Ao criar, o Grande Senhor repartiu com o homem valores divinos. E após a queda do homem, Deus, em Cristo, veio experimentar espontaneamente os seus sofrimentos. O Criador desceu para conhecer a experiência da criatura, sentir a grande alegria de executar o plano de salvação, e também a rudeza dos espinhosos caminhos das tentações.

Em São Mateus 4, presenciamos vividamente o quadro dos mais ardilosos engenhos que Satanás, em todos os tempos, já preparou. Ali aprendemos que o Espírito Santo conhece previamente todas as tentações que nos sobrevêm. E que no bom plano que Deus tem estabelecido para Suas criaturas humanas, existem fartas porções de bênçãos embutidas nas lições que podemos tirar das experiências vividas em forma de duras provas. No texto está bem claro que Satanás é o tentador. É o autor das tentações e por seu intermédio elas atingem a humanidade.

De início, é fundamental reconhecer que Satanás monta suas armadilhas sempre sobre necessidades reais, diárias e comuns, que Deus criou para preencher a existência humana e enchê-la de significado. Na verdade, são três as necessidades básicas do ser humano: crescimento físico, crescimento mental e crescimento espiritual. A tentação sempre apela para a satisfação distorcida de uma necessidade vital. Foi por isso que o inimigo, com muita sutileza, teceu sua armadilha tendo em vista atingir a Cristo nesses aspectos de Sua vida.

A primeira tentação

“Então o tentador, aproximando-se, Lhe disse: Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães. Jesus porém respondeu: Está escrito: não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (S. Mat. 4:3 e 4).

Pão, aqui, representa muito bem tudo o que pode preservar e satisfazer o físico. É tudo aquilo que imediatamente, ou de forma remota, sustenta as forças da vida.

Deus nada é para Si, mas é tudo para Suas criaturas. Servir-Se do Seu poder para benefício próprio é contrário à vida do Céu, e, por isso mesmo, Jesus não podia multiplicar o pão, para Si, sem pecar; muito menos por Sua autoridade, independentemente da vontade do Pai.

A conservação e o desenvolvimento físico do ser humano são fundamentais para que este continue existindo, e estão continuamente na dependência da satisfação de algum apetite, cheio de gozo, que Deus no homem colocou. A Sabedoria infinita revestiu a cada necessidade de uma indescritível sensação de gozo, e a ela prendeu todas as várias utilidades. Basta pensarmos, por exemplo, em um viajor que cansado, sedento, ao longo de uma jornada sob sol causticante, divisa o final de uma curva que desce a um ribeiro que ziguezagueia e saltita como um cervo desmamado, oferecendo água pura e fresca. Que deleite sem descrição, beber a largos sorvos até satisfazer-se! Assim, beber água é uma necessidade com múltiplas utilidades e uma correspondente sensação de gozo. Por outro lado, beber álcool traz em si um falso prazer e muitos prejuízos físicos.

Tentação é buscar experimentar o gozo da existência, sem satisfazer a suas necessidades. É buscar satisfação própria sem benefício ao semelhante, e sem submissão a Deus. A vida ideal conduz à satisfação e supre as necessidades, dentro do plano de Deus.

Nas tentações, Satanás procura ressaltar a satisfação própria em prejuízo das utilidades. E justamente por isso é que nos dias atuais busca-se desenfreada e libertinamente a satisfação sexual. Ou seja, pratica-se o sexo por causa do sexo, independente da orientação e do plano de Deus. A fome é um justo estímulo para conduzir à correta alimentação; e o prazer da comida é o colorido que Deus pôs no apetite. Mas o inimigo inspira os homens ao deleite do comer por causa da satisfação do paladar, apenas, sem levar em conta a necessidade real de nutrição. O sono foi criado como um convite a um restaurador descanso. Mas hoje o homem cerra os olhos sem ser revigorado. Para o exercício, Deus criou o trabalho ativo. Mas o fardo esmagador como é tido o trabalho nos dias modernos mortifica o homem e o desqualifica para a vida. Hoje busca-se emprego, mas não trabalho.

E assim, esquecidos de que não estão suprindo corretamente as necessidades da vida, cegados pelo inimigo, alguns levantam a pergunta: afinal, é, ou não, o dever do homem preservar a sua vida?

Evidentemente a vida é indispensável para qualquer projeto. Mas a resposta começa num princípio básico das Escrituras. A vida está em Cristo. “NEle estava a vida e a vida era a Luz dos homens” (S. João 1:4). Lembrando a criação e a essência da própria natureza humana, em paráfrase é possível dizer que ser algum nasce em si e muito menos vive para si (Rom. 14:7).

O homem é, por natureza, dependente de um Deus que vive para seu bem. A preocupação maior do ser humano não deve ser a de preservar a sua própria vida, mas buscar encontrá-la em Deus. Ate à morte, mas nunca separar-se dEle. Jamais tentar ser independente dEle.

A segunda tentação

Então o diabo O levou à cidade santa, colocou-O sobre o pináculo do templo. E Lhe disse: Se és Filho de Deus, atira-Te abaixo, porque está escrito: Aos Seus anjos ordenará a Teu respeito; que Te guardem, e: Eles Te sustentarão nas Suas mãos, para não tropeçares nalguma pedra. Respondeu Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor Teu Deus” (S. Mat. 4:5-7).

Na promessa ressaltada por Satanás, é possível ver que essa tentação estava relacionada com a confiança que o homem deve depositar em Seu Criador. Os valores morais são diretamente atingidos aqui.

A preservação da vida — primeira tentação — é tão significativa quanto a preservação da dignidade pessoal. O valor moral do indivíduo. O sabor da vida é encontrado no sentimento de utilidade. A consciência da dignidade pessoal valoriza a existência, e na falta dessa segurança o homem perde seu equilíbrio, desfaz-se em ansiedades e culmina em rupturas mentais. É simplesmente desagradável sentir-se inútil.

Nessa tentação, mais uma vez, o inimigo tenta justificar uma aparentemente oportuna questão: não existe algum valor no homem, pelo qual ele vença e possa exigir os serviços de Deus? É impossível ignorar totalmente essa interrogação, mas ela imediatamente suscita outra: onde está a dignidade pessoal do homem?

O “EU” é sempre muito enganoso: “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso” (Jer. 17:9). O olhar para dentro do ser, mostrar no “EU” algum e qualquer valor, é, de qualquer forma, uma supervalorização, é vangloria e orgulho.

Isso leva o homem a buscar a aprovação dos semelhantes para sua pessoa. A paz foge até que os outros pensem favoravelmente a seu respeito. Que os outros aprovem e aplaudam seus atos, mesmo que enganados, é a grande vaidade do indivíduo, e isso é presunção. Esse infernal orgulho impede que os mais depreciativos e até justos conceitos que os outros formam e expõem a respeito do homem mortifiquem o “EU”. Ele prefere defender o “EU” à justiça. É bem mais fácil deixar-se ferir pelo amor ao “EU”, que pelo amor a Deus. A presunção alimenta a falsa satisfação da condescendência própria, enche a visão do homem de direitos, escondendo-lhe as responsabilidades correspondentes.

O orgulho impede de ver que todo o mal que pensarem ou disserem contra um filho de Deus, injustamente, só lhe causará a glória de ser incluído entre os bem-aventurados de Cristo. Aí está a suprema moldura da pessoa humana, a mais rica dignidade.

O orgulho enche o homem de tanta preocupação quanto ao conceito alheio a seu respeito, que ele acaba desconhecendo totalmente que nada pode danificar mais o seu ser do que o indigno conceito que ele tem de si mesmo. O orgulho finge dignidade aos olhos alheios mas é incapaz de convencer seu possuidor, lá em seu íntimo, de qualquer falso valor.

A mais desesperadora condição é a do homem que perdeu o respeito por si mesmo, que conhece no seu interior só vaidade. De nada valerá o fato de que todos até mesmo lhe tributem elevadíssimo respeito, quando para sua grande desgraça ele sabe que não pode justificar a falsa impressão que faz tudo para causar nos outros. No íntimo, todo o bem que os outros pensem ou digam a seu respeito não acalma a angústia que corrói a alma, por saber-se um mentiroso, desonesto, irresponsável, egoísta e avarento.

O orgulho pode, até mesmo aparentemente ceder e suplicar ajuda, confessando indignidade; mas sempre com sentimentos de merecimento, nunca em súplica por misericórdia e graça. O orgulho é a forma da inutilidade no viver, é o olhar para o nada que o homem é, e nisso ver a razão para o seu viver, para o viver dos outros em seu favor, e para que Deus preste cuidados servis em seu benefício.

O cerne dessa segunda tentação está em o homem ver em si mesmo, independente de Deus, tão grande valor que ele sente estar Deus na obrigação de suprir todas as suas supostas ou reais necessidades, mesmo que rejeitando obediência a Seus divinos planos. Como rei do nada, o homem sente que Deus tem o dever servil de preservar a sua existência, seja qual for a sua relação para com o Criador.

Em sua sagacidade, o inimigo suprimiu da passagem que citou, uma porção complementar: ‘‘Em todos os teus caminhos”. No paralelo que há entre a frase omitida e o Salmo 34:7 — “o anjo do Senhor acampa-se ao redor dos que O temem…” — há base para concluir que a frase “os Teus caminhos” refere-se aos caminhos que Deus tem planejado para os homens.

Submissão a Deus é a dignidade verdadeira, não exigência de favores divinos.

Assim, o inimigo, mais uma vez, buscou explorar uma real necessidade do ser humano, incitando Cristo a satisfazê-la erroneamente, distorcendo irresponsavelmente a verdade. Toda tentação nasce sobre uma real necessidade que Deus criou no homem, e consuma-se numa ilusória forma de satisfazê-la, orientada por Satanás.

A terceira tentação

“Levou-O ainda o diabo a um monte muito alto, mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e a glória deles, e Lhe disse: Tudo isto Te darei se, prostrado, me adorares. Então Jesus lhe ordenou: Retira-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a Ele darás culto” (S. Mat. 4:8-10).

Aos olhos do Salvador, o inimigo apresentou um quadro insuperável. Era uma inspiração às conquistas que um homem pode almejar. Deus criou o homem para as conquistas. E todas elas partem da mente, seja o homem inclinado a riquezas, honras, ou intelectualismo. O desenvolvimento da mente é uma necessidade inexcedível. Na mente, físico e espírito se encontram. O bom exercício da mente indica seguro sucesso.

Nada mais justificável do que o desejo de aplicar ao máximo a mente. Deve o homem conquistar? Indubitavelmente sim. A isso todo jovem deve ser inspirado. Mas então em que se constitui o erro?

A busca de honra não é errônea quando é a honra a Deus. O domínio e o poder pertencem a Deus, e exercê-los para a satisfação própria é contrariar o correto uso das capacidades que Deus deu. Na riqueza extravagante não há utilidade, e aplicar-se a esse mister é fugir ao plano do Criador. Salomão disse que o conhecimento sem descanso é enfado. Enfim, a busca dessas conquistas somente se torna malsã quando em detrimento da relação básica entre o homem e Deus. Porque, afinal de contas, “a vida de qualquer pessoa não consiste na abundância de bens que possui”.

Saber por causa da honra que é fama; do poder que é supremacia; da riqueza que é perecível; do conhecimento de coisas, para satisfazer aos caprichos da vontade, é só inutilidade.

A vida que Deus planejou para o homem não pode ser facilitada apenas pelo bom uso da mente humana. Os Seus planos são bem superiores aos planos humanos. As ambições que a mente desenvolve não podem oferecer ao homem uma vida mais útil que os elevados planos que Deus lhe tem reservado. Quando a busca é de honra, poder, riqueza e conhecimento de Deus e para Deus, jamais há erro.

A base das tentações

Sabedor de que Deus enriqueceu o homem com três faculdades que são mantidas e desenvolvidas por fortes apetites que o Criador fez morar em cada criatura, o maligno trabalha somente para dar uma errônea direção a esses instintos e apetites da vida, com muita sagacidade. No aspecto físico, leva o homem a zelar pela preservação da vida, independente do que Deus tenha planejado. Para preservar a dignidade moral, o homem revela especiais cuidados pela própria imagem. Pela sede de conquista, busca crescer intelectualmente, atraindo o louvor para si mesmo.

A única maneira de desenvolver as faculdades corretamente é através do senso de completa dependência de Deus, que é a característica fundamental de qualquer ser criado. Só em Deus a criatura existe. Só ligado ao Criador e em função do Criador, o homem pode exercer bem as funções da vida.

Satanás, que bem o sabe, tentou sutilmente, nas três tentações, tirar Deus dos planos de Cristo, para que Ele fosse derrotado.

O inimigo é por natureza extremista. Ele só quer levar ao desequilíbrio. Quando, na primeira tentação, Cristo ressaltou que vale a pena confiar na Palavra de Deus, ele serviu-se erroneamente de um texto para dizer que é próprio confiar em Deus, mesmo quando em desobediência ao Seu plano. Se o problema é desobedecer a Deus, é bem provável ao homem ajuda-Lo na consecução de Seus planos, e Cristo viera para reconquistar o mundo para Deus. Havia, no entanto, uma fórmula aparentemente mais fácil e curta para alcançar esse objetivo — render-Se ao adversário. Extremismo ilógico.

Nas três tentações, há um traço em comum: elas apontam para a dependência de cada criatura do seu Criador; e Satanás procura, disfarçadamente, guiar a Cristo para uma errônea dependência, na verdade, uma franca independência. Ao homem foi dado o desejo de crescimento, e Cristo foi tentado para buscar um conhecimento que dispensasse o Pai.

Mas, em meio aos disfarces, Cristo pôde descobrir aonde o inimigo queria chegar. Que tragédia seria ceder em tão pouco! A vitória do Mestre foi indiscutível.

Conclusão

Em nenhum outro ponto, além desses três, é o homem tentado. De nenhuma outra forma, além dessas três, é o homem tentado hoje.

Nessas três formas também a tentação se apresentou a Eva. Dizia ela, a respeito da árvore proibida: ‘‘Boa para comer” — um apelo ao físico. ‘‘Agradável aos olhos” — um apelo ao espírito. “Desejável para dar entendimento” — um apelo ao intelecto (Gên.3:6). Uma advertência contra a sutileza inimiga chega às gerações atuais através de I S. João 2:16, que fala da “concupiscência da carne” (físico); “concupiscência dos olhos” (espírito); e “a soberba da vida” (intelecto).

Satanás é a tentativa de um princípio que não funciona, e por isso mesmo é contrário a Deus. É necessário ao homem conhecer a Deus, ou seja, conhecer a impossibilidade de reconciliar os dois: “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro; ou se devotará a um e desprezará ao outro…” (S. Luc. 16:13).

Deus deve ser e só deve ser o primeiro, porque para o primeiro sempre há lugar. Mesmo quando há lugar só para um; e porque para um sempre há lugar. O primeiro é sempre o primeiro e nunca deixa de ser.

JOSÉ MONTEIRO DE OLIVEIRA, Professor no Educandário Nordestino Adventista, Belém de Maria, PE