa a entregar-se a quem a domina. Esse fato pode ocorrer também em relação a Deus; isto é, podemos obedecer submissamente ao Criador mais por causa de uma dependência imatura, do que por decisão de obedecer-Lhe; porque o que Ele pede é o correto, é o certo, é o direito.
SUBMISSÃO INADEQUADA
Para muitas pessoas, a submissão inadequada a qualquer autoridade existe, porque, possivelmente, durante sua infância elas tiveram muito que renunciar. Deixaram (ou foram obrigadas a deixar) com os pais a capacidade e o direito de fazer julgamentos morais. “Entraram no jogo’’ no qual passaram a ter o “direito” de depender das forças e juízos paternos, da mesma forma como o escravo depende do senhor. Daí se sentirem frustradas e aborrecidas se os pais (ou representantes, como Deus, pastor, etc.) não lhes dispensaram atenções especiais. Vieram aprendendo que facilidade e sucesso são o resultado de terem “bom comportamento”, que vem pela obediência.
Entretanto, a exigência de certos pais, no sentido de que seus filhos tenham “bom comportamento”, muitas vezes serve mais para algum conforto ou benefício dos pais, do que das crianças. E, no desejo de que os filhos sejam obedientes, podem ser utilizados maneiras e argumentos tais que tolham as características pessoais saudáveis das pessoas submissas (filhos ou outras pessoas sobre as quais é exercido algum poder). Tais pessoas, presas emocionalmente, são ressentidas, mesmo que não se apercebam disto; ao mesmo tempo que exigem cuidados, tentam, de modo geral e por métodos sutis, exercer poderio sobre outras.
A religião pode ser vivida imaturamente quando por ela procuramos resolver angústias que têm que ver com a vida emocional, e não com a vida espiritual, isto é, que têm que ver com sofrimentos vindos da infância e da adolescência, e não vindos como conseqüência da condição espiritual caída do ser humano que nos leva a transgredir conscientemente a lei de Deus. Muitas vezes não é fácil separarmos o que é espiritual e o que é psicológico, mas há um campo para cada uma dessas partes da natureza humana. Se misturarmos tudo, podemos sofrer mais do que é necessário.
Por quê? Porque a pessoa que tem um sofrimento psicológico (angústia, tristeza, etc.), e acha que é espiritual, vai querer resolvê-lo através da religião e, provavelmente, não consiga; da mesma forma que não poderia resolver um problema físico com a religião, embora os milagres sejam possíveis.
Alguém poderá buscar a religião para resolver angústias psicológicas. A menos, porém, que tome consciência de tais angústias, que compreenda como estando ligadas a sofrimentos emocionais do passado, e que aprenda a encará-las de frente e corajosamente, não as resolverá. Certamente não conseguirá viver a religião mais prazerosamente.
Deus pode ajudar temporariamente uma pessoa a entender Sua verdade e a aceitá-la, usando os sofrimentos emocionais dela, os quais podem ser aliviados no princípio da conversão. Mas Ele não vai resolvê-los definitivamente, porque há métodos humanos para tal alívio, e porque é importante que a pessoa aprenda a enfrentar suas angústias psicológicas — para seu crescimento global — sem querer que Deus a livre milagrosamente. Faz parte do amadurecimento da personalidade experimentar certas angústias e vencê-las.
O Dr. May comenta este assunto da seguinte maneira; “Spinoza faz uma declaração que irrompe como uma aragem fresca no pântano mórbido e nevoento da dependência religiosa: ‘Quem ama a Deus não deve esperar ser por Ele amado.’ Nesta expressiva frase fala o homem corajoso, que sabe que a virtude é felicidade, e não um recibo para obtê-la; que o amor de Deus é a sua própria recompensa; que a beleza e a verdade devem ser amadas porque são boas, e não porque redundarão em crédito do artista, cientista, ou filósofo que as ama.”5
É na medida em que enfrentamos construtivamente nossa solidão e angústia psicológica, sem apelar para “milagres” (vindos de Deus, do médico, que queremos que dê um remédio mágico, etc.) e sem buscarmos uma submissão imatura a qualquer autoridade, que podemos partir para maior liberdade e integração, podendo relacionar-nos com os semelhantes de forma criativa e amorosa.
AUTORIDADES NATURAIS
Tanto na religião como em outros setores de nossa vida, há autoridades naturais. Estas, porém, devem ser consideradas uma questão de responsabilidade pessoal, e não vividas através do autoritarismo; porque este último é uma forma neurótica de autoridade. Aumenta, na medida em que a pessoa evita a responsabilidade dos próprios problemas.
Surge, então, uma pergunta importante para meditação daquele que se sente submisso inadequadamente, ou do que atua com autoritarismo: O que o faz submeter-se inadequadamente a uma autoridade? Ou o que o faz agir autoritariamente? Qual o problema emocional particular, do seu íntimo, o problema do qual está procurando fugir através de uma conduta submissa ou autoritária? O que houve em sua infância, que faz com que você atue assim na vida adulta?
Concordamos, mais uma vez, com o Dr. May, quando diz: “A religião é construtiva quando fortalece na pessoa o senso de dignidade e valor, ajuda-a a confiar no uso e desenvolvimento de sua consciência ética, liberdade e responsabilidade pessoal.”6
Jesus nunca usava Sua autoridade como abuso de poder e arrogância de sabedoria e instrumento de desprezo dos demais. “Já não vos chamo servos, mas amigos”; “o que o Pai Me ensinou isto vos falo”; “vou preparar-vos lugar, para que onde Eu estiver estejais vós também”; etc. Estas são demonstrações corretas, amorosas e maduras de exercer autoridade! Jesus era submisso ao Pai, mas não com ressentimento; não por causa de uma dependência imatura, mas por causa do reconhecimento da Sua necessidade do poder do Pai para vencer como Homem, e por causa do desejo de seguir a verdade porque é a verdade.
Como tenho usado a autoridade que possuo como pai, mãe, patrão, pastor da igreja, obreiro de qualquer instituição? Como está minha submissão a Deus e às autoridades humanas? Agora que você acabou de ler este artigo, use uns minutinhos para uma auto-análise sincera e honesta. Encare de frente isto que surge aí na sua mente agora! E cresça como pessoa cristã, para ser mais feliz e mais útil ainda nessa vida!
Referências bibliográficas:
1 E. G. W., Medit Mat. 1953. pág. 347.
2. Rollo May, O Homem à Procura de Si Mesmo, Edit. Vozes, pág 183
3. Idem, pág. 161.
4. E. G. W„ Cons. Sobre Saúde, págs. 324, 325.
5. Rollo May, Op. Cit., pág. 169.
6. Idem, pág 170.