O Evangelho de Tomé é um dos mais misteriosos e debatidos documentos do início do cristianismo. Esse documento, que nunca foi aceito como canônico, esteve perdido até 1945, quando foi encontrado numa tradução copta (escrita em caracteres gregos), enterrado na Biblioteca de Nag Hammadi, no Egito. De acordo com o Dr. Michael White, diretor do Programa de Estudos Religiosos da Universidade do Texas, “sua redescoberta tem provocado inúmeros debates acerca de sua relação com os evangelhos canônicos e seu papel no desenvolvimento do cristianismo”. Alguns estudiosos o têm chamado de Quinto Evangelho. Mas, há, de fato, bases concretas para que esse documento misterioso possa ter sido um evangelho autêntico?

Para avaliar a autenticidade do Evangelho de Tomé, de um ponto de vista eminentemente teológico, é necessário analisar alguns aspectos pertinentes a essa questão: em primeiro lugar, o que o texto nos diz. Em segundo lugar, que semelhanças e diferenças existem entre o documento e os evangelhos canônicos. Finalmente, qual a relevância desses fatores, quando confrontados com o que se conhece acerca da história e da teologia do cristianismo primitivo.

O que diz o texto

O Evangelho de Tomé, sem dúvida alguma, é o documento mais famoso da Biblioteca de Nag Hammadi, que inclui treze códices contendo mais de 50 tratados, provavelmente copiados do quarto século a.D. O Evangelho de Tomé é o segundo tratado do Códice 2, e deve ser a tradução de um original aramaico composto provavelmente antes dos grandes códices, isto é, no segundo século.

O propósito desse evangelho é revelar o significado oculto dos dizeres de Jesus. Seu texto encoraja a renúncia de alimentos e bebidas, despreza o jejum e defende o sábado como dia de guarda. O teor de sua pregação é o de um retorno a uma ingenuidade primordial paradisíaca. Por isso, esse evangelho valoriza a nudez como algo positivo: “E os discípulos Lhe perguntaram: quando será a Tua revelação e quando Te veremos? E disse-lhes Jesus: quando vos despirdes sem receio e tomardes as vossas túnicas e as colocardes debaixo dos vossos pés como criancinhas e as pisardes, então vereis o Filho do Deus vivo, e não temereis.”

Além disso, o autor do Evangelho de Tomé valoriza a superação das diferenças entre gêneros, em favor da supremacia da masculinidade: “E tendo visto infantes sendo amamentados, disse Jesus: os que entram no reino são como criancinhas que são amamentadas. Então Lhe perguntaram: Entraremos nós no Céu como criancinhas? E Jesus lhes respondeu: quando dois se tornarem um só, e quando o exterior for como o interior, e o interior, como o exterior, e a parte de cima, como a de baixo, e quando do varão e da varoa se fizer um só, de modo que o varão não mais o seja, e a varoa não mais o seja, e vossos olhos forem mudados em outros olhos, e vossas mãos em outras mãos, e vossos pés em outros pés, e a vossa aparência em outra aparência, então entrareis [no reino].” Isso se deve provavelmente a uma associação com o que disse Jesus em Mateus 18:4: “Portanto, quem se tornar humilde como esta criança, esse é o maior no reino dos Céus.”

Jesus é visto, acima de tudo, como um revelador de mistérios: “Jesus disse: “Dar-vos-ei as coisas que olhos não viram, nem ouvidos ouviram, nem mãos tocaram, nem penetraram o coração do homem”, o que se aproxima muito do que Paulo afirmou em I Cor. 2:9.

A escatologia de Tomé sempre é feita em referência ao paraíso, pois, segundo ele, o início é mais importante do que o fim. O mundo é visto como um elemento estranho; O próprio ser humano é superior ao mundo e, sendo assim, pode superá-lo. O mundo foi objeto de consumo até a revelação, mas, depois, passou a consumir o homem e, por isso, deve ser evitado. De acordo com o evangelho, Jesus teria afirmado que “quem compreende o mundo encontra apenas um cadáver; e quem encontra um cadáver é superior ao mundo”.

Desta maneira, Tomé se torna o depositário dos mistérios de Cristo. “Então lhes perguntou: Mas vós, quem dizeis que Eu sou? Respondendo, Pedro Lhe disse: Tu és um anjo justo; e Mateus Lhe disse: Tu é um filósofo sério. Porém Tomé Lhe disse: Mestre, não sou capaz de dizer-Te quem Tu és. Jesus repreendeu-o, então, dizendo: Eu não sou vosso Mestre. Porque bebestes da fonte borbulhante a qual Eu vos havia proibido, estais embriagado. E, tomando-o à parte, ensinou-lhe três coisas: Quando Tomé retornou aos outros, eles o interrogaram: O que te disse Jesus? Ao que Tomé responde-lhes: Se eu vos disser uma única coisa daquilo que Ele me ensinou, tomareis pedras para, com elas, me apedrejar; então fogo descerá do céu para vos consumir e a vossas pedras.”

No Evangelho de Tomé, os servos de Cristo são aqueles que compreendem sua origem e destino. “Disse Jesus: Tornai-vos peregrinos!” Contudo, só os solteiros entrarão na câmara nupcial de Cristo: “Disse Jesus: “Muitos estão à porta, mas só o solteiro entrará na câmara nupcial.”

Comparação com os sinóticos

Aproximadamente um terço do Evangelho de Tomé encontra eco nos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). No entanto, sua proximidade maior se dá com o quarto evangelho, uma vez que Tomé e João compartilham alguns de seus símbolos, como por exemplo, luz, fonte, etc. Mas a análise criteriosa desses ecos tem revelado exatamente isso: não passam de ecos. Muitas vezes, dizeres semelhantes aos dos evangelhos canônicos aparecem em contextos completamente distintos e, não raro, incompreensíveis. Em verdade, os dizeres de Tomé são opacos, isto é, são tão indecifráveis que acabam se prestando a qualquer desconstrução, como, por exemplo, o trecho segundo o qual Jesus teria dito que “aquele que busca continue a procurar até encontrar. Quando encontrar, escandalizar-se-á. Quando se escandalizar, ficará, então, perplexo e há de reinar sobre o mundo”.

De modo geral, Tomé apresenta três diferenças marcantes em relação aos evangelhos canônicos: não faz nenhuma menção do nascimento de Cristo, nunca menciona sequer um milagre realizado por Jesus e não apresenta qualquer coesão. Ao contrário dos evangelhos canônicos, nos quais se percebe nitidamente o progresso de uma narrativa, em Tomé, o que se encontra é um amontoado de dizeres.

De maneira mais específica, Tomé difere de João (que é o evangelho do qual mais se aproxima) em vários aspectos. João acredita na realidade física da ressurreição; o Evangelho de Tomé nada fala a respeito do assunto. A presença de Jesus é espiritual. João enfatiza a fé; Tomé valoriza experiências místicas. João aceita ritos como o batismo; Tomé os rejeita completamente. Só as palavras de Jesus, segundo ele, têm participação na salvação do homem.

Basicamente, a única equivalência inequívoca entre Tomé e os evangelhos canônicos se liga ao fato de que Jesus morreu pela salvação da humanidade.

Teologia e história

O texto do evangelho atribuído a Tomé é inegavelmente muito antigo. Seus dizeres sapienciais podem mesmo ser mais primitivos que os de João. Então, como explicar a presença de um documento tão antigo com um texto tão desconcertante?

Primeiramente, tentou-se entender o texto de Tomé à luz do movimento gnóstico. Talvez o documento tivesse sido uma reconstrução gnóstica dos evangelhos. Mas os eruditos esbarraram numa dificuldade intransponível nessa tentativa de ligar Tomé aos gnósticos. Esse evangelho deve ser lido em conjunto com os demais documentos encontrados em Nag Hammadi (ainda que esses não formem um corpo totalmente coeso), porque ele se encaixa numa estrutura conceituai que pode ser identificada com tais textos. E todos os outros documentos de Nag Hammadi são antignósticos. Além disso, o tratamento que Tomé dá à alma difere nitidamente da abordagem gnóstica.

Em segundo lugar, tentou-se ligar o evangelho mais especificamente à comunidade essênia. Mas aqui também houve obstáculos. Praticamente tudo o que se sabe acerca dos essênios se deve a Josefo e aos rolos do Mar Morto (se é que a comunidade de Qumram era, de fato, essênia). Ora, o único ponto de contato entre Tomé e os essênios é o ascetismo, o que é muito pouco para definir o documento como essênio.

Finalmente, uma teoria mais plausível afirma que o texto pode representar as idéias de uma corrente ascética que parece ter morrido com o sepultamento dos códices de Nag Hammadi, embora certas partes de sua tradição possam ter sobrevivido. Segundo o Dr. Harold Attridge, professor de Teologia na Universidade de Yale, “sem se menosprezar a origem desse evangelho, o contexto do documento parece revelar uma adaptação monástica por parte da comunidade de Nag Hammadi, de maneira bastante plástica, de uma tradição ligada ao Banquete, de Platão, segundo a qual a espiritualidade se encontra ligada a um ser andrógino”.

De acordo com o erudito, trata-se de um evangelho para monges. O Banquete apresenta o andrógino como ser ideal e considera a divisão dos sexos como um castigo divino à rebeldia humana: “Assim seccionada a natureza humana, cada uma das metades pôs-se a procurar a outra. Quando se encontraram, abraçaram-se e se entrelaçaram num insopitável desejo de novamente se unirem para sempre.”

Para essa comunidade espiritual de valores ascéticos, Tomé aparece como discípulo ideal, em disputa com João. Trata-se de uma espécie de rivalidade de tradições. Essa conclusão é possível porque o evangelho se encaixa no padrão de outros movimentos ascéticos. A maneira como o texto manipula tradições anteriores é paralela a práticas similares nas comunidades cristãs primitivas.

A importância do Evangelho de Tomé se deve então, em grande parte, ao fato de poder representar evidência de que, em algum momento antes da influência dos paradigmas eclesiásticos iniciais, houve uma comunidade cristã composta por homens e mulheres, em um status plenamente igualitário, em um contexto ascético. Em Tomé, só existe a ekklesia do homem solitário ou solteiro. Uma evidência adicional disso é que Eusébio comentou acerca dos problemas causados por homens e mulheres ligados ao ascetismo.

De modo geral, o evangelho atribuído a Tomé parece refletir a voz de um profeta solitário que confia mais na tradição oral do que nos documentos escritos que já começavam a circular em sua época.

É o evangelho um documento muito antigo? Isso é inegável. Poderia ou deveria ter sido incluído no cânon? De forma alguma. Em primeiro lugar, o texto não representa nem os ensinos dos apóstolos nem os de Cristo, mas reflete os ideais de uma pequena comunidade dentro do cristianismo. Em segundo lugar, a linguagem obscura e mística nele encontrada parece incompatível com a clareza cristalina das palavras de vida encontradas nas Escrituras. Finalmente, alguns dos episódios ali narrados parecem embaraçosamente distantes dos relatos canônicos. Um exemplo disso é o suposto diálogo entre Jesus e Salomé: “E disse Jesus: Dois estarão no leito; um será tomado e o outro será deixado. E Salomé perguntou: Quem és Tu, varão, que vens ao meu leito e comes da minha mesa? E Jesus lhe respondeu: Eu sou o que existe do indivisível e a Mim Me foram dadas as coisas do Pai.”

MILTON L. TORRES, Professor de Línguas no Seminário de Teologia do Iaene, atualmente cursa o doutorado em Línguas Antigas na Universidade do Texas, Estados Unidos