A idéia corrente de que há uma demora com respeito à volta de Jesus é teologicamente ligada a dois outros conceitos muito importantes: a natureza de Cristo e a perfeição cristã.

A polêmica a respeito do fato de Cristo, durante Seu ministério terrestre, ter ou não tido vantagens sobre o homem comum no que tange às tentações que teve que resistir, é historicamente antiga e se insere numa discussão ainda mais ampla, a chamada controvérsia cenótica: Absteve-Se Cristo de usar Seus atributos divinos inteiramente, ou apenas usou-os veladamente? Esse debate surgiu do confronto de duas universidades luteranas (Giessen e Tübingen) acerca do vocábulo grego kénosis cuja forma verbal aparece em Fil. 2:7 e 8: “antes a Si mesmo Se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a Si mesmo Se humilhou, tomando-Se obediente até à mor-te, e morte de cruz.” No entanto, para os luteranos, a controvérsia terminou subitamente por causa da Guerra dos Trinta Anos, sem nenhum resultado definitivo.

A controvérsia cenótica desemboca, mais especificamente, na polêmica lapsariana (do termo latino lapsus = pecado), a qual envolve as seguintes questões: Cristo, ao encarnar, assumiu a natureza que Adão possuía antes do pecado (teoria pré-lapsariana), a que passou a ter após o pecado (teoria pós-lapsariana), ou ambas (teoria ambilapsariana)? Esta última parece ser a mais coerente com as declarações de Ellen White, que ora dá a entender que Jesus assumiu a natureza de Adão com perfeita isenção de pecado, ora afirma que Ele assumiu a natureza pecaminosa do homem.

Algumas de suas declarações nesse senti-do são: “Não devemos ter dúvida acerca da perfeita ausência de pecado na natureza humana de Cristo.”

“Assumiu [Cristo] Sua posição como cabeça da humanidade por tomar a natureza, não a pecaminosidade do homem.”

“Tomou [Cristo] sobre Si nossa natureza pecaminosa.”

“Tomando sobre Si a natureza humana em seu estado decaído.”

Mas, se as declarações de Ellen White têm ares de ambilapsarianismo, como corolário disso, surgem algumas outras importantes questões teológicas: Poderia Cristo ter pecado? Tinha Ele propensão para o pecado?

Possibilidade de pecar

Surpreendentemente, a Bíblia não dá uma resposta explícita à indagação se Jesus poderia ou não ter cedido ao pecado. Mas ela deixa claro que Ele foi severamente tentado, e, portanto, parece subentender uma resposta afirmativa. Entre os defensores históricos da impossibilidade que Cristo tinha de pecar encontrava-se a figura W. J. Waggoner, famoso por sua participação na Assembléia da Associação Geral de 1888, em Mineápolis, declarando que Jesus não podia pecar. Louis Berkhof, eminente teólogo protestante, afirmou ser difícil “imaginar as tentações dAquele que não podia pecar”.

Ellen White, por sua vez, também se pronunciou:

“As tentações às quais Cristo esteve sujeito foram uma terrível realidade. Como um agente livre, Ele foi posto à prova, com liberdade para ceder às tentações de Satanás e agir contrariamente aos propósitos de Deus. Se não fora assim, se não tivesse sido possível que Ele caísse, então Ele não podia ter sido tentado em todos os pontos em que a família humana é tentada.”

“Permitiu Deus que viesse Seu Filho, impotente criancinha, sujeito à fraqueza da humanidade. Permitiu que enfrentasse os perigos da vida em comum com toda a alma humana, combatesse o combate como qualquer filho da humanidade o tem de fazer, com risco de fracasso e ruína eterna.”

Ellen White nada mais faz do que reconhecer a realidade da tentação de Cristo, conforme as Escrituras a declaram: “Ele foi tentado em todas as coisas à nossa semelhança, mas sem pecado” (Heb. 4:15). A expressão grega katá panta, que aparece aqui com o sentido de “em todas as coisas”, enfatiza a intensidade de Suas tentações.

A Bíblia não declara que as tentações de Jesus foram exatamente as mesmas que o homem comum enfrenta. Ele foi tentado “à nossa semelhança”, isto é, Cristo foi tentado naquilo que constituía uma tentação para Ele: abortar ou alterar Sua missão, agir de forma autônoma ou independente de Deus, fazer uso de Sua divindade para Seu próprio benefício. Roy Adams, editor associado da Adventist Review, declara que “qualquer um de nós que pense, por um momento sequer, que nossas tentações possam se comparar em intensidade, às de Jesus, está sendo patentemente ridículo.”

A intensidade das tentações de Cristo foi infinitamente superior à intensidade de nossas próprias tentações. “Foi tão difícil para Ele descer ao nível dos homens quanto o seria para o homem elevar-se ao nível da divindade, deixando para trás sua natureza depravada.”

“Cristo foi tentado de forma cem vezes mais severa do que Adão o foi, e sob circunstâncias ainda mais probantes.”

“As refinadas sensibilidades de Sua natureza santa faziam com que o contato com o mal fosse indescritivelmente doloroso para Ele.”

E nós ainda ficamos preocupados se Cristo teve vantagem sobre nós, ao tomar-Se homem. Mil vezes não! De fato, Ele teve inúmeras desvantagens.

Propensão para o pecado

O segundo questionamento que advém da polêmica lapsariana é aquele que diz respeito a se Cristo tinha propensão para o pecado ou não. Isso pode ficar mais claro se a pergunta puder ser reformulada nos seguintes termos: Cristo sentiu vontade de pecar?

Há aqueles que advogam o pensamento de que para ser nosso exemplo, em todos os sentidos, era necessário que Jesus vencesse o pecado nas mesmas condições em que somos chamados a fazê-lo. Mas isso não pode ser verdadeiro porque uma compreensão teológica do assunto indica que Cristo resistiu a tentações muito maiores do que aquelas às quais jamais fomos chamados a resistir.

Martin Weber declara que a diferença básica entre as tentações de Cristo e as dos demais homens é precisamente uma diferença de graus:

“Cristo foi tentado a suprimir a Sua natureza humana adquirida e liberar Sua divindade natural. Nós somos tentados a suprimir nossa natureza espiritual adquirida e liberar nossa pecaminosa natureza humana.”

Recorrendo a Ellen White, não podemos ter dúvidas a respeito de como ela encarava a questão: “Ele é um irmão em nossas enfermidades, mas não no possuir semelhantes paixões. Como Aquele que é sem pecado, Sua natureza repugnava o pecado.”

“Seja cuidadoso, extremamente cuidadoso a respeito de como lidar com a natureza humana de Cristo. Não o apresente ao povo como sendo um homem com propensões para o pecado … Ele podia ter caído, mas em nenhum momento houve nEle qualquer propensão para o mal. Ele foi assaltado pe-las tentações no deserto da mesma forma que Adão o foi no Eden.”

“Foi Cristo o único Ser livre de pecado, que já existiu na Terra.”

Se Ellen White parece tão clara a respeito deste assunto, por que existe tanta polêmica na Igreja relacionada com ele? Há uma razão histórica e teológica para isso.

Perfeccionismo

Provavelmente, a primeira vez em que houve um confronto na Igreja a respeito da natureza de Cristo deve ter sido por ocasião do pronunciamento de A. T. Jones, na Assembléia da Associação Geral de 1895:

“A natureza de Cristo é precisamente a nossa natureza. Em Sua natureza humana não há sequer uma partícula de diferença entre Ele e vocês.”

Jones foi confrontado pelos delegados com a declaração de Ellen White, citada anteriormente neste artigo, segundo a qual “Como Aquele que é sem pecado, Sua natureza repugnava o pecado”. No entanto, em vez de admitir publicamente seu equívoco, buscou uma evasiva: “Ele foi feito em semelhança de carne pecaminosa; não em semelhança de mente pecaminosa. Não arrastemos Sua mente a isso. Sua carne era nossa carne; mas a mente era a mente de Cristo Jesus.”

Por causa dessa diferença de opinião, alguns irmãos dissidentes insistem até hoje que a principal razão para a apostasia de Waggoner e Jones, os dois baluartes da mensagem da justificação pela fé, teria sido exatamente uma “rejeição” por parte da Igreja, de sua visão acerca da natureza pós-lapsariana de Cristo.

A razão para uma insistência no fato de que Jesus tenha recebido a natureza pecaminosa de Adão após o pecado, mesmo contrariando as declarações de Ellen White, é simples: eles querem estabelecer o ponto fundamental de que o que Cristo fez nós também podemos fazer.

“É impossível ter a fé neotestamentária em Cristo e continuar pecando. Não pode-mos nos desculpar alegando que somos apenas humanos … Ele [Cristo] não pode ministrar para sempre o Seu sangue, em substituição, para cobrir o pecado perpétuo de Seu povo. Ele deve ter um povo que vença como Ele venceu, um povo que condene o pecado na carne, dizem Robert Wieland e Donald Short.”

Uma defesa do perfeccionismo jaz no cerne dessa disputa. O desejo de que a Igreja atinja a perfeição das obras é o motor de uma insistência quanto ao ponto de que Cristo tenha tido propensões para o pecado.

Um outro baluarte da teologia adventista, que caiu vítima desse engano, foi M. L. Andreasen, autor de O Ritual do Santuário. Ele acreditava que o grupo vivo por ocasião do retomo de Jesus terá alcançado absoluta perfeição ou santidade. Antes que a volta de Je-sus possa ocorrer, os 144 mil terão eliminado e destruído o pecado, o que ele considerava como sendo parte da purificação do santuário. Diz Andreasen: “Enquanto caminhamos pela senda da santificação, enfrentando um problema de cada vez, nós progredimos em santificação e nos aproximamos da santidade. Desde o momento em que começamos, Deus nos está imputando justiça. Não estamos ainda perfeitos, mas estamos na direção certa, e se morrermos antes de alcançar o alvo, Deus julgará nossos motivos e dar-nos-á crédito pelo que teríamos feito cáso tivéssemos tido a oportunidade.”

Essa declaração é notadamente legalista. Andreasen ensinava que a volta de Jesus só poderia ocorrer quando Ele não mais fosse detido no santuário celestial pela obra de interceder em favor de pecadores. Quando Seu povo, na Terra, tivesse alcançado a perfeição, então Ele poderia abandonar o Seu ofício e vir ao encontro deles. Mas, para que pudesse estabelecer esse tipo de teologia, era necessário que ele a fundamentasse com o ensinamento de que Cristo tinha propensões para o pecado.

“Que Deus tenha isentado a Cristo das paixões que corrompem o homem é o acme de toda a heresia. É a destruição de toda religião verdadeira e anula completamente o plano da redenção. Faz de Deus um enganador e de Cristo o Seu cúmplice”, dizia Andreasen.

Por causa de toda a amargura e ressentimento que restaram dos confrontos de Andreasen com outros teólogos adventistas (especialmente com L. Roy Froom, W. E. Read, T. E. Unruh e Roy A. Anderson), ele passou a assumir uma atitude contrária à Igreja, que acabou culminando com a suspensão de suas credenciais, em 1958.

Três dificuldades

O tipo de teologia até aqui discutido gera três problemas. Primeiramente, há uma necessidade cada vez menor de um Redentor. Se, algum dia antes da segunda vinda de Cristo, um grupo de homens viverá na Terra, sem a necessidade de Sua intercessão, por que ela seria necessária hoje? Não poderiamos ser vitoriosos sobre o pecado por nossas próprias forças?

Em segundo lugar, a defesa de um perfeccionismo absoluto geralmente descamba para o legalismo. Além disso, todos aqueles que possuem tendências perfeccionistas sabem o quão frustrante é a experiência de lutar no sentido de se tomarem absolutamente perfeitos durante todo o tempo.

Finalmente, a própria idéia da demora da segunda vinda de Cristo é uma resultante da concepção de que nós precisamos fazer alguma coisa para que Ele possa vir, quando o correto seria que nós simplesmente deixássemos o Mestre Jesus realizar Sua obra em nós, porque compete ao beneplácito divino definir tempos e estações.

Não são as nossas vitórias espirituais que nos salvam, nem os nossos fracassos espirituais que nos desqualificam. Todos nós nos perdemos há cerca de seis mil anos, no Eden, mas fomos salvos há dois mil anos, no Calvário. A questão hoje não deveria ser “posso ser salvo?”, mas “quero ser salvo, aceitando a vitória que Cristo já conquistou por mim”.