O Cristianismo não considera a matéria como pecado; nem considera mais espirituais aqueles que mais se afastam do mundo material.

Se tivessem perguntado a Sócrates “o que é matéria?” antes que ele pusesse fim à própria vida, certamente ele teria respondido: “A matéria realmente não interessa”.

Estaria ele certo? Ou a matéria tem importância?

A história da humanidade revela um estranho fenômeno. Por alguma razão, as pessoas são incapazes de deixar a matéria sozinha. “O que é matéria?” não é apenas uma simples questão, mas uma profunda pergunta filosófica e teológica.

Deus fez Adão e Eva da matéria. E quando eles pecaram, Deus disse: “Está matéria tem importância”. A declaração de Deus funciona como um código secreto em nossa mente, impelindo-nos a incessante busca a favor da solução.

Sabemos que vivemos em um mundo material. Na verdade, somos feitos de matéria. E, não obstante, no mundo de senso comum, jamais fazemos parte dele. Nós transcendemos dele. Mas como podem duas substâncias feitas do mesmo elemento ser qualitativamente diferentes? Deus sabe. O problema é: nós também gostaríamos de saber.

Na tentativa de responder à pergunta sobre “O que realmente tem importância?” Descartes separou a mente da matéria. David Hume foi mais radical ainda. Com Hume, diz Will Durant, veio a expressão “nem matéria, nem mente”. O grande filósofo Kant, por outro lado, não podia entender como podemos conceber matéria sem programa em nossa mente dada por Deus.1

Nos tempos antigos, a raça humana procurou manipular a matéria por meio de ritos e rituais. Hoje, fazemos isso por meio do avanço científico e é realmente “notável” a exposição incompleta ao descrevermos o que as pessoas têm realizado. Mas, quando observamos como nossa manipulação fez o tiro sair pela culatra — através da ameaça nuclear, do efeito estufa, da poluição da água, da poluição do ar e das inundações, etc. — nossa descrição do avanço científico deve incluir a palavra “desastrosa”.

As religiões rejeitam a matéria

O mais interessante de tudo é a maneira como a religião como um todo se relaciona com a matéria. Tem ela uma forte tendência para rejeitar a matéria em todas as suas formas.

O budismo postula que os quatro elementos básicos — a terra, a água, o ar e o fogo — juntaram-se para for-mar a humanidade. E felizes são aqueles que entendem que são exatamente uma composição desses quatro ele-mentos. Quando esses elementos estão dissociados, então o “EU” deixa de existir. O budismo crê que o amor à matéria apenas resulta em sofrimento.

O hinduísmo nega a realidade da matéria. Para a filosofia hindu, a matéria é uma ilusão; a substância primária.3

Algumas formas de cristianismo vêem certa tensão entre o espírito e a carne, entre o espiritual e o secular. São levadas a descrever as pessoas espirituais como muito austeras, e que passam muito tempo em oração e estudo da Bíblia; cujos pensamentos e conversação giram em torno das coisas do espírito. Esses cristãos “ideais” amam só a Natureza em sua for-ma pura (antes de ela sair das mãos do Criador). Eles olham para o segundo advento de Cristo, que concebem como os tirando deste mundo — pois eles amam as pessoas do mundo, mas desprezam o mundo em si mesmo e as coisas que nele há.

Assim, os budistas, os hindus e muitos cristãos determinam a espiritualidade de uma pessoa pela distância entre essa pessoa e a matéria.

O que é matéria? O que está errado com a matéria? Os budistas da Tailândia com os quais trabalho, dizem às vezes: “Toda religião nos ensina a ser bons” — e a bondade que eles têm em mente é essa espécie de bondade não material. Ser bom, de acordo com o ponto de vista do mundo budista, é desprender-se da matéria e de tudo o que a ela pertence. Um estudante tailandês descreveu o conceito de bondade, para Kosuke Koyama, nestes termos: “A idéia de bom, na cultura tailandesa, pode ser descrita como a roupa lavada, passada a ferro e colocada numa gaveta fechada e não mexida. Não a use! Ela pegará sujeira! A roupa deve estar ‘livre’ da sujeira do mundo.”6

O cristianismo e a bondade não material

Às vezes tenho imaginado se a cristandade não ensina a “bondade não material” como foi expressa por meu amigo budista. É a essência do evangelho a espiritualidade com exclusão das coisas materiais? Se é, então talvez o budismo seja mais profundo, mais coerente, mais lógico e mais virtuoso do que o cristianismo. Se esta “espiritualidade não material” é o que estivemos salientando como a singularidade do cristianismo, então o cristianismo não é tão singular, afinal de contas, uma vez que mesmo um ateu existencialista como Heidegger aspirava a tal espiritualidade.7

Os cristãos muitas vezes definem a palavra “carne” como significando desejo impuro, cobiça, impureza, busca de prazer, imoralidade, ciúme, egoísmo, ambição e assim por diante. Há, porém, o outro lado da palavra “carne”, especialmente nas epístolas paulinas. Sobre o uso que Paulo faz da palavra “carne”, escreve A. C. Thiselton: “Representa ela o desejo do indivíduo de assegurar a justiça independentemente da graça de Deus em Cristo, por meio da lei. Dessa forma, ‘sarx, para Paulo, não está fundamentada na sensualidade, mas na rebelião religiosa, na forma de justiça própria”’.

Os gálatas desejavam agradar a Deus por meio da circuncisão, mas, segundo Paulo, essas tentativas vinham da carne e não do Espírito (Gál. 6:13 e 14). Além disso, em Colossenses lemos o ataque de Paulo ao ascetismo. Ora, não podemos caracterizar nem a circuncisão nem o ascetismo como impureza ou imoralidade. Não obstante, ambos são tentativas carnais de justificação própria.

Assim, é possível que a busca de espiritualidade dos cristãos denominados bons e espirituais seja ditada por sua carne. Deus nunca pretendeu que negássemos a matéria a fim de que testemunhássemos entre as religiões.

A doutrina da Criação ensina que Deus criou o mundo material como um fim em si mesmo. Ele fez o mundo material, assim como fez o sábado, para a humanidade.

Deus fez as pessoas com os sentidos, e pretendia que elas apreciassem o mundo material por meio desses sentidos. A percepção teve sua origem em Deus; assim, não é errado dizer que Deus criou os seres humanos para viverem vida abundante e desfrutar de suas percepções. Deus não criou o mundo material como um meio apenas de as pessoas praticarem o controle e a negação próprios.9

A respeito do prazer físico, escreveu Bonhoeffer: “Na vida natural, as alegrias do corpo são lembranças da alegria eterna, prometida por Deus ao homem. Se o homem é privado da possibilidade de satisfações corporais através do uso do seu corpo exclusivamente como um meio para atingir um fim, isto é uma violação do direito original da vida física.”10

Pelo fato de considerar a revelação como sua fonte de conhecimento, deve o cristianismo permanecer radicalmente separado do fenômeno religioso natural em sua interpretação do mundo. A revelação diz que Deus criou a matéria. E uma vez que Deus criou a matéria, a matéria é importante. Pe-la mesma razão, a sensação e a percepção — resultados diretos do contato entre o homem e o mundo material — são importantes.

“O cristianismo”, diz Koyama, “ensina a conexão. ‘Assim Deus Se ligou ao mundo’…. A antiga equação de inevitabilidade-ligação produz tristeza e o afastamento da felicidade — inevitavelmente mutila o conceito cristão do amor.”11

O verdadeiro cristianismo valoriza a alegria

O conceito de que a tendência dos cristãos para não valorizar nenhuma espiritualidade material acima da alegria, do riso e do prazer (para negar-se com fins salvíficos, embora em menor grau do que o budismo) é disfarçar uma expressão subjetiva da religião natural com uma roupagem cristã. Muitos cristãos ainda não permitiram que as doutrinas da revelação e da criação, que tornam o cristianismo radicalmente diferente das religiões comuns, confira essa tendência.

Uma visão não deturpada do mundo cristão, baseada nos conceitos da revelação e da criação, permite aos seres humanos verem, tocarem, provarem, sentirem, rirem e experimentarem a alegria e a tristeza, o prazer e a dor. Erasmo disse com acerto: “A glória de Deus é um homem que está completamente vivo.”

Quando a matéria tem importância, cuidamos do bem-estar material e emocional dos nossos semelhantes, bem como do seu bem-estar espiritual e intelectual. Cuidamos porque o homem total é feito tangível através de forma material. É pensando nisto que Elton Trueblood declara: “O cristianismo é a mais materialista de todas as religiões do mundo. Ele não se satisfaz apenas com o espiritual; constrói hospitais”.12

Depois de uma aula sobre sermão, um aluno budista me disse, certa vez: “Ter alegria, embora esta possa trazer sofrimento, é melhor do que fugir do sofrimento sem ter experimentado a alegria.”

O conceito bíblico de criação diz que Deus viu a Sua criação e disse:: “Está boa”.

  • 1. W. Durant, The Story of Philosophy (Nova Iorque: Washington Square Press, 1961), pág. 276.
  • 2. S. P. de Silva, A Scientific Rationalization of Buddhism (Colonbo: Metro Printer, 1969), págs. 67-71.
  • 3. Stephen Neill, Christian Faith and Other Faiths (Illinois: InterVarsity Press, 1984), pág. 94.
  • 4. D. Elton Trueblood, The Humor of Christ (Nova Iorque: Harper and Row, 1964), pág. 15.
  • 5. Ibid., pág. 16.
  • 6. Kosuke Koyama, Water Buffalo Theology (Nova Iorque: Orbis Books, 1974), pág. 84.
  • 7. M. Chatterjee, The Existentialist Outlook (De-lhi: Orient Longman, 1973), pág. 1442.
  • 8. A. C. Thiselton, Dictionary of New Testament Theology, editado por Colin Brown, (Grand Rapids, Mich.: Zondervan, 1975), vol. 1, pág. 680.
  • 9. Este conceito é diametralmente oposto aos ensinos budistas: “Quando o alimento é bom, a cobiça que é o desejo ardente ou a fixação, ocorrerá. Quando ele não é bom, a insatisfação ou a repugnância ocorrerá.”
  • 10. Dietrich Bonhoeffer, Ethics, Eberhard Beth-ge, ed. (Nova Iorque: Macmillan Pub. Co., Inc. , 1965), pág. 157.
  • 11. Koyama, pág. 84.
  • 12. D. Elton Trueblood, Philosophy of Religion (Westport, Conn.: Greenwood Press, 1976), pág. 171.