JOHN GRAZ

As atrocidades cometidas contra os judeus, durante a Segunda Guerra Mundial, produziram uma profunda ferida nesse povo, assim como nos cristãos, em virtude da participação destes no massacre. Portadores de uma missão evangelizadora de todos os povos, nações e línguas, os cristãos encontraram-se diante de um dilema, depois do holocausto nazista: como alcançar o povo judeu com a mensagem de Cristo Jesus? Para a Igreja Adventista do Sétimo Dia, com sua missão escatológica, encontrar a resposta para essa pergunta é indispensável.

Nesta entrevista, concedida ao Dr. John Graz, o Dr. Jacques Doukhan expõe princípios fundamentais para o relacionamento dos cristãos com os judeus. O Dr. Jacques é diretor do Instituto de Estudos Judaico-Cristãos do Seminário Teológico da Universidade Andrews, Estados Unidos. Por sua vez o Dr. John Graz lidera o Departamento de Deveres Cívicos e Liberdade Religiosa da Associação Geral da Igreja Adventista.

A seguir, os principais trechos da entrevista, extraída da revista Ministry.

Ministério: O senhor tem dedicado sua vida a uma melhor compreensão entre judeus e cristãos. Essa não é uma missão impossível?

Dr. Jacques Doukhan: Eu sinto uma particular responsabilidade pelo relacionamento entre judeus e cristãos. Se é uma missão impossível, eu não sei. Certamente é um desafio, por muitas razões. Há uma dolorosa e vergonhosa história entre eles; há muitíssimo preconceito e não menos ignorância; e, pior, existe muita indiferença de ambos os lados. O fato que eu tenha dedicado minha vida a essa tarefa, no entanto, implica a minha crença de que o esforço é válido. Sempre existe a esperança de que não seja uma missão impossível. É também minha profunda convicção que, de certa forma, a natureza e o destino tanto do judaísmo como do cristianismo dependem da qualidade do seu relacionamento. Através desse relacionamento, judeus e cristãos podem não apenas aprender a amar e respeitar-se mutuamente, mas também descobrir um no outro alguma coisa importante a respeito de sua própria identidade. Isso não é importante somente por razões históricas e psicológicas, mas para a questão mais vital da salvação. Suponho que a principal razão para devotar minha vida a esse relacionamento não é simplesmente teológica ou acadêmica. É um assunto existencial. Trago na carne as tensões judaico-cristãs.

Ministério: O senhor cresceu numa família judia, mas junto com seu pai aceitou a Cristo como o Messias. Isso significa que, pessoalmente, experimentou as tensões entre duas fortes identidades. É possível ser judeu e cristão?

Dr. Jacques: Meu pai ia se tornar um rabi, quando algumas circunstâncias dramáticas nos confrontaram com a possibilidade de ser Jesus o Messias judeu. Para ele e também para mim, essa descoberta foi traumática. Um choque para toda nossa família e para a comunidade judaica de nossa pequena cidade no interior da Argélia. Minha mãe nunca aceitou. Ela era forte opositora e lutou duramente contra a idéia. Muitos membros da família intervieram. Amigos e rabis vieram conversar conosco. Não era uma escolha fácil. A luta de meu pai foi intensa, porque ele permaneceu fiel à sua identidade judaica, assistindo à sinagoga e observando os festivais judaicos. Ele sempre considerou-se um judeu. Nesse contexto eu fui exposto à mensagem cristã. Foi através de meu pai e com ele, através de suas questões e seu sofrimento, que eu descobri a figura de Cristo, o Messias. Como meu pai, nunca rejeitei minhas raízes. Mergulhei na tradição judaica, e meu pai me imprimia os valores judaicos tais como o intenso estudo das Escrituras, a importância da ética, a reverência ao sábado, a afirmação da vida, etc. Conhecia o hebraico; mais tarde aprofundei-me na linguagem rabínica e na literatura hebraica na Universidade de Estrasburgo, onde obtive um doutorado. E ainda assistia ao yeshiva por muitos anos. Queria aprender o máximo que pudesse para assegurar-me de que a escolha era correta. No curso dessa jornada, não apenas aprendi de meu pai, como também compreendi a luta apaixonada de minha mãe. Voltando à sua questão, primeiramente sou tentado a responder sim. Lembre-se de que os primeiros cristãos foram judeus, e para eles as duas identidades não foram mutuamente excludentes. Eles não rejeitaram suas raízes. Olhando por esse prisma, sim; é possível ser judeu e cristão. Mas não é fácil. É difícil, e de certo modo intolerável, reconhecer e abraçar valores e verdades de um povo, que também foi seu opressor.

Ministério: Suponho que quando um judeu ouve o nome Jesus não pensa em Sua pessoa, mas no que os cristãos fizeram. Há alguma esperança de reconciliação. depois de Auschwitz?

Dr. Jacques: Você tocou justamente na corda mais sensível. Como certa vez disse o presidente norte-americano Bill Clinton, “é difícil dissociar a mensagem do mensageiro”. Devido à dolorosa história que você lembrou, o nome de Jesus tem sido associado na consciência do judeu com massacre, discriminação e rejeição durante dois mil anos, o sistemático “ensino do desprezo”, tudo culminando com Auschwitz. Muitos cristãos ainda não compreendem a natureza dessa conexão; e, conscienciosamente ou não, nutrem sua mente com o antigo veneno, ensinando e pregando contra os judeus que são responsabilizados pelo mais horrível crime da humanidade: o assassinato de Deus. Ao lado disso há o conceito teológico que nega aos judeus e a Israel o direito de ser Israel, dizendo que o verdadeiro Israel é um outro povo, uma teoria tida como um holocausto espiritual. Além de outras idéias como o mito da conspiração judaica, a associação do judeu com fraude e ganho fácil, etc. Enquanto os cristãos não compreenderem e não reconhecerem sua responsabilidade em Auschwtiz; enquanto eles alimentarem preconceitos e idéias anti-semíticas, é difícil a reconciliação. Com Auschwtiz, o problema judeu-cristão chegou a um ponto sem retorno. Depois de Auschwtiz a esperança de reconciliação está associada a uma genuína conversão da parte dos cristãos. Enquanto eles não levarem a sério o seu pecado de anti-semitismo, arrependerem-se e reconhecerem as raízes judaicas que possuem, não há esperança de reconciliação. Como resultado, podemos até dizer que não há esperança para qualquer tipo de reconciliação, e isso significa especialmente a reconciliação dos cristãos com o Deus de Israel.

Ministério: Num de seus livros, o senhor explica quão difícil é para um judeu que aceita a Cristo ser aceito por outros judeus. E quanto aos cristãos? É fácil para um judeu tornar-se membro da comunidade cristã? Como se sente entre nós?

Dr. Jacques: É verdade que nos últimos anos alguns judeus que se identificam como cristãos tiveram sua cidadania israelita recusada. Esse nem sempre foi o caso, e alguns experts políticos acham que essa lei pode ser mudada no futuro. Devo também acrescentar que de acordo com a lei judaica (Halakhah). um judeu sempre permanece judeu independente do que ele faça, mesmo que se torne um cristão. Ironicamente, o nazismo demonstrou a verdade desse pensamento. O anti-semita Drumont costumava dizer que “quando um judeu torna-se cristão, ganhamos mais um cristão, mas não temos um judeu a menos”. No que me diz respeito, apesar da sua desaprovação, minha família e meus amigos judeus nunca me rejeitaram como judeu. Eles me consideram um marginalzinho, mas me respeitam mesmo quando ficam aborrecidos comigo. Quanto à minha integração na sociedade cristã, isso é mais complexo. Nunca encobri minha identidade judaica; aliás, tenho-a confirmado em minhas palestras, meus escritos e em conversas privadas. E isso é claramente reconhecido em minha vida profissional. Leciono estudos hebraicos e judaicos. Estou envolvido num diálogo judaico-cristão e sou membro da Sociedade de Estudos Judaicos, diretor do recém-criado Instituto de Estudos Judaico-Cristãos da Universidade Andrews, e editor de dois jornais sobre o assunto (Shabbat Shalom e L’Olivier). Tudo isso diz muito sobre minha identidade judaica. Todavia, o fato de que você tenha feito a pergunta nesses termos sugere que de alguma forma eu permaneci um estranho. Assim, minha resposta deve ser ambivalente. Sim, eu me sinto bem aceito. Sinto que sou um de vocês. Mas sendo um judeu numa sociedade cristã, sou constantemente lembrado do problema judeu-cristão; piadas “inocentes”, declarações teologicamente generalizadas, sorrisos sugestivos, e também algumas experiências desagradáveis sempre tocam na mesma ferida. Mas eu tenho muitos bons amigos, e você é um deles, com os quais eu me sinto à vontade sendo eu mesmo, e com os quais essa questão torna-se irrelevante.

Ministério: As palestras que o senhor faz ao redor do mundo têm muito sucesso. Cerca de 80% dos assistentes são judeus. Como explica isso?

Dr. Jacques: Tenho falado em muitas cidades da França, Suíça, Canadá e, mais recentemente. Austrália. Fico maravilhado com o grande interesse demonstrado por muitos judeus e cristãos nos assuntos em debate. Sempre é difícil explicar o sucesso, especialmente se estamos envolvidos. No entanto, penso (falando em termos humanos) que a resposta de muitos judeus talvez seja devida aos meus antecedentes pessoais e acadêmicos, meus estudos feitos em Jerusalém, meus escritos. O povo está intrigado. Também é verdade que minhas apresentações como um professor universitário têm uma imagem mais neutra e, portanto, insuspeita. Além disso. penso que muitos judeus assistem às minhas conferências precisamente por causa dos tópicos escolhidos e porque estou discutindo assuntos que eles têm em mente. Não estou falando apenas a judeus, mas também a cristãos. Devido à inter-relação dos temas, cheguei à conclusão de que o modo mais efetivo para comunicar com um grupo é relacioná-lo com o outro. Minhas palestras revolvem as tensões judaico-cristãs, e eu confronto as duas partes. Falando aos judeus, eu poderia acabar sendo ofensivo e suspeito. Mas essa não é uma estratégia sábia para atraí-los. Então apresento minhas descobertas e minha mensagem com honestidade e sinceridade, mas também com paixão e profunda convicção. Faço isso de tal maneira que novas perspectivas e percepções são sugeridas. Embora eu permaneça respeitoso às várias sensibilidades culturais e religiosas, abordo questões polêmicas como o Torah, o sábado, o Messias, a condição do homem na morte, sem deixar de lado as questões humanas como o anti-semitismo, o holocausto, Israel, e o diálogo interconfessional. Lembro-me de uma estudante de doutorado em teologia, católica romana, que me procurou em estado de choque, após uma das conferências. Jamais ouvira o que eu falara, e queria saber mais. Há também o caso de um jovem israelita que ficou perplexo com minhas explicações e solicitou literatura para exame posterior. Certa vez tive que falar longamente com uma senhora polonesa judia, sobrevivente do holocausto. Ela desmanchava-se em lágrimas. Outra senhora presbiteriana se disse surpresa e muito desapontada de que a conferência não tivesse sido divulgada por associações judaico-cristãs.

Ministério: Como a comunidade judaica reage às suas conferências?

Dr. Jacques: Devo dizer que a aceitação é ambivalente. Primeiramente, eles ficam desconfiados. Alguns até indignados. Mas depois da primeira palestra e de conversação privada, tornam-se mais atenciosos e interessados. Em Marselha, fui convidado para falar numa rádio judaica. Não somente fui entrevistado, mas tive o meu livro divulgado e algumas palestras transmitidas ao vivo. Um rabino adquiriu muitas gravações sobre “Sábado e esperança”. Em Melbourne, fui entrevistado numa emissora israelita e pude falar em hebraico sobre as conferências. A entrevista foi transmitida para muitos lugares onde vivem os judeus.

Ministério: Muitas organizações cristãs estão tentando converter judeus, suscitando fortes reações contrárias. É possível partilhar a esperança cristã sem ferir sensibilidades?

Dr. Jacques: Hoje, depois do holocausto e de muitos esforços para eliminar os judeus do cenário da História, qualquer tentativa de convertê-los suscitará reações fortes. Os cristãos que desejam partilhar com os judeus a esperança de Jesus devem, portanto, perguntar-se primeiramente sobre seus reais motivos. Por que desejam converter os judeus? Querem transformá-los à sua imagem e assim apagar sua identidade? É possível os cristãos partilharem sua esperança com os judeus, desde que isso não represente uma ameaça à identidade judaica. A riqueza e a beleza da herança judaica devem ser respeitadas. Outra questão envolvida é o conteúdo da esperança sobre a qual estamos falando. Estamos oferecendo aos judeus algo que vai enriquecê-los ou empobrecê-los? Necessitam realmente do que estou querendo partilhar com eles? Sei que isso pode chocar alguns cristãos que dificilmente vêm quaisquer outros valores e verdades fora do seu círculo e dos seus hábitos de pensamento. Mas essa é uma questão importante, pois ela é uma forma de testar se temos ou não a maneira correta de aproximação. Através dela, o cristão é compelido a situar-se, a testar suas convicções, a assegurar-se de que sua fé cristã não é uma simples aparência de cultura; que é, de fato, uma rica, vital e profunda experiência que tem uma qualidade universal. Em outras palavras, a conversão do cristão é um pré-requisito para a conversão do judeu.

Ministério: Devemos nos tornar judeus pára ser aceitos por eles?

Dr. Jacques: Não, não penso isso. Na verdade, o apóstolo Paulo sugeriu esta aproximação: grego com grego, judeu com judeu. Mas isso não implica mudança da nossa identidade a fim de poder alcançar os judeus. Um homem não necessita mudar de sexo para ganhar uma mulher para Cristo e vice-versa. Os gregos sabiam que Paulo era judeu. Ele não podia esconder isso. Mas pelo menos ele podia tentar falar a linguagem dos gregos, compreender sua cultura e começar onde eles estavam, mesmo que isso significasse fazer uma referência a um deus pagão, como foi o caso em Atenas. Ele não podia mascarar-se de um fidalgo grego. Permanecia judeu e discursava ao povo, levando em consideração sua cultura e seu contexto social.

Ministério: O senhor está se referindo ao princípio missiológico de Contextualização?

Dr. Jacques: Sim. Mas há sempre uma confusão quando ele vem à baila. Você não pode ser naturalmente o que você não é. Do contrário, será uma comédia, e nem sempre bem feita. Aí a mensagem não é comunicada; se o for, será recebida como uma fraude. Não será levada a sério. Tenho observado em tais casos que o jogo é desmascarado muito rapidamente, e o resultado é catastrófico. No que tange aos judeus, você pode estar seguro de que eles facilmente detectam a falsidade. E ficam ofendidos e tristes com você, ou escarnecem de você. Isso nada tem a ver com o princípio de Contextualização compreendido pelo apóstolo Paulo, para não mencionar o problema ético. Você não pode testemunhar da verdade enquanto não é verdadeiro. É o senso comum. Seja você e não tente duplicar-se mecanicamente. Respeite as diferenças, deixe os judeus permanecerem como tais. Então, a verdadeira comunicação acontecerá, e você e eles serão capazes de ouvir um ao outro e receber um do outro.

Ministério: O que pode ser feito para melhorar a conexão entre judeus e cristãos?

Dr. Jacques: Há muito a ser feito. E isso, na verdade, preocupa os dois grupos. É por isso que temos o jornal Shabbat Shalom, cujo título já sugere a filosofia e o programa nele contidos. Queremos promover uma melhor compreensão entre nós e os judeus. Nosso objetivo é a reconciliação, o shalom, a paz, que tem raízes no ideal comum do shabbat. Judeus e adventistas do sétimo dia ainda não estão bem cientes dos pontos comuns que mutuamente possuem. Ao lado da observância do sábado, existem a visão global da vida, os princípios de saúde, a importância das Escrituras, etc. Judeus e adventistas do sétimo dia necessitam se conhecer mais. Por isso nosso jornal faz entrevistas e matérias com personalidades dos dois lados. Além disso trata de vários assuntos como sofrimento, sábado, lei, esperança, etc., sempre a partir de uma perspectiva judaico-cristã.

Ministério: Poderia sugerir algumas idéias para ajudar nesse trabalho?

Dr. Jacques: Tenho pelo menos sete idéias: 1) Trabalhe seriamente com seu corpo, alma e boca para purificar-se de qualquer tipo de preconceito anti-semítico. Torne-se amigo do judeu. 2) Crie oportunidades para interação. Promova eventos culturais de interesse judaico-cristão, em ocasiões especiais. Assista, sempre que possível, a eventos organizados pela comunidade judaica. Participe de alguma associação que congregue os dois grupos. 3) Introduza na liturgia cantos e leituras de inspiração judaica. Isso freqüentemente aumentará sua compreensão e a comunicação de sua veracidade. Convide os judeus para o culto. 4) Evite usar quadros com a figura de Cristo ou da cruz. Esses sinais às vezes são tidos como idolatria. No que tange à cruz, é sempre associada à dolorosa opressão, na mente judaica. Lembre-se de que a cruz remete à crucifixão que inspirou as Cruzadas e o Pogrome (movimento popular de violência contra os judeus). Ao lado disso, o gosto tradicional dos cristãos por cruzes pode sugerir uma preocupação mórbida com a morte que fere a sensibilidade natural dos judeus, afirmativa do valor da vida. 5) Organize exposições em sua comunidade para criar uma conscientização positiva em favor dos judeus. 6) Promova literatura informativa sobre a comunidade judaica. 7) Providencie para que livros, revistas, jornais, fitas de vídeo, etc., sobre os judeus, estejam disponíveis às pessoas.

Ministério: O senhor acha que algum dia um bom judeu conseguirá usar o nome de Jesus. desprovido de sentimentos de mágoa?

Dr. Jacques: Definitivamente sim. E eu acredito que esse dia está próximo. Eu mesmo sou um exemplo, entre muitos outros. Paradoxalmente, depois do holocausto e da criação do Estado de Israel, mais e mais judeus estão sendo capazes de separar a pessoa de Cristo do testemunho ofensivo de boa parte dos cristãos. É interessante que muito mais tem sido escrito sobre Jesus, em hebraico, nos últimos trinta anos do que nos dezoito séculos anteriores. Ao mesmo tempo que os cristãos começam a reconsiderar suas raízes judaicas e aprender a amar a lei do Deus de Israel, muitos judeus começam também a compreender que Jesus pertence à sua herança e como tal merece sua atenção. Sim, eu acredito que há fortes razões para crer que nossa tarefa não é, definitivamente, uma missão impossível.