De que, finalmente, depende a salvação do homem? Da fé no sacrifício de Jesus e aceitação Dele como Salvador pessoal, ou das boas obras que se seguem a essa fé? Eis uma pergunta muito gasta nos círculos teológicos e também na Igreja Adventista, cuja resposta pode parecer óbvia. Uma vez que aceitamos a Cristo como nosso Salvador, desejaremos fazer Sua vontade, mesmo que nossas boas obras não nos salvem. Não podemos merecer a salvação, mas podemos expressar nossa lealdade e nosso compromisso com Cristo de buscar, com a ajuda de Deus, andar nos Seus passos.

Mas há um problema. As passagens bíblicas que tratam especificamente do julgamento nos dizem que seremos julgados por nosso comportamento. Nenhuma passagem diz explicitamente que seremos julgados por nossa fé em Cristo, seguida de boas obras.

Vejamos algumas dessas passagens: “Segundo as obras deles, assim retribuirá” (Isa. 59:18). “Eu, o Senhor, esquadrinho o coração, Eu provo os pensamentos: e isto para dar a cada um segundo o seu proceder, segundo o fruto das suas ações” (Jer. 17:10). “Ele te declarou, ó homem, o que é bom e o que é o que o Senhor pede de ti: que pratiques a justiça e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus.” (Miq. 6:8). “Agora, vem o fim sobre ti; enviarei sobre ti a Minha ira, e te julgarei segundo os teus caminhos, e farei cair sobre ti todas as tuas abominações” (Ezeq. 7:3). “E quem der a beber, ainda que seja um copo de água fria, a um destes pequeninos, por ser este Meu discípulo, em verdade vos digo que de modo algum perderá o seu galardão” (Mat. 10:42). “Porque o Filho do homem há de vir na glória de Seu Pai, com os Seus anjos, e, então, retribuirá a cada um conforme as suas obras” (Mat. 16:27). “Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos.” (Mat. 19:17). “Não vos maravilheis disto, porque vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a Sua voz e sairão: os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que tiverem praticado o mal, para a ressurreição do juízo” (João 5:28 e 29). “Aquele que tem os Meus mandamentos e os guarda, esse é o que Me ama; e aquele que Me ama será amado por Meu Pai e Eu também o amarei e Me manifestarei a ele” (João 14:21). “Pelo contrário, em qualquer nação, aquele que O teme e faz o que é justo Lhe é aceitável” (Atos 10:35). “Ora, o que planta e o que rega são um; e cada um receberá o seu galardão, segundo o seu próprio trabalho” (I Cor. 3:8). “E não cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não desfalecermos” (Gál. 6:9). “Ora, se invocais como Pai aquele que, sem acepção de pessoas, julga segundo as obras de cada um, portai-vos com temor durante o tempo da vossa peregrinação” (I Ped. 1:17). “Matarei os seus filhos, e todas as igrejas conhecerão que Eu sou aquele que sonda mente e corações, e vos darei a cada um segundo as vossas obras” (Apoc. 2:23). “Aqui está a perseverança dos santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus.” (Apoc. 14:12). “Deu o mar os mortos que nele estavam. A morte e o além entregaram os mortos que neles havia. E foram julgados, um por um, segundo as suas obras” (Apoc. 20:13).

Como podemos harmonizar essas passagens, as quais enfatizam as obras, especialmente relacionando-as com julgamento, com uma igualmente formidável lista de versos que realçam o papel da fé?

Harmonia de posições

A tarefa de conciliar tais posições, aparentemente divergentes, é possível se reconhecermos dois fatos centrais: 1) Deus é justo: 2) a grande maioria daqueles que viveram e morreram, ou nunca ouviu a respeito de Cristo ou não ouviu o suficiente para avaliar Seus requerimentos. Essa maioria inclui toda a população que habitava o mundo antes do nascimento de Cristo, e muitos também depois do Seu nascimento. Ainda hoje, com todo o avanço tecnológico da comunicação, a maioria da raça humana não tem sido exposta ao evangelho.

Estariam perdidos todos aqueles que nunca ouviram de Jesus? Como poderiam ser eles responsabilizados por não terem fé em Cristo e não submeterem o coração a Alguém de quem jamais ouviram falar? Poderíamos nós esperar tal atitude de um Deus que, indubitavelmente, é mais justo que qualquer ser humano?

Tenho ouvido inumeráveis sermões e lido muitos artigos proclamando a fé em Cristo como crucial para a salvação, mas que passam por alto desse significativo dilema teológico.

Há uma maneira, eu acredito, pela qual a doutrina da justificação pela fé pode ser conciliada com o julgamento do homem “segundo as suas obras”. Deus é a fonte e a inspiração para tudo o que é bom. Ele fala através das Escrituras e através do Espírito Santo. Se aqueles que nunca ouviram falar de Cristo respondem ao Seu Espírito na medida em que o Senhor lhes fala, um julgamento baseado no comportamento lhes dá a mesma oportunidade de salvação que àqueles que aceitaram as boas-novas, pela fé, quando foram alcançados por elas. Demanda a justiça algo menos que isso?

Considere aqueles que crêem que a fé em Jesus como Seu Salvador os qualifica para a salvação, entendendo que tal profissão induzirá a um comportamento apropriado. Agora pense nos milhares de indivíduos que freqüentam as igrejas por aí afora. Eles se consideram cristãos “nascidos de novo”, dizem ter aceito a Cristo como o Filho de Deus que morreu por seus pecados; muitos, sem dúvida, acreditam nEle como Seu Salvador. E não são insinceros na maneira como crêem, ainda que seu estilo de vida seja pouca coisa diferente da média dos descrentes honestos e decentes que também existem por aí. Se não freqüentassem uma igreja, ninguém teria razões para suspeitar que fossem cristãos.

“Aceitar a Cristo”, portanto, deve significar muito mais que mera profissão verbal, assistência à igreja, leitura da Bíblia, doações liberais, engajamento em um grupo de oração ou ativo testemunho. O teste do compromisso cristão não é quanto nós assistimos à igreja ou lemos a Bíblia, ou oramos, mas como nos comportamos quando não estamos fazendo essas coisas. Essa perspectiva radical une os ensinos de Jesus com os versos bíblicos sobre o julgamento.

A menos que a aceitação de Cristo afete de modo significativo todo o nosso comportamento, a profissão de fé nEle é como o metal que soa e como o sino que retine. Assim, se os cristãos, também, são julgados “segundo as suas obras”, seu comportamento deve demonstrar se sua aceitação de Cristo é simplesmente uma verborragia superficial ou se ela penetrou no íntimo do ser. O padrão comportamental torna-se igualmente aplicável tanto às pessoas que afirmam que são cristãs como àquelas que, embora parcial ou completamente ignorantes em relação às boas-novas, deram boas-vindas às silenciosas sugestões do Espírito Santo em sua vida (ver Rom. 2:12-16). A justiça de Deus prevalece em cada caso, e Satanás não pode acusá-Lo de injustiça.

Além da superfície

Comportamento cristão, em sua plenitude, significa mais do que é comumente reconhecido. Ao lado de amar nosso próximo como a nós mesmos, significa amar nossos inimigos. Envolve o respeito a todos os dez mandamentos, ser honestos e confiáveis nas grandes e pequenas coisas. Significa que devemos ser bons ouvintes e corteses tanto em relação às pessoas simples como aos “grandes” do mundo. Significa evitar o profano e o obsceno, bem como ter humildade para admitir falhas pessoais e a falibilidade de nossas opiniões.

Comportamento cristão, no mais profundo sentido da expressão, significa manifestar absoluta integridade sexual em pensamentos, palavras e atitudes, manter um estilo de vida simples, enquanto somos liberais em recursos que ajudem a aliviar o sofrimento humano e na disseminação do evangelho. Um correto comportamento cristão tem a habilidade de enfrentar a adversidade com uma boa medida de ânimo e contínua confiança em Deus. De fato, ninguém vive plenamente todos esses atributos cristãos, mas a menos que nosso comportamento seja diferente daquele demonstrado pelos descrentes, ser um cristão é um caminho mais altruístico de vida.

Poucos pastores realçam toda a amplitude do comportamento cristão. Alguns talvez enfatizem a bondade e a compaixão; mas se falam de sacrifício vivo, ou se condenam o sexo extraconjugal e o divórcio, colocarão alguns casais numa situação tão desconfortável que estes mudarão para uma igreja que lhes fale somente o que querem ouvir. Como resultado dessa omissão, muitos freqüentadores de igreja sentem-se muito confortáveis com um estilo de vida morno, que faz pouca diferença notável.

Algumas pessoas dirão que ninguém poderá ser bom o bastante para merecer a vida eterna. E elas estão certas. Mas ao respondermos ao Espírito de Deus, quando Ele fala (através das Escrituras, dos sermões, da influência individual, ou através da comunicação direta), nós nos tornamos objetos da eterna graça e da misericórdia de Deus. Nosso viver pode revelar um espírito de obediência e boa vontade para se deixar conduzir por Deus, que nos torna beneficiários de Sua graça. Deus não pode, entretanto, estender os benefícios dessa graça àqueles que O rejeitam ou resistem aos apelos do Seu Espírito.

Quão bom deve ser o comportamento de alguém, para que este mereça a misericórdia de Deus? Ninguém possui uma resposta para essa questão, senão Deus que conhece os corações e seus predominantes desejos de buscar o bem e o direito, ou suas tendências para dar primazia ao hedonismo, aceitação social, orgulho, egoísmo e cobiça.

Honestidade divina

Deus deseja, na verdade, assumir o controle de nossa carga genética e nosso ambiente social. Esses dois fatores determinam nosso comportamento e nossa inclinação à fé. Alguns possuem um temperamento e disposição que, desde o nascimento, os direcionam ao cultivo de uma conduta amigável, prestativa, útil e construtiva. Outros têm um espírito rebelde, manifestado desde a mais tenra idade. Alguns reconhecem seus próprios pecados específicos mais prontamente que outros. Alguns falham mais com mais freqüência, mas logo se arrependem. Só Deus pode julgar corretamente, em vista dos diversos fatores condicionantes do comportamento que existem.

Parece razoável, portanto, crer que Deus receberá em Seu reino eterno aqueles que, considerando a extensão da luz que possuem bem como as influências genéticas e ambientais com que tratam, fazem da obediência à vontade de Deus o alvo mais importante da sua vida.

Mas para aqueles que apesar disso crêem que a aceitação de Jesus e a fé nEle anulam toda a influência da obediência, das obras e do comportamento, e provêm um único critério judicial para determinar nosso destino final, a questão é: quanta e que tipo de fé deve ter um crente?

A fé vai desde a confiança simples de uma criança até o angustiado clamor de Jesus; “Deus Meu, Deus Meu, por que Me desamparaste?” Nossa preocupação não deve ser se temos fé ou não. A fé existe num processo contínuo. Ela aparece mais facilmente a pessoas com certos tipos de intelecto e temperamento que a outras. Esse é um fenômeno enigmático, mas indubitável. Mesmo entre os crentes, a fé oscila. Pode crepitar, e em seguida incendiar: pode murchar, para depois reviver. Alguém dentre nós duvida que a fé enfrenta muito menos resistência daqueles nascidos em lares cristãos do que de pessoas nascidas em lares não cristãos? Não poderá Deus levar em conta esse fato, ao julgar por outro padrão que não seja simplesmente fé em Cristo?

Devemos ser cuidadosos quanto a citar um verso ou uma coleção de versos para provar algum ponto. Um único verso ou mesmo muitos versos amontoados juntos podem ser usados para provar heresias. É essencial, então, ao interpretarmos as Escrituras, considerar todos os versos que apoiam um determinado assunto, examinar como estão relacionados entre si, e considerar o seu contexto. O exemplo e os ensinamentos de Jesus podem resolver muitas controvérsias. Seus princípios nem sempre suscitam plena concordância, mesmo entre eruditos conscienciosos e de mente aberta, mas de fato lançam luz sobre as questões e iluminam nossa compreensão.

Esse conceito é especialmente importante quando tratamos com fé e obras. Freqüentemente nos agarramos a certos versos convenientes ao nosso gosto teológico enquanto ignoramos ou descartamos versos que desafiam uma visão acariciada. Nenhum de nós está livre dessa tendência.

Paulo e Lutero

Uma observação adicional sobre o antecedente histórico poderia lançar mais luz sobre o assunto da justificação pela fé. Paulo salientou esse tema porque os judeus haviam colocado uma ênfase rígida sobre a letra da lei. E a lei que eles realçavam envolvia detalhes pertinentes a observância de rituais, tendo pouco ou nada a ver com virtudes como amor, bondade e misericórdia. Porventura alguém acredita que Paulo teria escrito como o fez, a respeito da justificação pela fé, se o pensamento teológico dos líderes de seus dias insistisse saudavelmente na importância da fé, do amor e das boas obras? Seguramente ele estava respondendo a uma trágica incompreensão da vontade de Deus para a vida humana.

Ao ressaltar a justificação pela fé da maneira como fez, Paulo estava livrando os novos crentes judeus de uma errônea compreensão teológica alimentada por séculos. Embora aparentemente pudesse estar enfatizando demasiadamente a fé, Paulo estava direcionado para o melhor caminho que levaria a uma reavaliação que ele sabia ser necessária à mentalidade judaico-cristã.

Semelhantemente, Martinho Lutero reagiu à preocupação da Igreja Católica Romana com rituais, relíquias, indulgências, purgatório, invocação aos santos e mariolatria. Se a Igreja Católica houvesse enfatizado a importância da fé, do amor, bondade, perdão, etc., teria Lutero pregado da maneira como fez? Certamente não.

A ênfase adventista sobre justificação pela fé, muito mais do que o realce dado à obediência específica, pode ser uma forte reação à ênfase legalística tradicional sobre esse aspecto, dada no passado. Uma reação moderada poderia ter sido salutar, mas uma vez mais o pêndulo oscilou exageradamente para um lado. Para muitos escritores e pastores, hoje, a obediência no melhor sentido da palavra é freqüentemente vista como uma nota de rodapé do amor, misericórdia, compaixão e perdão de Deus.

A atual tendência também parece corresponder à propensão teológica pós-moderna protestante de não enfatizar a obediência embora trate do tema do amor e da misericórdia de Deus. Os pastores parecem estar intimamente afinados com a sensibilidade dos membros freqüentadores da igreja.

Qualquer que seja a reação à linha de pensamento apresentada aqui, é inegável que os tempos e as tendências atuais da igreja e do mundo, atualmente, certamente nos chamam para uma cuidadosa reflexão e reavaliação de nossas posições nessa tão freqüentada e crucial arena da teologia e do comportamento.

REO M. CHRISTENSON, Ph.D., professor emérito da Universidade de Miami, reside em Miamisburg, Ohio, Estados Unidos