Diversos pensadores estão se voltando para o mito de Narciso como um emblema dos valores e atitudes que dominam a sociedade contemporânea. Christopher Pasch, em seu livro intitulado The Culture of Narcissism (A Cultura do Narcisismo), considera essa atitude para com a vida “um dos temas principais da cultura norte-americana.

Gilles Lipovetsky, um sociólogo francês, define a época presente como “a idade do narcisismo”. A tendência pode ser vista até nos nomes de revistas populares norte-americanas, entre as quais destacamos: “Life”, “People”, “Us”, “Self”.

Na mitologia grega. Narciso era um jovem bonito e vaidoso que rejeitou os assédios amorosos das ninfas Eco e Aminia. Esta última, ferida em seu orgulho, amaldiçoou o jovem, desejando que ele nunca possuísse o objeto de seu amor. Um dia. Narciso curvou-se para beber água de uma fonte. Vendo sua própria face refletida na água, enamorou-se dela. Narciso foi tão atraído por sua própria imagem que freqüentemente voltava à fonte para contemplar-se a si mesmo. Dessa forma, ele foi enfraquecendo e, finalmente, morreu.

Outra versão da lenda conta que, vendo-se na água, Narciso procurou abraçar sua própria imagem e afogou-se na tentativa. Naquele lugar, segundo a lenda, brotou uma nova flor que tomou o nome de seu infeliz criador, o narciso.

Foi Sigmund Freud1 quem acrescentou o termo narcisismo ao vocabulário da psicologia, para designar amor à própria imagem e a etapa do desenvolvimento na qual a criança faz do próprio eu o objeto principal de seu amor.2 Essas idéias originaram muitos estudos que descrevem e analisam o perfil distinto da personalidade narcisista.

Segundo o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual de Estatística e Diagnóstico de Desordens Mentais), da Associação Psiquiátrica Americana, narcisistas são indivíduos arrogantes e convencidos, que têm fantasias magníficas sobre si mesmos. Eles superestimam seu sucesso, precisam ser constantemente admirados e sempre esperam tratamento preferencial.

Os narcisistas estão convencidos de que merecem mais do que recebem. Preocupam-se em ter boa aparência e em manter a juventude. Não são sensíveis às necessidades e aos problemas de outras pessoas. Com pouca tolerância para a crítica, freqüentemente reagem com fúria a ofensas reais ou imaginárias. Tendem a ser mais encontrados entre as pessoas do sexo masculino, embora em menor quantidade também entre as do sexo feminino.

Em suma, os narcisistas focalizam a si mesmos, fascinados com sua personalidade e seu corpo, “com um individualismo atroz que carece de valores morais e sociais e se desinteressa por qualquer questão transcendental”? O que temos é um eu assentado em seu trono, despreocupado de tudo o mais na vida.

Cultura narcisista

Os narcisistas de ambos os sexos podem ser vistos na televisão e no cinema, exibindo orgulhosamente suas curvas atraentes ou seus grandes músculos, gabando-se de suas fantásticas proezas. Eles estão andando nas ruas, vestidos sedutoramente segundo a moda, provocando admiração e inveja. Podemos vê-los nas praias exibindo seus corpos maravilhosamente bronzeados. Seguem a última moda, gastam muito dinheiro com perfumes e maquiagem, e adotam várias dietas e terapias a fim de se tornarem mais atraentes.

Esse individualismo centrado em si procura apenas gratificação própria e prazer. O desejo de bem-estar e de divertir-se eclipsa tudo o mais. Insensibilidade e indiferença dominam a atitude do narcisista para com o resto do mundo e os interesses ou necessidades dos outros. Importantes questões filosóficas, religiosas, econômicas ou políticas despertam uma curiosidade apenas superficial. Deus torna-Se um estranho. O sentido de transcendência desaparece. O que importa é conforto e uma bela aparência: preservar o nível de vida e gratificar o eu. Assim o narcisista vive apenas no presente e não se preocupa com o passado ou o futuro. A filosofia de “faça o que lhe apraz”, “não se preocupe”, “seja feliz” e “divirta-se” torna-se o princípio que lhe governa a vida.

A cultura do narcisismo é a celebração da aparência física, o triunfo do espelho e o culto da própria imagem. Milan Kundera.4 o famoso escritor tcheco, cunhou o termo “imagologia” para indicar o poder da imagem social imposta por aqueles que determinam à moda e sua importância em todos os aspectos da vida: a roupa que deveríamos vestir, os aparelhos que deveríamos possuir, a combinação de cores que deveríamos preferir em casa, em quem votar e a quem aplaudir num evento esportivo.

O termo “imagologia”, diz Kundera, “ajuda a combinar numa palavra aquilo que possui tantos nomes: agências de publicidade, consultores de imagem para estadistas, desenhistas encarregados de projetar as formas dos carros e aparelhos de ginástica, modistas, cabeleireiros e astros do mundo dos espetáculos, que ditam as normas de beleza física para aqueles que respeitam todos os ramos da ‘imagologia’”.5

E assim chegamos ao narcisismo pós-moderno; as ideologias estão mortas e a “imagologia” reina.

Ingrediente trágico

Apesar de seu êxito, o narcisismo tem um componente trágico que não pode ser esquecido – a maldição de Aminia, a incapacidade de amar outra pessoa. Os narcisistas estão enamorados do espelho, procurando descobrir sua própria imagem nos outros. Estão condenados à insatisfação perpétua. A vida para eles é uma experiência absurda que os deixa com um vazio interior e os faz sofrer; tal é “a estratégia vazia” do narcisismo.6 O drama de narciso, a ausência de sentimento e transcendência, inexoravelmente condena a pessoa à solidão e destruição própria. O mito é implacável e fatal. Parece não haver solução possível.

A esperança, todavia, se abre, não no egocentrismo e ausência de sentido, mas na eterna Palavra de Deus. O tema da Bíblia é o oposto do narcisismo. Exige a renúncia do eu e o abraçar o outro. O amor a Deus e ao próximo domina o retrato bíblico da vida. Considere, por exemplo, a história de Sansão, que pode ser comparada ao mito de Narciso de muitos modos, mas mostra a tragédia do egocentrismo e o triunfo do desprendimento.

Herói nazireu

Chamado para libertar seu povo da submissão a uma potência estrangeira, Sansão foi dotado por Deus com capacidades e recursos extraordinários, inclusive uma força fora do comum. Sansão, todavia, dedicou a maior parte de sua vida exibindo o espetáculo de sua figura, ostentando com orgulho sua engenhosidade e seus músculos poderosos. Buscava egoisticamente a satisfação sensual com mulheres de moral duvidosa, e ficava terrivelmente frustrado quando não era satisfeito. De certo modo, procurava ser um Narciso.

A narrativa bíblica (Juizes 13-16) enfoca os principais episódios de sua vida:

Nascimento milagroso com um desígnio. Casamento.

Enfrentamentos com os filisteus.

Visita à prostituta de Gaza.

Traição de Dalila.

Cativeiro, punição, arrependimento, fé, triunfo e morte.

A história é dramática e cheia de colorido. Um anjo comunica aos pais de Sansão o milagroso nascimento do herói. O mensageiro celeste dá uma série de recomendações dietéticas e educacionais, visto que a criança teria de ser consagrada a Deus pelos votos do nazireado.

O primeiro acontecimento a desafiar Sansão foi seu desejo de se casar com uma mulher filistéia, membro do próprio povo do qual ele devia livrar Israel. Simplesmente disse que a mulher agradava a seus olhos (Juízes 14:3). Seus pais fizeram uma objeção inicial, mas afinal cederam. Durante a festa nupcial, Sansão gastou mais tempo tentando chamar a atenção dos convidados para seus enigmas do que cortejando sua mulher. Quando o enigma foi revelado, com o auxílio de sua esposa, ele tornou-se tão violento que matou 30 filisteus a fim de pagar a aposta. Então voltou para casa, esquecendo completamente a esposa. O orgulho ferido era mais forte do que a estima por sua mulher.

Algum tempo depois ele voltou à sua procura, mas era demasiado tarde; ela já se casara com outro homem. De novo, ele sofreu outra ferida “narcísica”, reagindo com violência fora do comum e queimando os campos dos filisteus. Essa agressão incitou o ataque dos filisteus aos israelitas, que convenceram Sansão a se entregar. Ele foi então amarrado e levado aos filisteus; mas rompeu as cordas, tomou uma queixada de jumento e matou mil homens.

Noutra ocasião, Sansão visitou uma prostituta em Gaza. Os filisteus cercaram a cidade a fim de guardar os portões e capturá-lo. Todavia, à meia-noite, ele se levantou e carregou o portão e seus dois pilares sobre os ombros, levando-os até o topo de uma colina. Então Sansão enamorou-se de outra mulher chamada Dalila, que o traiu quando ele revelou o segredo de sua força. Dalila cortou-lhe o cabelo e o Espírito retirou-Se de Sansão. Ele foi capturado por seus inimigos, seus olhos foram vazados, foi atirado no cárcere e condenado a trabalho forçado. Sob circunstâncias desfavoráveis e difíceis, caiu em si e arrependeu-se.

O arrependimento

Sansão mudou a direção de sua vida, executando um ato final verdadeiramente heróico. Seus captores o tinham levado a uma festa celebrada no templo dedicado a Dagon. Aí foi exibido como símbolo altivo do triunfo dos filisteus. Cego e amarrado, Sansão foi feito objeto de ridículo e zombaria. Em sua pessoa, o Deus do Universo e Seu povo foram publicamente zombados. Nesse momento crítico, Sansão vol-tou-se a Deus, pediu perdão por suas ações egocêntricas e rogou para que as forças lhe fossem devolvidas, a fim de mostrar dessa vez que Deus é Deus.

Sua oração foi atendida. Sansão podia sentir o poder de Deus animando-o. Abraçou os dois pilares centrais do edifício e os puxou com força até que os derrubou. Assim pereceu Sansão com três mil de seus inimigos.

Qual é o sentido da vida fora do comum de Sansão? Por certo, sua história é enigmática devido a suas charadas e ao segredo de sua força. Até mesmo o seu nome é um mistério. Etimologicamente significa “sol”, embora outros o liguem com “servir”, ou ainda com “forte”. Certamente extraordinária e prodigiosa era sua força, destinada a cumprir uma missão de libertação divinamente ordenada. Ele compreendeu isso no último momento. Em vez de usar sua força para servir, usara-a para ser o “sol”, para se fazer o centro brilhante do espetáculo. É claro que Sansão não era um psicopata ou um gigante de cérebro vazio. Ao contrário, ele era engenhoso, sensível, tinha veia poética (Juízes 14:14; 18; 15:16) e repetidamente escapou das armadilhas dos filisteus (Juízes 16:2 e 3). Seu ponto fraco eram as mulheres, mas não era um maníaco sexual. Em vez de ser derrotado por mulheres, Sansão foi derrotado por sua própria arrogância e seu narcisismo.

Há um ponto chave nessa história: a questão do olhar. A vista desempenha um papel importante do começo ao fim da vida de Sansão. Enamorou-se da mulher filistéia, porque disse: “Ela agrada a meus olhos.” O mesmo pode ter sucedido com a prostituta de Gaza. Teria sido por causa disso que seus amigos o puniram com cegueira? Esse foi o ponto decisivo. Somente naquele momento Sansão pôde olhar para dentro e recuperar o sentido de sua vida e missão. Voltando-se para Deus, conseguiu vencer o narcisismo, arrepender-se e mudar.

Paradoxo existencial

A mensagem bíblica volta-se repetidamente a este paradoxo existencial: o castigo convertendo-se em bênção. O modelo básico é o exemplo do próprio Cristo. A cruz, um símbolo de desgraça e humilhação, tornou-se o emblema de expiação e redenção. Aqui, a história bíblica é contrária à mitologia. Ao passo que essa termina em tragédia, a outra abre as portas da esperança. O mito leva o narcisismo a seu desfecho fatal, ao passo que a mensagem bíblica nunca exclui a possibilidade de mudança.

Tivesse vivido hoje, Sansão teria sido o Hércules da tela. Foi protagonista de um drama estético, mais do que o símbolo do heroísmo épico. Na superfície, sua história começa com exaltadas esperanças e termina em catástrofe, como no mito de Narciso. Todavia, o último ato na vida de Sansão foi um ato de consagração, um ato que mostrou esperança, fé e amor que se sacrifica por Deus e Seu povo.

Ellen White afirma: “No sofrimento e humilhação, como joguete dos filisteus, Sansão aprendeu mais acerca da sua fraqueza do que jamais soubera antes: e as aflições o levaram ao arrependimento.”Só nesse momento ele ouviu o chamado de Deus. Até então, tinha vivido à margem da transcendência, usando Deus a seu bel-prazer (Juízes 15:18). Foi na crise final que ele percebeu a dimensão da fé.

A vitória

Na mitologia grega, Narciso era o deus do amor-próprio, interessado apenas em satisfazer seu prazer, completamente indiferente para com Deus e as necessidades dos outros. Simboliza orgulho, vaidade, convencimento e hedonismo. Muito de nossa cultura reflete os valores falsos do narcisismo. A sociedade contemporânea procura congelar a adolescência, exorcizar a velhice, idolatrar o prazer e viver no espírito do encanto e da sedução. Mas o mito leva à tragédia e à destruição própria.

Em contraste com esse mito fatal, a história bíblica de Sansão oferece uma alternativa de fé e esperança. De modo surpreendente, mas apropriado, Paulo coloca Sansão na galeria dos heróis da fé (Heb. 11:32). Por quê? O que era heróico na vida desse indivíduo? Não eram suas proezas em combater os filisteus, nem a força de seu governo, mas o ato corajoso de entregar a vida para a salvação de seu povo.

Diferente de Narciso, que sucumbiu ao encanto de contemplar a própria imagem, Sansão foi obrigado a deixar de contemplar a si mesmo a fim de responder ao chamado para o sacrifício. As horas escuras da crise destruíram-lhe o orgulho e fizeram-no cumprir o alvo de sua vida, assumindo seu destino como libertador num gesto final. Preferiu morrer a fim de salvar seu povo da opressão estrangeira.

Num mundo saturado com o culto do narcisismo, a história de Sansão ensina que nada resta na vida quando se perde o senso de missão. A narrativa bíblica consistentemente realça que o significado da vida pode ser achado em Deus e nEle somente. Longe do eu e ancorado em fé, esperança e amor.

Referências:

1 Sigmund Freud, Introduction al Narcisismo. in Obras Completas. Madri: Biblioteca Nueva. vol. I. págs. 1083-1096. 

2 LaplancheJ. e J. B. Pontalis, Diccionario de Psicoanalisis. 3ª. ed. Revista. Barcelona; Editorial Labor, 1981.

3 E. Rojas. El Hombre Light: Uma Vida Sin Valores. Madri; Ediciones Temas de Hoy. 1992.

4 M. Kundera, La Insoportable Levedad del Ser. 2a. ed.. Barcelona; Tusquets Editores. 1990.

5 Ibidem, pág. 140.

6 Ibidem.

7 Ellen White. Patriarcas e Profetas. Tatuí. SP; Casa Publicadora Brasileira. 1995, pág. 566.

MARIO PEREYRA, Diretor da Faculdade de Psicologia da Universidade Adventista del Plata, e diretor do Departamento de Saúde Mental do Sanatório Adventista del Plata, Entre Rios, Argentina