Muito tem sido escrito sobre demonologia no contexto do Novo Testamento, onde a presença de demônios é claramente ensinada. O testemunho do Velho Testamento, entretanto, não é explícito. Contudo. o assunto é tratado no Velho Testa-mento, e revela bastante ajuda à com-preensão dos pastores sobre a natureza de como eles devem agir se, por acaso, encontrarem-se confrontados com um genuíno caso de possessão demoníaca.
Para começar, embora a palavra “demônio” esteja etimologicamente relacionada com o termo grego daimónion, não significam a mesma coisa. O termo grego designava uma deidade, especificamente boa ou deidades menos perversas.’ Demônio, ao contrário, comumente designa uma entidade sobrenatural, um poder autônomo abertamente antagônico a Deus e Seu povo.
Termos hebraicos
O termo hebraico shedîm (Deut. 32:17; Sal. 106:37) usualmente é traduzido como “demônios”. A Septuaginta traduz como daimoníois. A tradução moderna é baseada no cognato acádico shedu, que designa tanto espíritos maus como bons.2 As palavras bíblicas descrevem os deuses pagãos como entidades sobrenaturais inferiores porque eles requerem sacrifícios humanos.
Outro termo hebraico para demônios é seîrîm, derivado de uma raiz que significa “ser cabeludo”. O substantivo significa “alguém cabeludo”, mas poderia também designar um “bode (cabeludo)” e um “demônio”.3 Alguns têm interpretado essa expressão como significando um demônio parecendo um bode (uma sátira) mesmo que a tentativa de definir a aparência do demônio pela etimologia não funcione. No antigo Oriente Próximo, deidades e demônios eram representados sob o símbolo de animais que ilustravam tais seres espirituais. Bodes usualmente habitavam o deserto, e os demônios, tanto na Bíblia como no antigo Oriente Próximo, estavam associados com o deserto como símbolo de infertilidade.4
Pessoas do antigo Oriente Próximo acreditavam que os demônios moravam nas regiões inferiores da Terra, na região dos mortos. No Egito há referências a “demônios sanguinários”,5 uma possível referência a seírím, para quem os sacrifícios sangrentos eram oferecidos. O reino da morte também era o reino demoníaco, o que provavelmente explica a razão de o Velho Testamento condenar a comunicação com os mortos (Deut. 18:10 e 11), ati-vidade considerada uma tentativa de contato impuro e demoníaco. O livro da Sabedoria estabelece implicitamente que os mortos não sabem qualquer coisa a respeito do reino dos vivos e portanto eles não têm conhecimento de segredos para partilhar (Jó 14:21; Ecles. 9:4-6 e 10). É interessante que os espíritos consultados pelos necromantes sejam chamados elohîm (deuses, seres divinos; I Sam. 28:13; Isa. 8:19), mas eles podem ser reconhecidos como poderes demoníacos por causa de sua associação com os mortos. Esses espíritos possuem um médium e aparentemente falam através dele (Lev. 20:27).
Geralmente é reconhecido que o substantivo ‘azazel, usado em Levítico 16:8, 10 e 26, designa um demônio. Isso refere-se a um ser pessoal, em virtude de seu paralelismo com o nome do Senhor (Lev. 16:8). A importância dessa figura e o ritual associado com ela são significativos na demonologia do Velho Testamento, e muitos eruditos datam o ritual para uma fase inicial da história israelita.
A palavra lîlît, usada somente em Isaías 34:14. é comumente compreendida como referindo-se a demônio (daimónion, na Septuaginta).6 O substantivo parece pertencer ao grupo de palavras para “noite, trevas” (layla. no hebraico). Mas os acádios usam a mesma raiz para o nome de um demônio (lilitu), um demônio do gênero feminino ligado de alguma forma com relacionamentos sexuais.7 Muitas traduções inglesas vertem-no como “criatura da noite”, sugerindo que a referência a um demônio é incerta. No contexto, é feita menção a muitos outros animais, alguns dos quais têm sido considerados demônios. Aqui, novamente o termo seîrim é traduzido “demônio” (Lev. 17:7), mas em virtude de que ele poderia designar um bode, o significado é incerto (Isa. 13:24).
Algumas vezes os escritores bíblicos personificam “praga” (reshep) e “pestilência” (deber), descrevendo-as como acompanhando o Senhor como Seus instrumentos de juízo (Hab. 3:5; Deut. 32:24). Reshep era o nome de um deus semítico ocidental, considerado tanto perigoso como benevolente, que estava encarregado de guerras e doenças.8 Devido a que deber na literatura do antigo Oriente Próximo não se refere a uma deidade ou a um demônio, poderia ser argumentado que na Bíblia os dois termos são usados somente como personificações de poderes destrutivos. Entretanto, no antigo Oriente Próximo, os demônios infligiam doenças nas pessoas e causavam grande sofrimento,9 um conceito talvez implícito em Salmo 91:5 e 6.10 O livro dos Salmos estabelece que aqueles que temem ao Senhor serão protegidos dos poderes maus (“a flecha que voa de dia”, “a peste que se propaga nas trevas”, “a mortandade que assola ao meio-dia”). É possível que esses poderes estejam representados no verso 13 pelos símbolos de um leão e uma serpente.
O Velho Testamento contém algumas narrativas nas quais seres espirituais são descritos como efetuando uma função negativa a serviço de Deus. O primeiro caso a ser mencionado trata de um “espírito de aversão” (rûah ra’â) enviado por Deus para criar antagonismo “entre Abimeleque e os cidadãos de Siquém” (Juízes 9:23; a Septuaginta lê pneuma ponerón; cf. Mar. 1:23; 7:25; Atos 5:16). Estavam sob o controle de Deus e Seu instrumento de juízo. Alguém poderia argumentar que esse “espírito” não é personificado, mas trata-se de uma condição emocional ou psicológica que rompe a interação social. Mas a frase “espírito de aversão [mau]” (no acádio, sharu lemu) era empregada para referir-se aos poderes demoníacos que produziam todos os tipos de doenças.”
Depois que o Espírito do Senhor retirou-Se de Saul, ele foi atormentado por um espírito maligno da parte do Senhor (I Sam. 16:14). A música o aliviava temporariamente (16:23). Sob a forte influência desse espírito, Saul tentou matar Davi (I Sam. 18:10-12; 19:9); todavia, o espírito estava sob o controle de Deus, não sendo um poder totalmente independente.
Micaías teve uma visão na qual viu o Conselho Celeste em sessão discutindo a sorte final do Rei Acabe (I Reis 22:19-23; II Crôn. 18:10-23). Durante a discussão ‘um espírito’ ofereceu seus serviços para
O uso mais significativo do termo Satanás ocorre no livro de Jó, onde ele é descrito como o maior inimigo de Deus.
seduzir Acabe, sendo “o espírito mentiroso na boca de todos os seus profetas [de Baal], O Senhor lhe disse: Tu o enganarás, e ainda prevalecerás; sai e faze-o assim.” (v. 22). É difícil decidir se esse é um espírito benevolente agindo de um modo malévolo, como foi o caso de alguns seres espirituais no antigo Oriente Próximo, ou um essencialmente espírito mau que o Senhor usou para cumprir Seu propósito. Se era um membro do Conselho Celestial, é mais lógico apoiar a primeira opção; entre-tanto, uma comparação com o incidente de Jó leva a uma conclusão diferente.
Arquiinimigo
Argumenta-se usualmente que Satã, como o arquiinimigo de Deus, é desconhecido no Velho Testamento.’2 O substantivo Satanás significa “adversário”, “oponente” e é usado por seres humanos e celestiais. O primeiro ser celestial chamado Satanás foi um anjo do Senhor (Núm. 22:22 e 32), quase uma figura demoníaca. Portanto o nome não pode ser usado para determinar a natureza de seres celestiais. A primeira vez que esse termo é usado como o nome próprio é em I Crônicas 21:1, para descrever um ser que incitou Davi a fazer um censo. Em II Sam. 24:1 essa mesma função é atribuída a Deus. Isso é incompreensível porque, co-mo temos visto, poderes do mal são usados por Deus para cumprir Seus propósitos. Quando esses poderes tornam-se uma ameaça para Seu povo, Ele o protege e limita as atividades inimigas.
Em Zacarias 3:1 e 2, Satanás é o acusador dos servos de Deus. O Anjo do Senhor, o Senhor e Satanás estão juntos. O que está em jogo é o direito de Deus perdoar Seu povo. O poder do mal não pode tolerar a graça perdoadora de Deus e busca impedir os pecadores de se alegrarem na sua amizade com Deus.
Mas possivelmente o uso mais significativo do substantivo Satanás é lembrado no livro de Jó, onde ele é descrito como o maior inimigo de Deus (Jó 1:7; 2:2). Tal como o espírito mentiroso da visão de Micaías, ele é um membro do concilio e está sob o controle do Senhor, incapaz de agir em total independência dEle. Certamente é o acusador de Jó diante da assembléia celestial e o instigador de doenças e tragédia. No diálogo com Deus, satanás na realidade está atacando o sistema de governo de Deus.13 Ele argumenta que Deus “compra” o serviço humano, e nutre egoísmo ao abençoar e proteger os Seus filhos. A maneira de Deus reger o Universo não é controlada pelo amor desinteressado, ele argumenta, mas pelo princípio “toma lá, dá cá”.
Isso é inquestionavelmente um ataque sobre o papel do amor e da graça de Deus. Aqui, a verdadeira natureza demoníaca, no Velho Testamento, é revelada. Esse ser é conhecido como Satanás.
Embora o Velho Testamento não diga muito sobre essa figura, apresenta o sufi-ciente para entendermos que se trata de um inimigo de Deus, não Seu parceiro. Opiniões sobre sua origem são relatadas em Isaías 14:12-19 e Ezequiel 28:11-19 quando, na descrição da ascensão e queda dos reis de Babilônia e de Tiro, os profetas usaram as imagens da primitiva batalha de Deus com os seres demoníacos. Aquele querubim, que era muito íntimo de Deus, tentou em um ato de rebelião ser igual a Deus, e foi expulso da Sua presença.’4 Aparentemente, ele continuou tendo limitado acesso ao Céu.15 Traços distorcidos do primeiro conflito têm sido preservados na mitologia do antigo Oriente Próximo, que descreve uma batalha cósmica entre os deuses.
Então, há a narrativa a respeito da serpente e a mulher (Gên. 3). A serpente é descrita como o “mais sagaz de todos os animais selváticos que o Senhor Deus tinha feito” (Gên. 3:1). O texto implica que era uma das criaturas de Deus. Enquanto a narrativa progride, torna-se óbvio que por trás dela existe um poder antagônico, alguém que guerreia contra Deus. Contradiz os enunciados de Deus, atribui a Deus maus intentos, e induz a mulher à rebelião. Em virtude de que as serpentes “são comumente associadas com deidades seletas, demônios, magia e encantamentos, no Oriente Próximo”,16 é muito claro que, sob o símbolo da serpente, Gênesis 3 descreve um poder demoníaco.17 Esse ser maligno não pertence ao reino animal; pode falar e raciocinar. Nesse sentido, está bem próximo do nível humano. Todavia é mais que humano, pois alega ter um conheci-mento não disponível aos humanos, e é aqui que o elemento demoníaco se revela.
Esse arquiinimigo de Deus é conhecido no culto hebreu como Azazel. Quando o ritual do bode emissário é colocado no contexto do antigo Oriente Próximo, torna-se claro que se trata de um rito de eliminação no qual pecado e impureza retornam à sua fonte e origem.18 O ritual ensina que Israel acreditava haver um ser demoníaco diretamente responsável por qual-quer coisa que rompe um relacionamento apropriado com Deus. É verdade que Deus assumiu a responsabilidade pela pecaminosidade do transgressor arrependido, mas Ele não é o originador do pecado. Durante o Dia da Expiação, o verdadeiro réu era identificado: o ser demoníaco Azazel. Aqui, novamente, o Senhor revela-Se como o único que tem poder para destruir as obras e para superar a autoridade dos poderes maus (I João 3:8).
Implicações
O Velho Testamento testifica da existência de um ser demoníaco em conflito com Deus e Seu povo. Esse arquiinimigo de Deus está presente em narrativas, cânticos e discursos proféticos.
Ao lado disso, a evidência bíblica sugere que esse poder maligno resultou da corrupção de um ser celestial. Embora fosse criado perfeito, de uma forma misteriosa o pecado foi encontrado nele. O uso do plural em algumas passagens que se referem aos poderes malignos, sugere que mais que um ser celestial foi corrompido e entrou em conflito com Deus. Tais seres es-tão associados com idolatria e identificados com deuses pagãos, implicando que por trás do poder desses deuses estão as forças demoníacas.
Os pastores que se defrontam com manifestações demoníacas devem lembrar, primeiramente, que esses poderes não podem agir em completa independência de Deus. Ele pode usá-los. Mas Ele também é capaz de restringir esses poderes, protegendo o Seu povo e libertando-o da sua opressão. Aqueles que têm sido vítimas do poder do mal devem ser conduzidos ao refúgio que pode ser encontrado no Senhor e em Sua comunhão. Em segundo lugar, com pouquíssimas evidências de exorcismo no Velho Testamento, alguém pode concluir que um ministério ligado ao exorcismo carece de fundamento bíblico. Em terceiro lugar, nos lugares onde costumeiramente são levadas oferendas ao espíritos dos mortos, o pastor deve apontar nosso Criador e Redentor como o único poder espiritual ao qual devemos nos submeter. Qualquer outra força espiritual que reivindique nossa fidelidade ou nosso serviço é de origem demoníaca.
Finalmente, enquanto ministram ao rebanho, os pastores deveriam realçar que Deus deseja que pensemos mais sobre Seu poder e soberania do que sobre as forças destrutivas do mal. Essa até pode ser a mensagem subliminar comunicada pelo Velho Testamento, ao dar pouca ênfase à demonologia. Há muita segurança para nós em nosso relacionamento com o Senhor, e, em virtude disso, mesmo quando o mal tenta nos atingir, podemos contar com a proteção do toque de Deus.
Os crentes estão sob o constante cuidado do Senhor, mesmo que andem “pelo vale da sombra da morte” (Sal. 23:4). A respeito do nosso Salvador é dito: “A seguir, foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo.” (Mat. 4:1). Seu encontro com o inimigo foi planejado e controlado pelo Senhor. Na verdade, talvez a mais clara mensagem do Velho Testamento nesse contexto seja que nós não somos fantoches cósmicos que podem ser manipulados por um assaltante demoníaco, mas filhos de um Deus amoroso que, no tempo oportuno, extinguirá as forças malignas do Universo.
Referências:
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- 6. Koehler, Baumgartner e Stamm, Op. Cit., pág. 529.
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