Muitos cristãos afirmam que a morte de Cristo aboliu a obrigatoriedade da observância do sábado. Como suposto apoio a essa maneira de crer, apresentam a seguinte passagem bíblica: “tendo cancelado o escrito de dívida, que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual era prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o na cruz; … Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir, porém o corpo é de Cristo” (Col. 2:14-17).
A princípio, pode até parecer que os Dez Mandamentos, juntamente com o sábado, foram ab-rogados quando cristo expirou na cruz. Mas, teria tal pensamento o apoio de um exame mais acurado do texto? Para compreendermos plenamente a declaração paulina, é necessário que tenhamos uma visão mais ampla da situação reinante em Colossos, e que motivou a epístola.
Quem eram os crentes Colossenses
A cidade de colossos, situada a aproximadamente 200 quilômetros ao sudeste de Éfeso, na Ásia Menor, dividia o Vale do Rio Lycus com Laodicéia e Hierápolis. Invasores frígios tinham originalmente ocupado a área antes de ela se tornar parte do Império Romano. Colossos prosperou, graças à sua privilegiada localização na principal rota de comércio para o Oriente, seus negociantes de lã, tecido e tinta.1
Em virtude do grande fluxo de viajantes, seus habitantes viviam sob a influência de várias religiões. Alguns se entregaram aos ritos sexuais promíscuos da deusa Cibele, adorada na próxima Hierápolis. Outros se deixaram encantar pelo exorcismo e pela magia da vizinha Éfeso (Atos 19:13 e 19), ou pela formalidade mística do judaísmo.2
Finalmente, o evangelho alcançou a cidade de Colossos durante o ministério de Paulo, desempenhado em Éfeso, entre 52 e 55 a.D. Seus esforços atingiram tanto a judeus como gregos naquela região (Atos 19:10). Aproximadamente cinco anos após deixar a cidade de Éfeso, o apóstolo dos gentios foi aprisionado em Roma. Ali encontrou-se com Epafras, o possível fundador da igreja colossense (Col. 1:7), que lhe trouxe algumas boas notícias, mas também informou-lhe de que alguns dentre aqueles cristãos haviam abraçado estranhos ensinos que estavam minando a boa influência do evangelho.3
Já tendo atacado algumas dessas heresias, anteriormente, em sua carta aos gálatas, Paulo agora enfrenta um novo desafio. E adverte:
“Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs subtilezas, conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo; … NEle também fostes circuncidados, não por intermédio de mãos, … e vos deu vida juntamente com Ele, … cancelando o escrito de dívida, que era contra nós e que constava de ordenanças, … Ninguém se faça árbitro contra vós outros, pretextando humildade e culto dos anjos, … Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, porque… vos sujeitais a ordenanças: … Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e falsa humildade, e rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade” (Col. 2:8-23).4
Edwin M. Yamauchi, refletindo sobre a evidência, declara: “… Paulo com óbvia exatidão, vê no herético ensinamento gnóstico a sabedoria secreta de uma classe sincretista, misturada com o ritualismo judaico, e especulação sobre anjos.”5
Mas o que a preocupação de Paulo, a respeito de tal heresia, tem a ver com sua referência a “sábados” no segundo capítulo dessa epístola? Vamos tomar a declaração ponto por ponto:
Exame do texto
“Tendo cancelado…” A palavra grega para essa frase é exaleipsas. É usada no grego clássico para o ato de “apagar” ou “obliterar” textos em um documento, colocando um “x” sobre as palavras removidas ou simplesmente apagando-as.6
“O escrito de dívida que era contra nós” ou to kath’ Hemon Cheirographon. A palavra cheirographon é um termo comum nos papiros extrabíblicos, embora apareça apenas nessa passagem em todo o Novo Testamento. Um cheirographon era um documento escrito, frequentemente legal em sua natureza, tanto quanto um contrato assinado por um devedor. A expressão Kath’ Hemon significa “contra nós” ou “sobre nós” (Josué 9:20, Versão Septuaginta), e modifica a palavra cheirographon. Juntando as duas coisas, podemos assim traduzir a frase: “o contrato contra nós”. Ela evoca uma similar frase hebraica, usada no tempo da proclamação da lei de Moisés: “Tomai este livro da lei… para que ali esteja por testemunha contra ti” (Deut. 31:23). Esse livro da lei, colocado “ao lado da arca da aliança”, testemunharia contra os filhos de Israel se eles não o seguissem (Êxo. 25:16). A mesma frase é usada em II Reis 22:13, quando Josias encontrou o livro da lei: “… grande é o furor do Senhor, que se acendeu contra nós, porquanto nossos pais não deram ouvidos às palavras deste livro, para fazerem segundo tudo quanto de nós está escrito”.
“De ordenanças” ou tois dogmasin, são expressões traduzidas como “em estatutos” ou “conteúdo de decretos” em outras versões. No verso 20, tois dogmasin claramente se refere às ordenanças cerimoniais. Portanto, a mesma frase no verso 14 também deve se referir aos decretos e leis do sistema legal judaico que encontrou sua consumação na cruz. É interessante notar que a mesma palavra chave aparece numa passagem paralela na carta aos efésios: “Porque Ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo derrubado a parede de separação que estava no meio, a inimizade, aboliu na sua carne a lei dos mandamentos na forma de ordenanças (en dogmasin), para que dos dois criasse em si mesmo um novo homem, fazendo a paz” (Efés. 2:14 e 15).7
O que “era contra nós”, ou hupenantion, aparece exatamente duas vezes no Novo Testamento: Uma vez, na carta aos colossenses. Outra, como um substantivo no livro aos Hebreus 10:27. A King James Version traduz a declaração como “adversários”. Outros possíveis significados são: “muito contra”, “contrário”, “adverso”, e “inimigo”.8
Juntando toda a frase, chegaremos a uma dinâmica tradução: “o escrito de dívida que era contra nós, o qual, em virtude das ordenanças, testificava contra nós.” Durante uma discussão quanto a ser ou não obrigatória para os gentios convertidos a observância da lei cerimonial, Pedro disse: “Agora, pois, por que tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais puderam suportar, nem nós?” (Atos 15:10).
A lei cerimonial era contra judeus e gentios. Era contra os judeus porque eles lhe haviam adicionado uma montanha de restrições, tornando impossível a sua observância. Além do fato de que ela apontava a sua rebelião contra as instruções de Deus, tal como uma lei de trânsito testifica contra os que a transgridem. A lei cerimonial também era contra os gentios porque se havia tornado “uma parede de separação” entre eles e os que poderiam ter-lhes ensinado a verdade sobre Deus.
“Por causa de comida e bebida” vem do grego en brosi kai en posei. Mais que uma referência a alimentos específicos, a frase descreve práticas rituais de comida e bebida.9
“Ou dia de festa” (heortes) “ou lua nova” (e neomenias), ou sábados (e sabbaton), representam algumas celebrações relatadas. Heortes significa “festa” ou “festival”,10 particularmente as festas sagradas judaicas (S. Mat. 26:5; S. Luc. 2:41; 22:1; S. João 5:1; Atos 18:21). Neomenias aponta para as comemorações judaicas de cada mês lunar como uma festa sagrada nos tempos do Velho Testamento. Sabbaton é a mais discutida das palavras na passagem bíblica que estamos considerando. Desde que o original grego não traz artigo, ela pode ser traduzida como “dias de sábado” ou como “um sábado”.11 Frequentemente encontramos os termos “festas”, “lua nova” e “sábado” ligados a uma frase descritiva de alguma cerimônia anual judaica (II Crôn. 2:4; 31:3; Nee. 10:33; Eze. 45:17; Oséias 2:11; Isa. 1:13 e 14. Nesses textos, a ordem dos três elementos pode variar, mas todos eles estão sempre presentes). “Sábados” eram portanto, uma parte das festas anuais. Eis a relação destas festas:
• A Páscoa — Lev. 23:5 (14 de nisan).
• A Festa dos Pães Asmos — Lev. 23:6 (15 a 22 de nisan).
• A Festa das Semanas/Pentecoste — Lev. 23:23 (cinquenta dias após a Páscoa, ou seja, 6 de sivan).
• A Festa das Trombetas — Lev. 23:24 (1º de tishri).
• O Dia da Expiação — Lev. 23:32 (15 de tishri).
• A Festa dos Tabernáculos — Lev. 23:39 (15 a 22 de tishri).
Os sábados cerimoniais
O primeiro dia da Festa dos Pães Asmos — Lev. 23:7 (15 de nisan). Era chamado “Santa Convocação”, “ou sábado”.
• O sétimo dia da Festa dos Pães Asmos — Lev. 23:8 (21 de nisan). Era chamado “Santa Convocação”.
• Pentecoste — Lev. 23:21 (6 de sivan). Chamado “Santa Convocação”.
• A Festa das Trombetas — Lev. 23:24 (lº de tishri). Também é chamado “Santa Convocação”, ou “sábado”.
• O Dia da Expiação — Lev. 23:27 e 32 (15 de tishri). Chamado “Santa Convocação”, ou “sábado de repouso”.
• O primeiro dia da Festa dos Tabernáculos — Lev. 23:35 (15 de tishri). Chamado “Santa Convocação” ou “sábado”.
• O oitavo dia da Festa dos Tabernáculos — Lev. 23:36 (22 de tishri). Chamado “sábado”.
Há uma diferença óbvia entre os sábados da lei cerimonial e o sábado semanal, “o sábado do Senhor”. Este, sempre cai no mesmo dia do ciclo semanal. Aqueles, caíam em diferentes dias da semana, de ano para ano. Deus ordenou a Israel, na lei de Moisés, guardar os sábados cerimoniais, “além dos sábados do Senhor” (Lev. 23:38, RSV). A expressão “sábados do Senhor” refere-se ao sábado dos Dez Mandamentos, também conhecido como “o santo sábado do Senhor”^ ao qual Deus chama “Meu santo dia” (Êxo. 20:10; 16:23 e 26; Isa. 58:13).
Adam Clarke, ao comentar este importante aspecto, escreveu: “Não há aqui o menor indício de que o sábado tenha sido ab-rogado, ou que seu uso moral foi suprimido pela introdução do Cristianismo. … Lembrar do dia de sábado, observá-lo como santo, é uma ordem de obrigação perpétua, que jamais será alterada até à consumação dos séculos.”12
Thomas Hamilton, em seu livro Our Rest Day (Nosso Dia de Repouso), diz: “… Sofrer a penalidade da lei, não quer dizer aboli-la. Tampouco perfeita obediência à lei significa ab-rogá-la. Essas duas coisas constituem o que Cristo realizou. Ele prestou uma perfeita obediência à lei, e carregou por Seu povo a penalidade máxima da lei. Nenhum desses dois feitos insinua alguma coisa parecida com abolição da lei. Quando qualquer criminoso sofre uma pena, isso significa algo inteiramente diferente de abolição da lei. É exatamente o contrário. Manifesta o valor da lei. Sua morte magnífica a lei.”13
Jamieson, Fausset, e Brown escreveram que embora “o Dia da Expiação e a Festa dos Tabernáculos tiveram um fim, juntamente com os serviços judaicos aos quais estavam ligados (Lev. 23:32, 37-39), o sábado semanal repousa sobre um mais permanente fundamento, sendo instituído no Paraíso, para comemorar a conclusão da obra criadora de Deus, realizada em seis dias”.14
David Weham também escreveu sobre o assunto: “É preciso fazer a distinção entre aquelas leis que deveriam apontar para Cristo e que são desnecessárias depois de Sua vinda (ex.: a lei cerimonial, de acordo com o livro aos Hebreus), e a lei moral que não aponta tão claramente para Cristo (embora fosse mais completamente explicada por Ele), e que continua mostrando a verdade moral para os cristãos. A lei moral foi plenamente cumprida por Cristo, em um sentido diferente da lei cerimonial: ela não foi suprimida, mas está incluída no novo padrão de referência para o cristão.”15
“Sombra das coisas futuras” ou ski tou mellonton. Essa frase identifica o tipo de sábado mencionado aqui, ou seja, está associado com festas e luas novas. O sábado do 4- mandamento não é uma sombra, mas um memorial. A sombra que passou estava relacionada com sacrifícios cerimoniais: ‘‘Ora, visto que a lei tem sombra dos bens vindouros, não a imagem real das coisas, nunca jamais pode tornar perfeitos os ofertantes, com os mesmos sacrifícios que, ano após ano, perpetuamente, eles oferecem” (Heb. 10:1).
“Mas o corpo é de Cristo” é uma declaração tomada de to de soma tou Christou. Na epístola aos efésios Paulo estabelece que a Igreja, como a reunião dos antigamente afastados judeus e gentios, é o corpo de Cristo (Efés. 1:22 e 23; 2:16).
Conclusão
A heresia existente na igreja de Colossos e a refutação de Paulo nos ensinam algumas coisas: Primeiramente, ela foi fabricada por um legalismo que mascarou um gnosticismo rudimentar. Também vimos que o “escrito de dívida, que era contra nós e que constava de ordenanças’’, removido e cravado na cruz, significa as leis cerimoniais as quais judeus e gnósticos pretendiam aceitar como meio de salvação. Em virtude de que essas leis foram abolidas, Paulo assegura aos cristãos Colossenses que eles não necessitavam estar preocupados com o serem avaliados por cerimoniais de comida e bebida, por seus dias de festa, luas novas ou sábados. Depois de tudo, essas coisas eram uma débil representação da exata realidade no crucificado, ressurreto e esperado Cristo.
Perguntamos então: Foi o sábado cravado na cruz? Certamente, não o sábado semanal, estabelecido na Criação e no qual Cristo repousou durante a Sua morte. Embora a humanidade tenha se esquecido do dia que Deus ordenou lembrar, as palavras de Jesus permanecem ainda hoje: “de sorte que o Filho do Homem é senhor também do sábado’’ (S. Mar. 2:28).
1. Charles Rosenbury Erdman, The Epistle of Paul to the Colossians and to Philemon, The Westminster Press, 1933, Philadelfia, pág. 9.
2. Os Oráculos Sibilinos foram escritos nesta região, ao redor de 80 a.D. e evidentemente um produto do judaísmo. Todavia, eles estão mais identificados com o pensamento da religião dos Essênios do que com o dos fariseus, já que rejeitam sacrifícios, condenam o derramamento de sangue como purificação, e são mais rigorosos do que os fariseus no sentido de inculcarem o dever de frequentes abluções.
3. Edmund K. Simpson and Frederick F. Burce, Commentary on the Epistles to the Ephesians and Colossians, Eerdmans Pub. Co., Grand Rapids, 1975, págs. 163 e 164.
4. Joseph Barber Lightfoot, Saint Paul’s Epistle to the Colossians and to Philemon, MacMillian and Co. Ltda., 1927, Londres, págs. 51 a 115. J. B. Lightfoot nos fornece uma plausível ligação entre judaizantes e gnósticos na última heresia de Cerinto, que viveu e ensinou na última década do primeiro século. Foi contemporâneo do apóstolo João. Policarpo relata que João denunciou Cerinto, em uma memorável ocasião, diretamente face a face, e Irenaeus acrescenta que o Evangelho de João foi escrito com o propósito de refutar os erros de Cerinto. Seu sistema de cosmologia era essencialmente gnóstico. Incluía uma pluralidade de poderes criadores do Universo, que eram ligados com a humanidade através de uma série de intermediários angélicos.
5. Edwin M. Yamauchi, Pre-Christian Gnosticism, Eerdmans Pub. Co., 1973, Grand Rapids, pág. 67.
6. James Hope Moulton and George Milligan, The Vocabulary of the Grek Testament, Eerdmans Pub. Co., 1949, Grand Rapids, pág. 687.
7. Henry Clarence Thiessen, Introduction to the New Testament, Eerdmans Pub. Co., 1943, Grand Rapids, págs. 229 e 240. Dos 155 versos da carta aos efésios, 78 são encontrados na carta aos Colossenses em variados graus de identidade.
8. Harold K. Moulton, The Analytical Greek Lexicon Revised, Eerdmans Pub. Co., 1978, Grand Rapids, pág. 414.
9. Samuel Bacchiochi, From Sabbath to Sunday: a Historical Investigation, Imprensa da Universidade Pontifícia Gregoriana, Roma, 1977, pág. 355. Ver também Francis D. Nichol, SDBAC, Review and Herald Pub. Co., 1980, Washington, pág. 205.
10. Moulton and Milligan, pág. 226.
11. Algumas vezes a forma plural traz significado singular (S. Luc. 4:16; S. Mat. 12:1) e noutras vezes a forma singular traz significado plural (S. Mar. 16:9). Ainda outras vezes a palavra pode ser plural em forma e significado (S. Mat. 28:1; S. Mar. 16:2; S. Luc. 24:1; S. João 20:1, 19; Atos 20:7; I Cor. 16:2). Na Septuaginta, os tradutores usam a forma plural de sabbaton para traduzir a palavra hebraica no singular em Êxodo 16:23, 25, 26 e 29. Também a Septuaginta usa o plural sabbata para traduzir Êxodo 20:8, 10; 31:15; 35:2, enquanto o sentido é obviamente singular. Douay, King James, Goodspeed e Moffat traduzem como plural, enquanto a American Standard Weimouth, Revised Standard, Lamsa, Confraternity e Novo Mundo traduzem como singular.
12. Kenneth H. Wood, The Sabbath Days of Colossians 2:16 e 17, in The Sabbath in Scripture and History, ed. Kenneth A. Strand, RH, 1982, pág. 340.
13. Milian Lauritz Andreason, The Sabbath: Which Day and Why?, RH, Washington, 1942, pág. 216.
14. Wood, pág. 340.
15. Henry A. Vickler, Principies and Processes of Biblical Interpretation, Baker Book House, Grand Rapids, 1981, pág. 141.