As mortes no Antigo Testamento aproximam os conceitos de justiça e amor

Relatos concernentes à matança de pessoas no Antigo Testamento têm sido um fator de questionamentos por parte de muitos leitores da Bíblia. Estaria Deus sendo incoerente, promovendo a mortandade e ao mesmo tempo proibindo o homem de matar (Êxo. 20:13)? São vários os termos bíblicos alusivos à matança dos povos no Antigo Testamento: ira, justiça, juízo, julgamento, vingança, desolação, destruição, dia do Senhor, entre outros.

Um aspecto geralmente relacionado a essa matança é o castigo divino. Esse castigo é apresentado na forma de pragas, enfermidades, vento, sol, chuva, crises agrícolas, fome, humilhação e morte (Êxo. 7 a 10; Núm. 16:30-35; Deut. 28:15-62; Jer. 14:1-6; Jonas 4:8). Há morte de adultos, jovens e crianças (I Sam. 15:3; II Reis 23 e 24); morte do estranho e o do próprio povo de Deus, os de fora e os de dentro. A morte atinge a casa de Faraó bem como a casa do sacerdote Eli (Êxo. 12:29; I Sam. 2:27-34; 4:11). Mortes também são observadas por operação direta de Deus, como é o caso do Dilúvio; e por instrumentalidade humana, como em algumas guerras. Os amalequitas e cananeus, por exemplo, foram meios de punição capital (Núm. 14:42-45). Através de Sansão, muitos filisteus foram mortos (Juí. 16:29 e 30).

Há matança através do fogo, água, espada e fenômenos naturais (Núm. 16:28-33; I Sam. 7:10). Grandes cidades, tais como Sodoma e Gomorra, foram destruídas, assim como grupos menores: os 450 profetas de Baal, a família de Acã, ou mesmo indivíduos, como Belsazar. O castigo podia afetar os descendentes dos culpados e outros bens (Núm. 26:22; Deut. 13:15 e 16; 32:25; I Sam. 15:3). Dessa forma, podia ter um caráter preventivo para um povo que valorizava a família (Êxo. 20:5 e 6; 34:7; Núm. 14:18; Deut. 5:9; Josué 7:24; Jer. 32:18).

Motivos para castigar

Um estudo atento da Bíblia apresenta duas classes de motivos para castigar pessoas e povos, no Antigo Testamento: um motivo geral e motivos específicos. Como motivo geral, lembramos a depravação total do ser humano (Gên. 6:5; Sal. 14:2 e 3; Rom. 1:29; Efés. 4:18 e 19).

Entre os motivos específicos podem ser enumerados alguns pecados: Feitiçaria (Êxo. 22:18; Deut. 18:11 e 12), idolatria (Núm. 25:1-9; I Reis 18:22-40), zombaria (II Reis 2:23 e 24), murmu-ração (Núm. 14:26-45; 21:5 e 6), rebelião (Núm. 16:1-33), irreverência (I Sam. 2:12-17; Núm. 16:35). Em Ezequiel 18:10-12, os motivos da matança podiam ser roubo, crime, adultério, opressão, idolatria e agiotagem. Levítico 20:9-17 contém uma classificação de atos imorais que deveriam ser punidos com morte. Acrescente-se ainda a perseguição ao povo de Deus como razão da matança. É o caso dos exércitos de Faraó destruídos no Mar Vermelho, entre outras ocorrências.

Houve, portanto, a causa remota e a próxima. A remota foi a queda inicial e geral da humanidade. A próxima foi a manifestação da queda em diversas expressões de perversidade e ofensa ao Deus santo e justo.

Base bíblica

Há dois fundamentos escriturísticos, a partir do Antigo Testamento, para esse ato estranho (Isa. 28:21) de Deus. O primeiro fundamento é a aliança de Deus com o Seu povo. Ao organizar Seu povo escolhido, a nação santa, Deus estava montando uma representação de Si mesmo na Terra, através desse povo eleito. Era a implantação do regime teocrático, no qual Ele mesmo governava diretamente.

Israel deveria representar a pessoa e o caráter de Jeová. Como o Senhor havia assegurado a Abraão que a Terra da Promessa seria possuída, qualquer obstáculo a essa conquista teria que ser removido, ainda que fosse a matança dos inimigos (Êxo. 14:27-30; Juizes 11:27, 32 e 33). Assim, o conceito de justiça se aproxima do conceito de amor. Para preservar o povo eleito, era lícito eliminar adversários rebeldes.

A destruição de Midiã e de Jericó são dois bons exemplos dessa realidade. Números 31 descreve a destruição total dos midianitas que haviam conspirado a fim de seduzir os israelitas e induzi-los à fornicação e à idolatria, no incidente em Ball-Peor (Núm. 25:1-9). O resultado foi uma praga contra os israelitas, que lhes custou 24 mil mortos, além do afastamento de Deus. A hediondez do pecado deles contra o povo eleito junto com a ameaça de sedução à apostasia sujeitaram os midianitas ao julgamento divino, de modo que se formou um exército de 12 mil guerreiros; mil de cada tribo, sob a liderança de Finéias, neto de Arão (v. 6).

O ataque foi tão bem-sucedido que, sem uma baixa sequer (v. 49), os israelitas derrotaram e mataram os cinco reis dos midianitas bem como todos os seus soldados. Balaão, que fora o instigador da apostasia em Baal-Peor, morreu nessa batalha. Todas as mulheres e as jovens que haviam sido sexualmente ativas foram sentenciadas à morte (vs. 15-18), depois de Moisés haver ordenado nesse senti-do. Somente foram poupadas as virgens, as quais foram tomadas como servas nas casas dos israelitas.

Teria sido moralmente justificada essa ação militar? Os que desejam argumentar que foi uma atitude cruel e desnecessária devem discutir com o próprio Deus que comandou a operação. Entretanto, parece que, à luz de todas as circunstâncias e do contexto da crise, a integridade da nação toda estava em perigo. Se a terrível ameaça que pesava contra a existência de Israel, como povo da aliança, houvesse sido tratada de forma menos rigorosa, é muitíssimo duvidoso que os israelitas tivessem conseguido conquistar Canaã, ou exigido a devolução da Terra Prometida como herança sagrada de Deus.

Sobre a destruição de Jericó, Josué declara: “Tudo quanto na cidade havia destruíram totalmente a fio de espada, tanto homens como mulheres, tanto meninos como velhos, também bois, ovelhas e jumentos” (Jos. 6:21).

“A destruição total do povo de Jericó não era senão um cumprimento das ordens previamente dadas por intermédio de Moisés, concernentes aos habitantes de Canaã: ‘Quando… o Senhor Deus as tiver dado diante de ti, para as ferir, totalmente as destruirás. Das cidades destas nações… nenhuma coisa que tem fôlego deixarás com vida.’ Deut. 7:2; 20:16. Para muitos estas ordens parecem ser contrárias ao espírito de amor e misericórdia estipulado em outras partes da Bíblia; mas eram na verdade os ditames da sabedoria e bondade infinitas. Deus estava para estabelecer Israel em Canaã, desenvolver entre eles uma nação e governo que fossem uma manifestação de Seu reino na Terra. Não somente deveriam ser os herdeiros da verdadeira religião, mas deveriam disseminar seus princípios por todo o mundo. Os cananeus haviam-se entregado ao mais detestável e aviltante paganismo; e era necessário que a terra fosse limpa daquilo que de maneira tão certa impediria o cumprimento dos graciosos propósitos de Deus. Aos habitantes de Canaã havia sido concedida ampla oportunidade para o arrependimento. … Semelhantes aos homens antediluvianos, os cananeus apenas viviam para blasfemar do Céu e contaminar a Terra. E tanto o amor como a justiça exigiam a imediata execução destes rebeldes a Deus, e adversários do homem.” – Patriarcas e Profetas, pág. 492.

Deus soberano

Não apenas a aliança justifica interferências drásticas. A soberania de Deus deve ser respeitada. Do princípio ao fim, a Bíblia está marcada por pronunciamentos e ações do soberano Deus, a quem não temos razões para replicar (Rom. 9:20). “Nos Céus, estabeleceu o Senhor o Seu trono, e o Seu reino domina sobre tudo” (Sal. 103:19).

Como o Altíssimo, Deus “tem domínio sobre o reino dos homens; e o dá a quem quer “(Dan. 4:17, 25, 34; 5:21; 7:14). Davi, rei de Israel, reconhece: “Teu, Senhor, é o poder, a grandeza, a honra, a vitória e a majestade; porque Teu é tudo quanto há nos Céus e na Terra” (I Crôn. 29:11). Deus é o “único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores” (I Tim. 6:15; Apoc. 19:16). A soberania de Deus, portanto, expressa a Sua própria natureza: onipotente, todo-poderoso, apto para cumprir Seus propósitos, Sua vontade, e guardar Suas promessas.

Os registros de morte relatados no Antigo Testamento não anulam as inconfundíveis provas do amor de Deus. NEle, não existe contradição. O Deus que castiga é o mesmo que ama (Deut. 7:7 e 8; 23:5; I Reis 10:9; Osé. 6:1). O caráter divino mantém Sua unidade na diversidade de Seus atributos.

Érico Tadeu Xavier, Pastor da igreja central de Joinville, Santa Catarina, Brasil