O debate entre religião e ciência é tão velho quanto elas mesmas. A religião, pretendendo possuir uma revelação especial de Deus, tem às vezes se elevado a alturas vertiginosas e, às vezes, se opõe à ciência na busca da verdade e na compreensão dos mistérios da vida.

A ciência, pretendendo ser humilde, tratando apenas do que pode ser percebido pelos sentidos, tem às vezes se tornado arrogante, negando qualquer papel ou mesmo valor para a fé religiosa na vida humana.

E a batalha vai sendo travada. Mas, ao nos aproximarmos da aurora de um novo milênio, existe possibilidade de que a matéria da fé e a fé na matéria possam manter algum diálogo? Quais são os alvos do cristianismo e os da ciência? Podemos conceber alvos comuns para as duas correntes de pensamento? Onde se encontra a resposta final às indagações humanas?

O tema do cristianismo

A fé cristã é ancorada em Deus, tal como revelado na Bíblia. E as Escrituras revelam a Deus como Aquele que criou seres humanos (Gên. 1:26 e 27; 2:18, 21-23); que os instruiu sobre como viver (Êxo. 20:1-17; Miq. 6:8; Mat. 22:36-40); que os salva do dilema do pecado (Eze. 36:26 e 27; Rom. 7:24 e 25; Efé. 5:25-27); e que promete dar-lhes um futuro de realização e felicidade eternas (João 14; 1-3: Apoc. 21, 22).

Embora a Bíblia tenha sido escrita por seres humanos, ela apresenta a Deus como seu autor (II Tim. 3:16 e 17). Esse Deus nos convida a conhecê-Lo (João 17:3). Entrar nessa relação especial que promove o desenvolvimento de nosso potencial é o objetivo principal da Palavra escrita.

João explora esse tema, ligando-o com dois outros aspectos de nossa relação com Ele (I João 2:13 e 14). Primeiro, conhecer a Deus como Aquele “que é desde o princípio” – o Criador. Segundo, relacionar-se com Deus como aqueles que “venceram o mundo”, ou seja, vitória fundamentada na revelação de Deus mediante Seu Filho Jesus Cristo (I João 5:4 e 5). Assim, a Bíblia nos convida a ter fé em Deus como Criador e Redentor, a espécie de fé sem a qual é impossível agradá-Lo (Heb. 11:6).

O tema da ciência

A ciência tenta, primeiro, satisfazer a curiosidade humana. Deus nos criou com um desejo inato de inquirir e conhecer. Considere a astronomia, por exemplo, que procura responder a questões que homens e mulheres têm feito desde que começaram a contemplar o céu. Mas, além de satisfazer nossa curiosidade natural, a ciência também deseja sujeitar a natureza para o benefício do homem – um argumento forte para custear a pesquisa científica.

Quando Deus ordenou que Adão e Eva “dominassem” Sua criação (Gên. 1:26), foi com o propósito claro de que assumiríam responsabilidades pelo bem-estar do ambiente atmosférico, mineral, vegetal e animal. Com efeito, Deus os colocou no Jardim do Éden “para o cultivar e o guardar” (Gên. 2:15). Assim, desde o início deveria haver uma interação benéfica e responsável entre os seres humanos e a natureza.

Natureza e fé

Se o cristianismo enfatiza a necessidade de crer, e se a ciência afirma a necessidade de compreender o mundo ao nosso redor, haveria um elo entre a fé e a natureza? Creio que há, e para descobri-lo, devemos procurá-lo na revelação de Deus na Palavra escrita e na natureza – Seus dois livros. Quando Davi afirmou: “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras de Suas mãos” (Sal. 19:1), ele não estava apenas dando expressão à poesia que brotava de seu coração musical. Estava também expressando um conceito fundamental da cosmovisão bíblica. Não é possível contemplar as maravilhas da natureza sem afirmar fé em Deus. Sendo que a glória de Deus é o Seu caráter,1 podemos compreender essa passagem como dizendo: “A natureza declara o caráter de Deus.”

Entretanto, há um problema em potencial. Para Adão e Eva pode ter sido relativamente fácil compreender Deus ao andarem pelo perfeito Jardim do Éden, mas para seus filhos deve ter sido muito mais difícil ter a mesma concepção clara, crescendo no meio de “espinhos e abrolhos”, dor e lágrimas. A natureza foi tão desfigurada pela intrusão do pecado que o reflexo de Seu caráter não pode ser discernido nela tão claramente como antes da entrada no mal. Isso imediatamente levanta a questão: afetou o pecado somente a Terra, a habitação do homem, ou também nosso ambiente espacial?

Antes de o espaço tornar-se objeto de indagação científica, os cristãos geralmente criam que os seres humanos nunca poderiam viajar pelo espaço e contaminar o ambiente mais amplo com o pecado. O Salmo 115:16, que diz: “Os céus são os céus do Senhor, mas a Terra deu-a Ele aos filhos dos homens”, era tomado literalmente. Hoje sabemos melhor. Deixamos a marca de nossos pés na Lua e a vastidão do espaço tem-se tornado objeto do escrutínio da ciência. Assim, pode-se legitimamente perguntar: existe algum lugar na criação de Deus onde o pecado não entrou ou onde sua influência não foi sentida?

Embora não precisemos especular sobre aquilo que não é conhecido ou revelado, ainda temos esta garantia: “A Terra, corrompida e maculada pelo pecado, não reflete senão palidamente a glória do Criador. É verdade que Suas lições objetivas não se obliteraram. Em cada página do grande livro de Suas obras criadas ainda se podem notar os traços de Sua escrita. A natureza ainda fala de seu Criador. Todavia, estas revelações são parciais e imperfeitas.”2

“Os céus podem ser para eles [os jovens] um compêndio, do qual podem aprender lições de intenso interesse. A Lua e as estrelas podem ser seus companheiros, falando-lhes na linguagem mais eloqüente do amor de Deus. Assim, a natureza continua a falar de Deus. E então, naturalmente, temos a Palavra escrita que proclama a natureza e a glória de Deus.

Muitos vêem os dois livros de Deus como tratando de questões diferentes. Um livro fala da natureza, enquanto o outro fala do seu Criador. Contudo, embora os dois livros sejam diferentes, ambos são exemplos de como Deus Se comunica com os seres humanos. Mediante um Ele nos fala acerca de Suas obras, o que se chama a revelação geral da natureza. No outro, conhecido como a revelação especial, Ele nos fala sobre Si mesmo. A revelação geral responde a perguntas sobre o universo físico. Como a natureza funciona? Como isso se relaciona com aquilo? Como explicamos ordem e ritmo, caos e degradação, espaço e tempo? Essas questões podem ser respondidas observando o mundo natural e usando os métodos das ciências naturais.

A revelação especial responde às questões que procuram sondar além do mundo físico: Por que a natureza é como é? Qual é o significado e o propósito da vida? Somos responsáveis perante um Ser superior? Como nos relacionamos com Deus? Como pode a questão do pecado e de seu poder destrutivo ser resolvida? Existe vida além da morte? Respostas a essas questões pressupõem a existência de um Ser superior, e fogem ao escopo da ciência natural. Aquele poder superior revelou-Se através da Bíblia.

Sendo que tanto a natureza como a Bíblia têm o mesmo Autor, que não mente (Núm. 23:19: Tito 1:2), as respostas obtidas da Bíblia não podem contradizer aquelas obtidas da natureza, naquelas áreas em que ambos os livros têm algo a comunicar. Isso não significa que os estudantes da natureza e os estudantes da Bíblia sempre concordem sobre como a informação deve ser interpretada. A própria Bíblia torna claro que ela só pode ser compreendida por aqueles que têm discernimento espiritual, isto é, aqueles que, em seus estudos, levam em consideração o Espírito de Deus (I Cor. 2:6-16).

Essa verdade já fora proclamada no Antigo Testamento e parece estender a condição de espiritualidade para além dos estudos bíblicos – à investigação da natureza. Assim, um conhecimento de Deus e um reconhecimento de Sua existência e sabedoria são necessários para uma compreensão mais profunda dos problemas levantados pela natureza.

Esforçando-se para conhecer a Deus pelo estudo de Seus dois livros, precisamos recordar que não podemos obter respostas satisfatórias estudando um enquanto negligenciamos o outro. Albert Einstein compreendeu esse princípio de complementariedade, quando disse: “A ciência sem religião é manca; a religião sem ciência é cega.”4

Objetivos idênticos

Mas não precisamos ser mancos nem cegos. Haverá alvos comuns para a fé cristã e a ciência concordarem, e estudos comuns nos quais podem se empenhar? Se a natureza e a Bíblia são dois modos que Deus escolheu para nos comunicar informações importantes, e nossa prossecução de empreendimentos físicos e espirituais pode ser assistida por esses dois livros, então não é lógico que tanto a ciência como a Bíblia, tanto a razão como a fé, devam desempenhar um papel em nossa vida intelectual e espiritual? Em outras palavras, não deviam nossa origem, desígnio e futuro ser informados e guiados pelo que a fé e a razão nos revelam?

Consideremos o apelo de Isaías: “Levantai ao alto os olhos e vede. Quem criou estas coisas? Aquele que faz sair o Seu exército de estrelas, todas bem contadas, as quais Ele chama pelo nome; por ser Ele grande em força e forte em poder, nem uma só vem a faltar” (Isa. 40:26). Aqui temos um convite de Deus para estudar Sua obra nos planetas, estrelas e galáxias.

Por que precisamos de tal estudo? Em primeiro lugar, para obter um conhecimento pessoal de Deus. Em segundo, para descobrir que nosso Criador é grande em poder e que Ele é eterno. E, em terceiro lugar, para descobrir porque Deus criou este grande Universo. Ele não quer que todos nós sejamos astrônomos, mas deseja que estudemos Sua criação maravilhosa e meditemos sobre ela. Temos a oportunidade de estudar este planeta bem como aquilo que é extraterrestre, a fim de que não somente conheçamos a grandeza do nosso Deus, mas também a responsabilidade de sermos Seus mordomos.

Isso levanta questões importantes. É essa mordomia a única razão para a pesquisa científica? Ou existem razões adicionais? O estudo científico do Universo físico e seu estudo mais espiritual, empreendido com o propósito de conhecer o Criador, deveriam andar de mãos dadas.

Notemos uma tendência recente da cosmologia. Aproximadamente 70 anos atrás, a cosmologia tomou um rumo que a levou aparentemente a uma explicação da origem do Universo. Embora ainda existam muitos pormenores não bem compreendidos, a teoria do Big Bang, a respeito da origem do Universo, tem sido aceita pela maioria dos cientistas como uma estrutura adequada, dentro da qual espera-se maior progresso no futuro.

A colaboração entre a astrofísica, a física das partículas e a física teórica, tem levado a um vislumbre dos primeiros momentos da existência do Universo. Contudo, também levou a um reconhecimento de que há uma barreira no tempo além da qual mesmo nossas melhores teorias não podem penetrar. Os primeiros microssegundos do Universo permanecem envoltos em mistério. Ademais, os cosmólogos têm chegado a compreender que muitos aspectos do Universo requerem uma sintonia muito delicada das condições iniciais e dos valores das constantes físicas.

Essa barreira no tempo e a sintonia delicada têm resultado num renovado interesse por velhas questões sobre desígnio no Universo, um possível planejador, e o que aconteceu naquela primeira fração de segundo ou mesmo antes.

Três atitudes

Embora investigações científicas tenham apresentado muitas respostas sobre como a natureza funciona, têm igualmente levantado questões mais profundas. Muitas dessas têm a ver com nossas preocupações mais sérias concernentes à vida, sua origem, seu propósito e futuro. Não admira, pois, que alguns cientistas sugiram que somente Deus pode prover respostas fidedignas a essas questões.5 Outros, contudo, têm-se recusado a admitir qualquer papel a Deus, esperando que o progresso contínuo da ciência haverá de responder um dia às questões que nos perturbam. Outros ainda alegam que as questões mais profundas escapam ao escopo das ciências naturais e que seria melhor relegá-las aos filósofos e teólogos. Vamos examinar rapidamente estas posições.

De acordo com a primeira posição, Deus é a resposta para todas as nossas questões, comunicando a verdade mediante a Bíblia ou pela Igreja. Embora para muitos cristãos essa opção pareça ser atraente, precisamos reconhecer os perigos que encerra. Imaginemos uma pessoa do século 16 que é incapaz de compreender a razão pela qual os planetas revolvem em volta do Sol. A maioria dos cientistas e teólogos da época estavam ensinando, supostamente sobre a base da revelação de Deus nas Escrituras, que a Terra é o centro de nosso sistema planetário.

Todavia, um século mais tarde, Isaque Newton apareceu e explicou esse mistério pela lei da gravitação. O avanço da ciência tem oferecido várias ocasiões nas quais as afirmações do envolvimento direto e miraculoso de Deus teve de ser abandonada. Essa abordagem do “Deus das lacunas”, que procura atribuir-Lhe todos os fenômenos não explicados do Universo, é mal orientada e corre o risco de finalmente tornar esse “Deus” desnecessário.

Aqueles que acreditam que Deus desempenha um papel ativo em nosso Universo o fazem porque acham nele muitas evidências de um desígnio inteligente, e estabeleceram uma relação pessoal com Ele.

Para a segunda posição, a ciência é a resposta para todas as nossas questões. Por causa de avanços científicos recentes, alguns estudiosos crêem que, dado tempo suficiente, a ciência poderá responder todas as nossas interrogações. Ignoram as suas limitações óbvias e sua natureza tentativa. Ademais, a ciência está em melhor posição para responder as perguntas “como”, do que as questões “por quê”. Deus nos criou como indivíduos inquisitivos, escolheu revelar ou tornar acessível a nós certas coisas e não outras (Deut. 29:29). As que foram reveladas são vitais para nosso relacionamento com Ele. Quando entrarmos em Sua presença eterna, poderemos fazer todas as outras perguntas cujas respostas estão agora envoltas em mistério. Isso não significa permissão para sermos preguiçosos ou desanimados em nossos empreendimentos científicos correntes. Ao contrário, devia nos levar a reconhecer que existem muitos aspectos de Deus e Sua criação que ainda estão ocultos para nós.

Segundo o terceiro ponto de vista, a filosofia ou a teologia pode prover as respostas para nossas indagações. Dependendo da constituição mental individual, a gente pode escolher entre filosofia (metafísica) e teologia para encontrar as respostas a questões extracientíficas ou tentar combiná-las de algum modo.

Os cristãos vão reconhecer que, na medida em que essas disciplinas são baseadas sobre o raciocínio humano e a lógica, elas sempre se demonstrarão deficientes quando deixam de levar em conta a existência e o poder do Criador de todas as coisas. Essa é justamente a fraqueza de toda filosofia e teologia não-cristãs.

Mas mesmo a teologia cristã não pode responder a todas as perguntas. Como nossa interpretação dos fenômenos naturais é prejudicada pelas barreiras do espaço, tempo e compreensão, assim nossa interpretação da Palavra é imperfeita. Além disso, somos criaturas finitas cuja capacidade mental não pode compreender em sua plenitude a mente do Criador (Isa. 55:8 e 9: Rom. 11:33).

Divórcio prejudicial

A curiosidade humana não se limita apenas aos aspectos físicos da natureza. Ela tem levado a questões mais profundas sobre a origem, o propósito e destino dos seres humanos. A intenção de Deus em criar o Universo e de povoá-lo com criaturas inteligentes foi não somente para nos prover muitos campos interessantes de estudos, mas também para nos levar a Ele como o Criador. E, Conseqüentemente, para uma visão mais profunda de que toda nossa existência é inteiramente dependente dEle.

Uma das perversões mais bem-sucedidas de Satanás é que ele conseguiu separar a ciência da religião, e desse modo corrompeu nossa compreensão do Criador e de Seu relacionamento conosco. Assim, a filosofia divorciada do cristianismo não pode responder a questões difíceis porque ignora Aquele que é a resposta. Nem a teologia por si mesma pode responder a essas questões, se ela se limita ao estudo apenas da revelação especial. Muito menos pode a ciência sozinha prover as respostas necessárias, especialmente se ignora o papel legítimo de Deus como Criador.

Somente quando a ciência, a teologia e a filosofia cristã colaboram – dando prioridade à palavra revelada de Deus, a Bíblia -, chegaremos a respostas satisfatórias. Quando reconhecemos a onisciência de Deus e nossas limitações, e expressamos nosso respeito e amor por Ele, cumpriremos Seu propósito original quando nos convidou a contemplar Seu poder para criar e salvar. ☆

MART DE GROOT, Ph.D., astrônomo pesquisador de tempo parcial no Observatório Armagh, Norte da Irlanda, pastor associado das igrejas adventistas de Belfast e Leme, na Missão Irlandesa

Referências:

1 Ellen G. White, Obreiros Evangélicos. Casa Publicadora Brasileira, Tatuí, SP. 1993: pág. 417.

2 Idem, Educação, Casa Publicadora Brasileira, Tatuí, SP, 1996; pág. 17.

3 Idem, Youth’lnstructor, 25/10/1900.

4 Em P. Frank, Einstein: His Life and Times. Nova York: Alfred A. Knopf, 1947. Robert Jastrow, God and the Astronomers, Nova York; W. W. Norton & Co., 1978. pág. 116.