De início, é fundamental estabelecer que não pretendemos, neste artigo, apresentar a “Teoria do Conhecimento’’, muito menos defender um “Intelectualismo religioso”. Também não é nosso propósito sustentar um exagerado fideísmo. Nossa intenção é destacar como é o conhecimento na conceituação bíblico-cristã, partindo, obviamente, do pressuposto da cognoscibilidade divina.

Até por definição, o próximo esclarecimento que necessitamos fazer é que, biblicamente, a relação Sujeito – Objeto do conhecimento assume uma conotação diferente do usual, conotação religiosa, em que o senti-mento de absoluta dependência de Deus está continuamente presente. Assim sendo, quando falamos do conhecimento de Deus, não podemos dizer que Ele é o objeto de nosso conhecimento. Para o crente, Deus é sempre o sujeito em tal relação.

Escrevendo aos cristãos da Galácia, Paulo afirmou: “Mas, quando não conhecíeis a Deus, servíeis aos que por natureza não são deuses. Mas agora, conhecendo a Deus, ou antes, sendo conhecidos de Deus…” (Gál. 4:8 e 9). A idéia que percebemos nesse texto é que nosso conheci-mento de Deus existe em função da ação divina em relação a nós. E na realidade, a consciência humana, presa à cisão Sujeito – Objeto que lhe é obrigatória, não pode alcançar o Ser, o Absoluto, nem o sentido de totalidade.

Tempo e espaço

Para Carl G. Jung, “parece que foi a consciência humana a criadora e redutora do conceito de tempo e espaço. Diz ele: ‘Assim, quer parecer-nos que tempo e espaço estão em interdependência com condições psíquicas, que não possuem existência própria, mas são apenas estabelecidos pela consciência’”.1

Há cerca de seis mil anos, como resultado do pecado, a consciência humana fragmentou-se, tornando-se presa não somente à cisão Sujeito – Objeto, mas também às limitações de tempo e espaço. Vivemos uma atrofia da consciência, tanto coletiva como individual. Assim, podemos estabelecer na queda humana, o berço do desditoso princípio de causa e efeito, que se tornou o orgulho das ciências naturais.

No ambiente edênico, onde se vive a reintegração do tempo, os acontecimentos transpõem os limites do acaso, não se derivando reciprocamente, mas tornando-se dependentes de uma causa conhecida. Tal sin-cronicidade não é lógica para nós. No entanto, mesmo em meio à situação cognitiva deficiente em que vivemos, “o mais alto grau de consciência a ser alcançado é o conhecimento de Deus”.2

Assim sendo, podemos apresentar a fonte do conhecimento dentro do sistema filosófico do cristianismo.

Racionalismo

Quando em Isaías 1:18 e 43:26, Deus convida o homem a uma dialética racional; evidencia-se o reconhecimento divino da capacidade da razão chegar ao conhecimento. Filosoficamente, é o Racionalismo quem estabelece uma completa ênfase na razão, como forma de atingir-se o conhecimento.

No entanto, quando Deus, no mesmo livro de Isaías 55:8, diz: “Porque os Meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os Meus caminhos…”, está estabelecendo as limitações do conhecimento fundamentado no pensamento, na razão.

Exatamente por isso, somos advertidos por Ellen White, no sentido de que “tenhamos cuidado com as filosofias especulativas e com a exaltação da razão humana acima de seu verdadeiro valor. Ela declara que o racionalismo faz da razão um ídolo e deixa de lado a Bíblia, enquanto exalta a sabedoria humana como fonte de verdade religiosa”.3

Empirismo

Ao escrever aos romanos (Rom. 1:18 a 20), o apóstolo Paulo reconhece a capacidade das percepções sensoriais de alcançar algum conhecimento de Deus. Seria um reconhecimento do Empirismo.

Analisando a pergunta – “Deus existe?”, o filósofo existencialista Kari Jaspers diz que tal indagação não tem senti-do, levando-se em conta a realidade de que Deus é transcendente e, empiricamente, a resposta não pode ser outra senão uma negação que desconhece o que nega. Entretanto, apesar de reconhecer que o conhecimento empírico ou científico jamais descobre a transcendência, considera a mesma sensível à existência.

“É da realidade empírica, e não de outro lugar, que a existência tira, se não o conhecimento da transcendência, pelo menos os sinais que dela falam e a que Jaspers chama cifras ou escrita cifrada da transcendência.”4

Na filosofia oriental, os sentidos são vistos como algo intrinsecamente mau. No entanto, na concepção bíblica, Deus procura atingir o homem em suas percepções e através delas. Tal como o demonstra Isaías 64:4.

Revelação

Embora o cristianismo valorize tanto a razão como a percepção sensorial, estabelece o que se encontra em I Cor. 2:9 e 10: “… As coisas que o olho não viu e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam. Mas Deus no-las revelou pelo Seu Espírito;”

“A revelação consiste em receber conhecimento da verdade da parte de alguém que tem informação especial.”5

Após estabelecermos esse triunvirato de razão (podendo envolver a intuição), percepção sensorial e revelação como fonte de conhecimento para o cristão, é importante que firmemos a realidade da sabedoria distorcida.

O responsável

Os exemplos do cotidiano, como a ilusão de ótica, nos mostram que os sentidos e o raciocínio às vezes nos enganam. O filósofo racionalista francês, René Descartes, admite a existência de um engano universal, e diz que alguém deve ser o responsável por isso.

“O ser humano não pode ser responsabilizado, porque ele não fez a si mesmo. …”6 Era preciso encontrar um sujeito exterior ao homem. E ele atribui a um “gênio maligno” a responsabilidade pelo engano universal.

Na realidade, Diabolus, traduzido literalmente quer dizer “o que tudo confunde”.

Inicialmente, já estabelecemos a atrofia da consciência humana. E a Bíblia nos informa que “o mundo inteiro jaz no maligno” (I João 5:19).

Alienação

Verdadeiramente, numa abordagem psicológica, o mundo inteiro está alienado, porque lhe falta a consciência de seus reais problemas e necessidades. A maior necessidade do mundo é do verdadeiro conhecimento de Deus. Não é à toa que, através do profeta Oséias, o Senhor clama: “o Meu povo foi destruído porque lhe faltou o conhecimento.” (Oséias 4:6).

O maior problema do homem é a sua sujeição psicológica às estruturas e conjunturas mentais que constituem verdadeiras prisões do pensamento de curta, média e longa duração, as quais configuram um quadro mental, como a herança cultural, os sistemas de crença e as concepções de mundo, que são muito bem estabelecidas pela história das mentalidades.

Comentando a problemática do homem contemporâneo, o sociólogo Wright Mills afirma: “Presos aos ambientes limitados de suas vidas diárias, os homens comuns com freqüência não podem raciocinar sobre as grandes estruturas – racionais ou irracionais – de que seu ambiente é parte subordinada…

“O advento do homem alienado, e todos os temas que estão por trás desse evento, afetam agora a totalidade de nossa vida intelectual séria e provocam nosso mal-estar intelectual imediato. É um dos grandes temas da condição humana na época contemporânea, e de to-dos os estudos dignos do nome. Não conheço idéia, tema ou problema que seja tão profundo na tradição clássica – e tão envolvido na possível omissão da ciência social contemporânea… Chegará a predominar ou até mesmo a florescer, o que podemos chamar de Robô Alegre?”7

Por tudo isso, agora, mais do que nunca, a mensagem do apóstolo Paulo aos cristãos de Roma é necessária para ser vivida: “E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.” (Rom. 12:2).

Mudança de rumo

Precisamos romper com as conjunturas e estruturas mentais que aprisionam nosso pensamento, ou seja, precisamos vencer o condicionamento social de nossa consciência e moldá-la não pelos modismos ideológicos, mas pela vontade de Deus.

Não foi sem razão que quando Cristo iniciou Seu ministério, pregava: “Arrependei-vos porque é chegado o reino dos Céus.” (Mat. 4:17). E isso significava originalmente “mudem de opinião”.

Está justamente numa cosmovisão firmada, arraigada nas consciências individuais e coletivas em desacordo com o conhecimento do verdadeiro Deus, o maior grau de alienação e do engano do mundo, de origem diabólica.

No entanto, não é nossa pretensão coisificar nem radicalmente intelectualizar a relação e a comunicação com Deus. Quando uma moça detalhista vê um rapaz pela primeira vez, ela pode fixar na memória uma descrição de seu modo de vestir, seu penteado, mas quando ela namora pela primeira vez, o que guardará serão os sentimentos vividos.

“ Precisamos romper com as conjunturas e estruturas mentais que aprisionam nosso pensamento, ou seja, precisamos vencer o condicionamento social de nossa consciência e moldá-la não pelos modismos ideológicos, mas pela vontade de Deus.”

Assim, a verdadeira relação e comunicação com Deus é existencial. Uma existência que procura comunicar-se com outra. Por isso, na concepção bíblica, em alguns momentos, conhecer é manter uma relação íntima.

Mas conhecer a Deus não é só uma atividade racional e emocional. É mais que isso. Em suma, o conhecimento de Deus tem que ser experimental, como apresentado em Jeremias 31:33 e 34. E como tal, é algo que precisa ser internalizado, incorporado, que leva à ação de amor. É algo individual, pessoal, intransferível, e que ocorre no sacrário mais íntimo do ser.

E mais: “Não atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as que se vêem são temporais, e as que se não vêem são eternas.” (II Cor. 4:18). O cristão está interessado na experiência de conhecimento do Deus sobrenatural. Assim, religião não é só saber. Não é apenas sentir. Tampouco é simplesmente fazer. Religião também é transcender.

Referências:

  • 1. Helmut Wolff, O Cristo Histórico, Casa Publicadora Brasileira, Santo André, SP, 1981.
  • 2. Idem, idem.
  • 3. Conrad D. Clausen, “Racionalismo, Empirismo e Cristianismo como sistemas filosóficos para chegar à verdade”; artigo publicado em O Ministério Adventista, Maio/Junho, 1980.
  • 4. Jeanne Hersch, Kari Jaspers, Editora da Universi-dade de Brasília. Brasília, DF, 1982.
  • 5. Conrad D. Clausen. Op. Cit.
  • 6. Mário Sérgio Cortella, Descartes: a paixão pela razão, FTD, São Paulo, SP, 1988.
  • 7. Wright C. Mills, A Imaginação Sociológica, Zahar Editora, Rio de Janeiro, RJ, 1982