A escolha de Matias para o lugar de Judas (Atos 1:15 a 26), foi cercada de uma série de ponderações solenes. O apóstolo Pedro, um dos mais respeitados discípulos de Jesus, usou da palavra para dizer aos seus companheiros que a vaga deixada pelo traidor deveria ser preenchida com todos os cuidados que o caso exigia. Considerou necessário que, dos homens que haviam convivido com eles todo o tempo em que o Senhor Je-sus entrou e saiu dentre o grupo, começando desde o batismo de João até ao dia em que dentre eles foi recebido em cima no Céu, um deles se fizesse testemunha da ressurreição.
Em sua argumentação, Pedro valeu-se das palavras de dois salmos. O primeiro (Salmo 41:9), para relembrar o que o Espírito Santo havia dito por intermédio de Davi, “acerca de Judas, que foi o guia daqueles que prenderam a Jesus”. Falou a respeito do ministério que Judas havia alcançado entre o grupo dos discípulos, e do campo que adquirira com o galardão da iniqüidade. O Salmo 69:25, por sua vez, tratava, esclareceu Pedro, da substituição de Judas. “Fique deserta a sua habitação, e não haja quem nela habite, e tome outro o seu bispado”, lembrou Pedro.
A oração proferida, pedindo a Deus que mostrasse qual dos dois homens que se apresentaram para substituir Judas devia ser escolhido, foi dirigida a um Senhor “conhecedor dos corações de todos”. Por unanimidade, Matias foi eleito.
Só podemos entender a importância de um objeto, quando começamos a contar o dinheiro para adquiri-lo. É na hora de preencher o cheque, que verificamos se o terreno que acabamos de comprar é caro ou barato, ou se o carro ou a casa tem preço elevado. Com relação ao caso da substituição de Judas, a descoberta não foi diferente. Uma eleição realizada com tantas precauções e com a evocação de oráculos divinos, faz-nos crer que Judas, à semelhança de seus colegas de apostolado, fora investido de uma importante função. Judas não pertencia ao grupo dos doze porque Jesus tivesse dificuldade para completar esse número, quando fez a escolha dos Seus discípulos. Tanto quanto nos demais apóstolos, Jesus viu nele qualidades que poderiam ser úteis à causa do evangelho.
Até certo ponto, é natural que olhemos para Judas com certa repugnância. O crime que praticou é inaceitável, se é que algum crime deve ser aceito. Todavia, se Judas não valia nada; se não possuía nenhuma qualidade boa, então Jesus não perdeu muita coisa. Entretanto, parece não ter sido isso o que aconteceu. É o que iremos ver em seguida.
Pessoa influente
Tudo indica que Judas era um indivíduo influente nas altas camadas do povo judeu dos dias de Jesus. Sugere isto, o fato de ter-se apresentado por duas vezes aos principais sacerdotes em tão pouco tempo. A primeira delas, para propor a venda de Jesus; a segunda, quando voltou para devolver o dinheiro. Essa facilidade de entender-se com pessoas tão respeitadas, parece que não era tão comum entre os discípulos de Jesus. Ao que se sabe, apenas o apóstolo João desfrutava de certa consideração da parte daqueles líderes religiosos. Falando sobre o comparecimento de Cristo perante o Sinédrio, João conta, no seu evangelho, que entrou com Jesus “na sala do sumo sacerdote” (João 18:15). Fez isso, porque era conhecido daquela autoridade religiosa.
Deve-se notar que esse acesso de Judas a personagens tão importantes era tanto mais significativo em virtude do momento em que ocorreu. Judas não era uma pessoa qualquer. Fosse possível eliminar a Cristo de forma aparentemente menos criminosa, certamente isso teria acontecido. Ninguém queria assumir a responsabilidade pelo crime. Judas surgiu no momento certo! Embora não fosse tão querido daqueles guias religiosos, como estes revelaram por ocasião da devolução do dinheiro, o traidor foi bem acolhido, ao oferecer-se para vender o seu Mestre. Não bastava ser discípulo de Jesus, para fazer o negócio; Judas tinha que ser uma pessoa conhecida, a fim de merecer a confiança dos compradores. E, se era bem relacionado, era pessoa influente.
Essa habilidade de Judas para tratar com as pessoas – sua capacidade para exercer relações humanas – não surgiu apenas no momento em que Jesus estava para ser crucificado. Durante o ministério de Cristo, foi ela posta em prática inúmeras vezes, enquanto o Iscariotes se comunicava com os companheiros de ministério. Diz Ellen White: “Judas era altamente considerado pelos discípulos, e exercia sobre eles grande influência. Tinha em elevada estima as próprias aptidões, e considerava seus irmãos como muito inferiores.” (O Desejado de Todas as Nações, pág. 534).
O alto conceito que possuía Judas de suas “habilidades administrativas”, fazia-o julgar-se superior aos seus condiscípulos. “Conquistara-lhes a confiança, e exercia sobre eles grande influência.” (Idem, pág. 417). Soube explorar, principalmente, um aspecto social com o qual muitos de nós simpatizamos – a assistência social. Sob uma capa de solidariedade para com os menos favorecidos, seria mais difícil de ser criticado. Até mesmo os mais desconfiados companheiros tiveram dificuldade em acusá-lo de desonesto. Somente quando as coisas começaram a tomar-se mais claras, um dos discípulos resolveu fazer uma afirmação mais contundente.
Foi na ocasião em que Maria ungiu os pés de Jesus. Judas criticou o gesto de Maria, lamentando que o perfume não tivesse sido transformado em dinheiro; e sugeriu até o valor: trezentos denários. “Isso disse ele, não porque tivesse cuidado dos pobres; mas porque era ladrão e, tendo a bolsa tirava o que nela se lançava.” (João 12:6). É provável, contudo, que até aquele momento Judas se tenha feito passar, entre os discípulos, por uma espécie de líder.
Poder para curar
A carreira descendente de Judas seria um enigma, não fosse sabermos que todo indivíduo tem o direito de escolher o caminho que deseja trilhar, ficando sujeito à lei da causa e efeito. No verso bíblico anteriormente citado, Judas foi chamado de ladrão. Porque tinha a bolsa e dela tirava o que ali era lançado, recebeu ele esse título nada elogioso.
E, de ladrão para demônio, não demorou muito; em poucos e sinuosos passos, chegou Judas a sua nova posição. O mesmo João evangelista que o chamara de ladrão, relata estas palavras de Jesus: “Não vos escolhi Eu em número de doze? Contudo um de vós é o diabo.” (João 6:70). Quando Satanás entrou em Judas, ao receber o bocado de pão que lhe dera o Senhor, não se sentiu em lugar estranho; mas num ambiente familiar. Judas já se havia identificado com o príncipe das trevas.
Entretanto, ao contrário do que se possa imaginar, o traidor teve os mesmos privilégios e recebeu a mesma incumbência que foram confiados aos demais discípulos. Embora os três primeiros evangelhos coloquem o seu nome sempre em último lugar, por razões óbvias, na lista em que figura o nome dos apóstolos, todos eles afirmam que Judas foi chamado por Jesus, da mesma forma que o foram Pedro, Tiago, Mateus e os demais discípulos.
O primeiro evangelista, Mateus, conta que “tendo chamado os Seus doze discípulos, deu-lhes Jesus autoridade sobre espíritos imundos para os expelir, e para curar toda sorte de doenças e enfermidades” (Mat. 10:1). A lista dos chamados, que vai dos versos dois ao quatro, começa pelo nome de Pedro e termina com o de Judas. Aquilo que fazia parte da missão confiada aos outros onze discípulos, era também dever de Judas. Como afirma Ellen White, “o Salvador … confiou-lhe a obra de evangelista. Dotou-o de poder para curar os doentes e expulsar os demônios” (O Desejado de Todas as Nações, pág. 533).
Já imaginou Judas exercendo autoridade sobre os espíritos imundos, “para os expelir, e para curar toda sorte de doenças e enfermidades”? Pois é, Judas foi dotado dessa autoridade e desse poder. Como não ficou registro de que Bartolomeu, Natanael e outros discípulos tenham operado prodígios, mas certamente o fizeram, o mesmo pode ter acontecido com Judas. Não sabemos quanto êxito logrou Judas, ao ser enviado “às ovelhas perdidas da casa de Israel”, mas podemos estar certos de que formou dupla com outro discípulo, também investido da ordem de Jesus: “Curai os enfermos, limpai os leprosos, ressuscitai os mortos, expulsai os demônios.” Só que, depois, os demônios começaram a entrar nele próprio.
O evangelho de Marcos dá a entender que Judas Iscariotes era o décimo segundo nome escolhido, de um grupo bem maior de pessoas que Jesus chamou para perto de Si. Jesus “chamou para si os que Ele quis”, mas só nomeou doze “para que estivessem com Ele e os mandasse a pregar” (Marcos 3:13 e 14). Um daqueles que foram “nomeados” foi Judas.
Lucas acrescenta uma particularidade a essa escolha: diz que ela se deu após uma noite de oração. “Quando já era dia”, depois daquela vigília, “chamou a Si os Seus discípulos, e escolheu doze deles, a quem também deu o nome de apóstolos.” (Luc. 6:12 a 16).
Talvez seja bom lembrar que o número doze, nesses versos, não é simbólico, como se imagina que aconteça com os 144 mil; trata-se de um número literal. Quando Judas se separou do grupo, pelo fato de haver-se enforcado, esse grupo passou a ser chamado de onze. “E lançando-lhes sortes, caiu a sor-te sobre Matias. E por voto comum foi contado com os onze apóstolos.” (Atos 1:26).
Desvio do apostolado
Entretanto, Judas se desviou do seu apostolado. Orando Àquele que conhece os sentimentos, os apóstolos pediram-Lhe que mostrasse qual dos candidatos devia ser escolhido “para que tome parte neste ministério e apostolado, de que Judas se desviou” (v. 25).
Ao orarem a um Senhor que conhecia os corações, por ocasião da investidura de Matias, estariam os apóstolos sugerindo que, ao escolher Judas, o Senhor Jesus não conhecia o coração daquele discípulo? Podemos afirmar com toda a certeza que conhecia, da mesma forma que conhecia o coração dos outros. Então, por que chamar para ser Seu discípulo alguém que se tomaria mais tarde um ladrão e um demônio? Pela razão não tão simples assim, de que “Deus toma os homens tais como são, com os elementos humanos de seu caráter e os prepara para Seu serviço, caso queiram ser disciplinados e dEle aprender. Não são escolhidos por serem perfeitos, mas apesar de suas imperfeições, para que, pelo conhecimento e observância da verdade, mediante a graça de Cristo, se possam transformar à Sua imagem” (O Desejado de Todas as Nações, pág. 215).
Embora tivesse chegado ao final de sua história como ladrão e demônio, Judas poderia ter revertido sua situação, não tivesse rejeitado todos os oferecimentos de graça que lhe foram estendidos. A maioria dos apóstolos chegou ao limiar da crucifixão carregando ainda defeitos inaceitáveis em qualquer pessoa, mas, sobretudo, naqueles que conviveram com Jesus. Todavia, em presença da cruz, puseram em prática as teorias aprendidas ao longo de seu companheirismo com Cristo.
A violência ainda fazia parte da vida de Pedro, pouco antes de Jesus ser crucificado. Sua espada ainda brandia contra aqueles aos quais considerava seus inimigos. Ao orar em favor de Pedro, momentos antes de Se entregar àqueles que Lhe tiraram a vida, Jesus exortou o Seu impetuoso discípulo: “Tu, quando te converteres confirma teus ir-mãos.” (Luc. 22:32). A recomendação feita a Pedro, no sentido de que se convertesse, mostra que lhe faltava um dos requisitos básicos da vida cristã de qualquer seguidor de Jesus. Todavia, sua união com Cristo, tornou-o o gigante da fé que conhecemos.
Os incrédulos Tome e Filipe, cada um à sua maneira, foram até às vésperas da morte de Jesus, sem a certeza plena de que estavam tratando com a pessoa certa. Tomé, sem rumo, não sabia para onde ia Cristo, e perguntava pelo caminho; e Filipe, ainda queria ver o Pai, para sentir-se satisfeito. Nada sabemos sobre Filipe, mas sabemos que Tomé permitiu que sua falta de fé atravessasse as fronteiras do Gólgota: “Se eu não vir o sinal dos cravos em Suas mãos e não meter o dedo no lugar dos cravos, e não meter a minha mão no Seu lado, de maneira nenhuma crerei”, disse ele quando a ressurreição já estava sendo anunciada. Felizmente, curvou-se ao peso da evidência e aceitou plenamente ao seu Senhor.
Como se pode ver, mesmo depois de Sua ressurreição, continuou nosso Salvador a envidar esforços no sentido de aparar as arestas ainda existentes no caráter de Seus discípulos. Judas, da mesma forma que os apóstolos citados, poderia ter sido beneficiado por esses esforços. Bem que Jesus lhe oferecera oportunidade até pouco antes de ele comprar a corda com a qual pôs termo à vida. Permitiu-lhe sentar-se à mesa com os demais apóstolos, e ouvir as palavras que proferira enquanto distribuía os elementos que simbolizavam Seu corpo e sangue. “Isto é o Meu corpo, que por vós é dado; fazei isto em memória de Mim.” Pena que Satanás também ali estivesse, e entrasse em Judas, quando este recebeu o pão das mãos de Jesus. Era o fim do desvio do seu apostolado.