Parece um tanto fora de propósito falar sobre a ordem sacerdotal a que Jesus pertencia, visto se ter como certo que Ele era o antítipo do sacerdote israelita. “Sendo o sumo sacerdote, em sentido especial, uma figura de Cristo, era também o representante do homem”, diz M. L. Andreasen.1 Não obstante, para explicar aos hebreus que Jesus era sumo sacerdote, o autor da carta dirigida àqueles cristãos apresentou vários pontos nos quais, por ser superior ao sacerdote levita, Jesus era diferente deste.
Verdade é que, como diz o autor de Hebreus, “a imagem” das coisas não é exata (Heb. 10:1). Há, contudo, aspectos importantes, nos quais a sombra difere bastante do corpo, permitindo que haja visíveis contrastes.
Muitas vezes, mesmo nos pontos em que o autor compara os dois sacerdócios, mostrando pontos em comum, ainda é possível verificar diferenças de grande significado entre o sacerdote israelita e seu serviço, e Jesus e a obra que realizou.
Assim, a tribo de Israel a que cada um pertencia, a ordem sacerdotal, o meio utilizado na escolha de cada um, e tantas outras coisas, constituem pontos contrastantes, salientados pelo autor de Hebreus, para mostrar a espécie de Sumo Sacerdote que desejava indicar aos seus destinatários.
Tal era a distância entre Cristo e o sacerdote israelita, que o escritor pondera: “Ora, se Ele estivesse na Terra, nem mesmo sacerdote seria (e poderiamos dizer: quanto mais sumo sacerdote), visto existirem aqueles que oferecem os dons segundo a lei” (Heb. 8:4). Em outras palavras, as chances de Jesus ser sacerdote pelo sacerdócio israelita, seriam nulas; simplesmente não existiríam. Jamais teria Ele condições de oferecer “dons”, pois a lei não Lhe facultaria esse direito. Seu sumo sacerdócio só foi possível porque subiu ao Céu, e ali permanece ainda hoje.
Consideremos, por conseguinte, pelo menos os aspectos principais em que Jesus é apresentado como Se distinguindo do sacerdote israelita. Eles são facilmente encontrados ao lermos o livro de Hebreus, mas há benefício em examiná-los, pois fortalecem a nossa fé nAquele em quem temos crido.
De tribos diferentes
Ao lermos as Escrituras como um todo, raramente nos damos conta de que Je-sus pertencia à tribo de Judá, e que isso O impedia de ser sacerdote. Essa questão, porém, não passou despercebida ao autor de Hebreus. Em seu argumento a favor da superioridade de Jesus sobre o sacerdote levita, escreveu ele: “Porque Aquele de quem são ditas estas coisas, pertence a outra tribo, da qual ninguém prestou serviço no altar; pois é evidente que nosso Senhor procedeu de Judá, tribo à qual Moisés nunca atribuiu sacerdotes.”2 Era preciso levar em consideração esse ponto das Escrituras, bem como o texto bíblico que considerava a Cristo como sacerdote, mesmo sem pertencer à tribo legalmente escolhida.
Já com o sacerdote israelita, acontecia o contrário. Ele deveria pertencer necessariamente à tribo de Levi. Como sabemos, “por determinação divina a tribo de Levi foi separada para o serviço do santuário. … O sacerdócio, todavia, ficou restrito à família de Arão.”3 Levi e Judá eram irmãos, filhos da mesma esposa de Jacó. Um fora escolhido como representante de sacerdócio, o outro não. Se o sacerdócio de Jesus dependesse de Ele ter pertencido a uma tribo escolhida, ja-mais Lhe teria sido possível ser sacerdote, pois só a tribo de Levi foi separada.
É curioso que nunca um cidadão pertencente à tribo de Judá teve a audácia de entrar no santuário ou templo do povo israelita para oficiar como sacerdote. Mesmo a atitude de Davi ao entrar na casa de Deus “quando ele e seus companheiros tiveram fome”4 deve ter constituído um ato incomum. Jesus só justificou a atitude do rei de Israel, com base na “misericórdia” divina. Não fora a situação de necessidade de Davi, seu ato teria sido considerado uma profanação.
Sacerdote israelita, portanto, de-via ser membro da tribo de Levi, mesmo em tempos nos quais a religião estava em dificuldade. Lembramo-nos, por exemplo, do caso de Mica.5 Embora fosse idólatra, Mica não vacilou em empregar um levita como sacerdote, o qual, em busca de melhores condições de vida, apareceu na região montanhosa de Efraim. Pelo menos até que fosse tirado do poder do seu patrão por elementos pertencentes à tribo de Dã, foi sacerdote consagrado por seu senhor que, com ares de tranqüilidade, dizia: “Sei agora que o Senhor me fará bem, porquanto tenho um levita por sacerdote.”6
Ordens sacerdotais diferentes
Assim como a tribo a que os levitas pertenciam era diferente daquela à qual pertencia Jesus, a ordem sacerdotal da qual Arão e seus filhos foram os primeiros a ser ordenados também era diferente da ordem que tornou a Cristo sumo sacerdote.
Assim como a tribo a que os levitas pertenciam era diferente daquela à qual pertencia Jesus, e da qual, como diz Hebreus 7:13, “ninguém serviu ao altar”, a ordem sacerdotal da qual Arão e seus filhos foram os primeiros a ser ordenados também era diferente da ordem que tomou a Cristo sumo sacerdote.
A ordem de Arão – Argumentando a respeito de quão mais importante era Jesus do que o sumo sacerdote levita, pergunta o escritor “que necessidade havia”7 de que outro sacerdote se levantasse segundo outra ordem que não fosse a de Arão. A lógica indicava que, se outra ordem sacerdotal estava sendo apontada não de acordo com a já existente, era porque a primeira havia perdido a sua vigência, embora pudesse ainda estar sendo exercida.
Sabemos como foi instituída a “ordem de Arão”. Moisés se encontrava no Monte Sinai, recebendo as instruções sobre o tabernáculo e tudo o que lhe diz respeito. Cada peça fora mencionada, explicada a maneira de fazer cada objeto. Por fim, veio a ordem: “Depois tu farás chegar a ti teu irmão Arão, e seus filhos com ele, do meio dos filhos de Israel, para Me administrarem o ofício sacerdotal; a saber: Arão, Nadabe a Abiú, Eleazar e Itamar, os filhos de Arão”.8 A recomendação continua falando da escolha de pessoas habilitadas para o preparo das vestes que aqueles homens separados para o serviço sagrado deveriam usar, enquanto estivessem oficiando nos lugares do santuário a eles destinados.
Moisés não havia fechado a pasta com as instruções recebidas, quando foi informado por Deus de que os fundidores estavam tirando do forno, ainda quentinho, um bezerro de ouro para ser adorado. E o que é pior: Arão estava envolvido na transgressão como um dos principais culpados, embora pelo fato de ter sido pressionado!
Diluído o bezerro de ouro,9 Moisés quis saber quem era do Senhor (verso 25). A resposta positiva dos filhos de Levi, a cuja tribo Arão pertencia – mas certamente a intercessão de Moisés para que Deus perdoasse o pecado do povo (verso 32) – parece ter feito com que os planos divinos a respeito do futuro sumo sacerdote e seus filhos fossem mantidos. Ao menos é o que se deduz, ao ler o relato bíblico: “Farás também chegar a Arão e seus filhos à porta da tenda da congregação, e os lavarás com água. E vestirás a Arão os vestidos santos, e o ungirás e o santificarás, para que Me administre o sacerdócio.”10
Levítico 8:6-30 descreve o procedimento seguido por Moisés na investidura dos no-vos responsáveis pelo serviço ministerial. No capítulo nove, vemos já o sumo sacerdote recém-escolhido em plena atividade. E foi assim, até ser dito a Moisés: “Toma a Arão e a Eleazar, seu filho, e faze-os subir ao monte Hor. E despe a Arão os seus vestidos, e veste-os a Eleazar, seu filho, porque Arão será recolhido, e morrerá ali”,11 ordem que foi cumprida por Moisés.
Desde então, os substitutos de Arão foram-se sucedendo, até que o povo judeu se tornasse dominado pelos césares, e a ordem sacerdotal desaparecesse. Nesse ínterim, homens como Esdras e o pai de João Batista, Zacarias, prestaram relevantes serviços à causa de Deus.
A ordem de Cristo – No mesmo verso bíblico onde se fala a respeito da ordem de Arão (Heb. 7:11), menciona-se também a ordem sacerdotal a que Jesus pertencia, isto é, a “ordem de Melquisedeque”. O autor de Hebreus pergunta, como já foi dito, que necessidade havia de que surgisse um sacerdote pertencente a essa ordem sacerdotal, e não à ordem de Arão, “se a perfeição fosse pelo sacerdócio levítico”.
O autor da epístola começa falando sobre a figura de Melquisedeque com uma espécie de censura aos destinatários. Ele diz que poderia ser dita muita coisa a respeito desse personagem, mas os leitores da carta se haviam tornado “negligentes para ouvir”. Diz-lhes que ainda estavam necessitando de leite, quando já deviam estar usando alimento sólido. Admite que as coisas a serem afirmadas sobre a estranha figura, eram de interpretação difícil; mas havia muito o que dizer quanto a ele.12
O escritor da carta menciona algumas particularidades ligadas à pessoa de Melquisedeque, a cuja ordem Jesus pertencia. Em Hebreus 7:1-3, lemos que ele possuía os seguintes característicos: 1) Era rei;
2) era sacerdote do Deus Altíssimo; abençoou por exemplo, explica-se que isso quer dizer apenas que não havia registro dessas coisas, ou que esses registros não eram conhecidos. Essa saída pela tangente até que poderia ser aceita. Mas o que dizer com relação ao fato de Melquisedeque não ter “princípio de dias nem fim de vida”, ser “semelhante ao Filho de Deus” e permanecer “sacerdote para sempre”?
3) a Abraão;
4) não tinha pai, nem mãe, nem genealogia;
5) não teve princípio de dias nem fim de vida;
6) foi feito semelhante ao Filho de Deus, ou era semelhante a este;
7) permanece sacerdote para sempre.
Muitos estudiosos das Escrituras aceitam que Melquisedeque possuísse esses característicos – mesmo porque seria difícil negá-los – mas os interpretam a seu modo ou, o que é pior, ao modo de outros, por falta às vezes de acompanharem o raciocínio bíblico.
Com respeito ao fato de Melquisedeque ser “sem pai, sem mãe, sem genealogia”,13
O que o escritor de Hebreus queria provar era que Jesus pertencia a uma ordem sacerdotal perpétua, em comparação com outra de caráter transitório.
O que o escritor de Hebreus queria provar era que Jesus pertencia a uma ordem sacerdotal perpétua, em comparação com outra de caráter transitório. Por isso, ao referir-se à questão do dízimo entregue por Abraão a Melquisedeque, registrada em Gênesis 14:20, argumenta que na ocasião em que os leitores da carta viviam, certamente tomavam o dízimo homens que morriam; no tempo em que o patriarca entregou o dízimo, “aquele de quem se testifica que vive”.14
É bom não nos esquecermos de que a referência à ordem de Melquisedeque foi feita por Davi no Salmo 110:4, e que entre o suave cantor de Israel e Abraão se passaram aproximadamente mil anos, segundo fontes de confiança. Pois bem, o autor de Hebreus argumenta que, segundo Davi, um milênio depois de Abraão, Melquisedeque ainda vivia. E convém notar que ele já não devia ser muito jovem, quando apareceu a Abraão.
A lógica do escritor de Hebreus é correta: se a finalidade era indicar que Jesus era um sacertode eterno, que vantagem haveria logo em que pertencesse a uma ordem sacerdotal cujos participantes morriam? Era imperiosa a necessidade de que viesse de uma ordem que revelasse perpetuidade. E as Escrituras diziam ser essa ordem a de Melquisedeque.
Uma das coisas em que às vezes se procura semelhança entre Cristo e o sumo sacerdote israelita, são as vestes sumo-sacerdotais. Mesmo nisso, porém, os pontos em comum são poucos, se é que podemos encontrar algum.
As vestes do sumo sacerdote levita eram compostas, basicamente, de sete peças, de acordo com Levítico 8:7-9: túnica, cinto, manto, éfode, cinto lavrado do éfode, peitoral (no qual estavam o Urim e o Tumim) e a mitra de ouro (a coroa da santidade). O texto citado não menciona se apenas Nadabe e Abiú estavam presentes por ocasião da ordenação, mas é possível que pelo menos eles estivessem. Sua vestimenta se compunha de apenas três peças, conforme relata o verso treze: túnica, cinto e mitra.
Poucas são as referências feitas no Novo Testamento às vestes de Jesus, e Sua túnica inconsútil não parece confundir-se com as roupas usadas pelo sumo sacerdote levita. O vidente de Patmos relata que viu “no meio dos sete castiçais um semelhante ao Filho do homem, vestido até aos pés de um vestido comprido, e cingido pelos peitos com um cinto de ouro.”15 Mas além do vestido e do cinto, não existem outras semelhanças entre o Filho do homem e o sacerdote israelita. Este não tinha cabelos brancos como a lã (pelo menos obrigatoriamente), pés semelhantes ao latão reluzente; nem lhe saía da boca uma aguda espada. Além de outros característicos relatados no texto.
Lei e juramento
Entre os argumentos usados pelo autor de Hebreus – em torno de dez, só no capítulo sete -, para mostrar a superioridade do sacerdócio de Jesus sobre o sacerdócio levítico, figura a questão da lei e a do juramento. Essas duas questões, bem como as várias outras utilizadas pelo autor, mostram o contraste existente entre os dois sacerdócios, colocando Cristo sempre em vantagem.
A lei a que se faz referência nessa argumentação é a lei levítica que se relacionava com a instituição do ministério sacerdotal do povo israelita. O autor de Hebreus menciona-a seis vezes no sétimo capítulo, referindo-se ora ao dízimo entregue por Abraão a Melquisedeque, ora à perfeição do sacerdócio levítico; mostrando que ela não aperfeiçoou coisa alguma, ou declarando a espécie de homens que ela constituía. Considerava ele que, “mudando-se o sacerdócio, necessariamente se faz mudança na lei”.1 26 Achava que esta não deveria continuar mais em vigor, sendo que havia sido instituída por Deus outra ordem sacerdotal posterior e mais perfeita.
O verso bíblico usado pelo escritor em defesa do sacerdócio de Jesus (Salmo 110:4), inicia-se com o verbo jurar. “Jurou o Senhor, e não Se arrependerá.”17 O juramento sempre teve um valor especial entre o povo hebreu; agora, porém, tinha um peso muito maior, por ser o Senhor quem o estava fazendo.
O sacerdote israelita não havia sido fruto de juramento. “Porque certamente aqueles, sem juramento, foram feitos sacerdotes”.18 O Senhor não havia jurado que seria sacerdote. Ele era o resultado de um sistema legal. A lei disse o que devia ser feito, e Moisés executou a ordem. Embora ambas as coisas procedessem de Deus, a lei tinha caráter transitório; o juramento possuía sentido eterno. “Porque a lei constitui sumos sacerdotes a homens fracos, mas a palavra do juramento, que veio depois da lei, constitui ao Filho, perfeito para sempre”,19 comenta o autor da carta.
Muitos outros pontos de contraste poderiam ser mencionados, além dos que foram comentados neste artigo, mas ficaremos com estes, a fim de não nos estendermos demais. O pesquisador das Escrituras verá que, mesmo em pontos nos quais o autor de Hebreus procura estabelecer um paralelo entre o dois sacerdócios, ele não consegue fugir do contraste, como no caso do lugar em que o sumo sacerdote entrava, e o lugar no qual Jesus entrou e continua.
Por isso, o conselho do autor não poderia ser mais oportuno, para finalizarmos este trabalho: “Cheguemos pois com confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e achar graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno.”20