Freqüentemente, grandes ou pequenas ofensas instalam conflitos nas relações humanas, mesmo entre cristãos. Verifica-se então uma escalada de hostilidades, ressentimentos, reivindicações, que espalham dissabor entre a comunidade envolvida. E a reconciliação aparece como a fórmula mais adequada para dirimir as disputas e promover a saúde dos relacionamentos.
Fomos chamados a agir co-mo ministros da reconciliação, segundo o pensamento do apóstolo Paulo (II Cor. 5:18-20). E o exercício dessa responsabilidade ministerial requer o conhecimento de estratégias e técnicas, que, lado a lado com a prática da oração, utilizadas e direcionadas pelo Espírito Santo, contribuirão para que as arestas sejam aparadas e a boa qualidade do relacionamento fraternal seja restaurada.
Para falar sobre esse assunto, Ministério entrevistou o Dr. Mario Pereyra, doutor em Psicologia, psicólogo clínico, diretor da Faculdade de Psicologia da Universidade Adventista del Plata, na Argentina, e um dos diretores do Departamento de Saúde Mental do Hospital Adventista del Plata. O Dr. Pereyra é também escritor dos livros Psicologia do Perdão, Estratégias e Técnicas da Reconciliação, Psicologia da Esperança e Correntes Psicológicas Contemporâneas.
A seguinte entrevista foi concedida durante a I Jornada Brasileira de Psicologia do Aconselhamento Cristão, realizada em janeiro, no IAE, campus de Santo Amaro.
Ministério: A existência de conflitos entre os membros de uma igreja é normal, ou é falta de conversão?
Dr. Mário: O conflito é algo inerente à natureza humana. Estamos envolvidos
Dr. Mario Pereyra
no grande conflito dos séculos, onde as forças do bem e do mal estão sempre presentes. Agora, em Psicologia, falamos de funcionabilidade ou disfuncionabiIidade. Isso seria o mais patológico do enfermo, quando o nível dos conflitos chega a um grau que incapacita a pessoa ou promove determinadas ações e condutas que são inadequadas, pela rigidez característica. Isso tanto no âmbito pessoal, familiar, como também na igreja e na sociedade. De modo que é normal haver conflitos, tensões e dificuldades. O cor-reto é que se procure superá-los, crescer e amadurecer em meio a eles, para que se viva a plenitude de vida.
Ministério: Em que áreas de relacionamento os conflitos são mais freqüentes: pais e filhos, esposo e esposa, ou entre os membros?
Dr. Mario: Todas essas áreas têm sua vulnerabilidade ou graus mais perigosos, em determinados momentos. Na relação entre pais e filhos, há etapas onde há mais possibilidades de que a vida seja mais harmoniosa; especialmente quando os filhos são pequenos, há uma relação de maior reciprocidade. Porém, à medida que vão crescendo, as tensões e o jogo de oposições cada vez se tornam mais difíceis. Acho que a fase mais difícil do relacionamento pais-filhos é a adolescência. Aí os conflitos se tornam mais agudos. Eu creio que a educação cristã é um dos meios mais notáveis de elaborar os conflitos, sobretudo na adolescência. Na relação matrimonial, os períodos de namoro, noivado e os primeiros anos do casamento são os de maior harmonia, e edificantes para a relação. Mas também há etapas desse relacionamento que são mais difíceis, onde os conflitos crescem e há maior perigo de dissolução, desintegração do vínculo. Depois de certo tempo, parece que o amor esfria e entra-se numa rotina. Porém, à medida que se supera essa crise, a relação fica mais firme, mais forte. Entre ir-mãos da igreja também há possibilidade de conflitos. Mas eu tenho observado que há comunidades onde eles são verificados em menor grau. São justamente as igrejas que mais trabalham, que formam uma equipe envolvida na ação missionária. Há, no entanto, igrejas mais antigas, onde certos grupos exercem domínio, causando conflitos e dividindo-as. Por isso mesmo, estacionam, dificultando o trabalho do pastor, uma vez que ele tem de se envolver com muitos problemas internos.
Ministério: A seu ver. quão abrangente é o trabalho do pastor como “ministro da reconciliação?”
Dr. Mario: O significado desse conceito é muito amplo, porque abarca a relação vertical do homem com Deus, através de Cristo; de modo que há toda uma teologia – a doutrina da salvação, a justificação e a santificação – envolvida nesse fato. A amplitude é ilimitada. Essa reconciliação também tem sua direção horizontal, faz parte das relações humanas: pais e filhos, cônjuges, amigos, comunidade, etc. E nesses níveis e áreas tão distintos, também existem dificuldades a enfrentar. Há ainda a reconciliação do indivíduo consigo mesmo, não apenas nos planos vertical e horinzontal, mas no plano da profundidade, da alma, onde também existem conflitos internos, como consciência culposa, atitudes de autodefesa, autojustificação, fuga da responsabilidade pelos próprios atos; enfim, situações que se agravadas produzirão fragmentação de pensamento, levando a transtornos emocionais e mentais.
Ministério: Em vista das muitas atividades que o pastor precisa executar, em que lugar de prioridade o senhor coloca o exercício desse tipo de ministério?
Dr. Mario: Bem, eu sou um psicólogo e certamente posso ser considerado suspeito para enfatizar o valor desse trabalho inter-relacional. Não sei como posso fazer uma caracterização, mas creio ser funda-mental que o pastor esteja em contato contínuo com as pessoas, quer seja numa visita pastoral, ou em pequenos grupos, ou reunindo toda a congregação, e até infiltrando-se na comunidade. Ele precisa ter habilidade, conhecimento e instrumentos conceituais e práticos para saber como intervir e o que fazer em cada circunstância.
Tenho a preocupação de que o currículo do curso teológico dê mais ênfase às matérias que contribuam para que o pastor seja um conselheiro mais eficiente.
Ministério: Às vezes, duas partes es-tão em conflito, e o conselheiro propõe que as duas se reúnam, orem e dêem o assunto por resolvido. Isso é tudo?
O princípio de reconciliação exposto em Mateus 18 é a psicologia prática. Ali, há muita sabedoria.
Dr. Mario: Eu creio que a oração nunca é algo simplista. Ela é a expressão de nossa impotência para resolver algo supostamente insolúvel. E creio que, em última instância, é Deus quem soluciona todo problema. Senti-Lo, ter a experiência de Sua presença e do Espírito Santo, intervindo no processo da resolução de conflitos, é muito importante. Mas a oração deve ser acompanhada de ação. E nesse sentido, creio que devemos ter recursos para avaliar a situação, fazer um bom diagnóstico do caso, a fim de saber em que etapa o pro-cesso se encontra, se é conveniente ou não atuar de forma direta e pessoal, fazer algum apelo, se é oportuno aproximar as partes envolvidas tendo em vista uma negociação. As vezes é conveniente trabalhar em forma individual, outras vezes as partes podem estar juntas, para que sejam asseguradas as conquistas obtidas. Então é importante ter habilidades e conheci-mento sobre como fazer as intervenções. Na medicina, fala-se de medicina preventiva assistencial e de reabilitação. Ter conhecimento sobre como agir em cada uma dessas etapas, no caso de conflitos interpessoais, é importante para o pastor.
Ministério: Existem técnicas ou métodos especiais de abordagem para a reconciliação?
Dr. Mario: Sim, há muitos métodos. Alguns são essencialmente psicológicos, como interrogação, esclarecimento, que ajudam a clarear as coisas; redefinição, que oferece outras idéias possíveis acerca do problema. As vezes, a pessoa sob tensão não percebe outras possibilidades e alternativas. Há métodos de desafiar, estimular, e também de repreender. João Batista, por exemplo, repreendia muito duramente o povo impenitente dos seus dias. E note que ele trabalhava com militares, cobradores de impostos, políticos corruptos, como Herodes; porém, com outras personalidades mais débeis, é preciso usar outros métodos. Assim que o método é adaptável à personalidade. Jesus Cristo, por sua vez, tratou a mulher pecadora com muita doçura e ternura. Em nenhum momento a recriminou. Ela era uma mulher frágil. Se houvesse usado o método de João Batista, talvez a tivesse destruído. Há uma gama muito ampla de métodos a serem usados conforme os casos e as circunstâncias.
Ministério: O senhor falou em etapas de um conflito. Quais são elas, e como o pastor deveria agir em cada caso?
Dr. Mario: Numa etapa de prevenção e promoção da saúde mental, social e espiritual, convém que o pastor fale sobre esse assunto em seus sermões, ou organize seminários com a participação de especialistas, cursos sobre como resolver esse tipo de problemas, de enriquecimento da comunicação interpessoal e familiar. Isso impede que os ouvintes identifiquem as áreas de conflito porventura existentes entre eles e se previnam contra a sua explosão. Entretanto, quando o problema surge, embora seja uma etapa mais difícil, é importante intervir. Quando as emoções são muito fortes, a sugestão é trabalhar com cada uma das partes separadamente, promovendo uma catarse dessas emoções. Os envolvidos devem ser levados a focalizar sobre os benefícios da relação, não apenas no que ela trouxe de ruim. A partir daí, deve-se incentivar a confissão de erros cometidos, o arrependimento, o perdão, a eliminação do ressentimento. Às vezes, a situação deságua num rompimento. Nesses casos, tem lugar a medicina de reabilitação, de forma que o passado não se constitua eternamente uma ferida que impeça novas iniciativas. A vida deve continuar em qualquer situação.
Ministério: Há um momento em que o ministro deve se dar por vencido, admitindo a impossibilidade da reconciliação, ou ela tem que ser conseguida?
Dr. Mário: Em última instância, são as partes envolvidas no conflito que de-vem tomar a decisão de uma reconciliação. Elas estão diante de uma encruzilha-da – separação ou rompimento – e o pastor é um conselheiro e orientador. O que se busca é uma tomada de decisão consciente, que não seja movida pelos impulsos e pelo calor das emoções. Se, final-mente, não desejam a reconciliação, o pastor deve estar tranqüilo de que fez a sua parte. Caso o problema tenha acontecido entre cônjuges, eles podem se com-portar civilizadamente, tratando-se com respeito, sem raíz de amargura que afete outras pessoas.
Ministério: Perdão e reconciliação são a mesma coisa?
Dr. Mario: Às vezes são tidos como uma só coisa. Eu creio que, às vezes, os termos podem inter-cambiar-se. Mas penso que o perdão está mais no âmbito da alma, no interior da pessoa; o termo usado é intrapsíquico. Porque o perdão me tranqüiliza. Ainda que o outro não entenda o meu perdão, nem mesmo o aceite, se eu posso perdoá-lo, vou me sentir bem, vou ter paz interior. A reconciliação está mais no campo dos vínculos, das relações interpessoais. É voltar a conciliar a relação; está mais no campo social.
Ministério: Mas seria aceitável o perdão sem reconciliação?
Dr. Mario: Às vezes isso acontece. A pessoa cede no ódio, rancor ou na raiva que tem em relação à outra, perdoa e se sente bem, mas não está disposta a continuar o relacionamento. Às vezes há perdão e reconciliação, que é o ideal. E também pode acontecer o inverso; reconciliação sem uma expressão clara de perdão, ainda que ele pareça implícito. As pessoas apenas propõem que se esqueça o passado e vão em frente.
Ministério: Em casos de infidelidade conjugal, às vezes, a vítima não consegue perdoar e, evidentemente, não se mostra disposta a reconciliar. Até onde o pastor deve insistir?
Dr. Mario: É preciso ter uma estratégia direcionada para que a pessoa possa elaborar esse tipo de frustração e perda, talvez, tão doloroso quanto o luto. É preciso fazer ver que a parte culpada tem o perdão de Deus, caso se arrependa sinceramente, e também precisa do perdão do cônjuge ofendido. Às vezes é necessário tempo, pois nem todas as pessoas processam essas experiências traumáticas tão duras da mesma forma. Alguns necessitam de mais tempo para que as feridas sejam cicatrizadas, e, quem sabe, por aí seja conseguida a reconciliação.
Ministério: Aliás, a questão do tempo para a reconciliação não é exclusividade de um conflito conjugal dessa natureza. Em outros tipos de conflito, nem sempre a vítima está disposta a perdoar e reconciliar-se imediatamente.
É preciso encarnar a Palavra, de maneira que o povo saiba e sinta como ela funciona, de fato, no dia-a-dia.
Dr. Mario: Sim. Uns processam essas experiências mais rapidamente do que outros. Demasiada rapidez, nesses casos, também preocupa um pouco. Quem sabe, pode ser fruto do impulso, uma atitude que não foi bem pensada. Com certa freqüência, as pessoas voltam atrás de uma decisão tão rapidamente quanto a tomaram. Isso é uma questão que deve ser aprofundada, para que a pessoa esteja certa do que vai assumir realmente. Há muitas manifestações falsas de perdão e de reconciliação.
Ministério: Às vezes, um membro da igreja ofende o pastor. Ele é um líder, um guia espiritual, mas também tem sentimentos. O que o senhor aconselharia?
Dr. Mario: Sim, o pastor também é uma pessoa humana, sendo sujeito (e objeto) a esses casos. Ele deve ter a coragem e humildade cristã para administrar o assunto pessoalmente. Ou pode depender de uma terceira pessoa, neutra, para ajudá-lo e à outra parte. Não é uma situação muito fácil, porque realmente existe uma relação assimétrica entre o pastor e a igreja, mas não é um problema insolúvel. O princípio exposto em Mateus 18 é psicologia prática; ali há muita sabedoria. Primeiro, as duas partes conflituosas devem tentar resolver o problema entre si. Se isso falhar, deve-se buscar outros reconciliadores. Caso também isso não represente sucesso, então a comunidade deve tratar o problema e pôr um limite à situação, porque também nas relações pessoais as questões pendentes fazem mal à saúde mental do indivíduo e da comunidade. É preciso acabar com o problema e tocar a vida.
Ministério: Algumas pessoas acham que o processo de disciplina eclesiástica humilha o transgressor, ao expor o seu erro, dificultando assim a reconciliação com a comunidade. O que o senhor acha disso?
Dr. Mario: Esta é a terceira instância, segundo Mateus 18. Antes dela, houve a instância interpessoal e a tentativa de reconciliação com mediadores. Esta é uma instância que eu chamaria de jurídica, quando é preciso tomar uma decisão, depois que as instâncias anteriores não tiveram êxito. Evidentemente, a disciplina é dolorosa, um caminho difícil de ser seguido. Há pessoas que a aceitam, e outras que não a aceitam e ficam revoltadas, vendo nisso um motivo para deserção. Pelo menos, o pastor deve estar seguro de que foram dados todos os passos anteriores, com muita prudência e, sobretudo, muito amor. E não esquecer de que a disciplina é um ato de amor e tem como objetivo salvar.
Ministério: Se o senhor tivesse somente uma chance de aconselhar um pastor, o que lhe diria?
Dr. Mario: Acredito que o pastor está exercendo constantemente seu ministério de reconciliação; afinal, é o pressuposto bíblico. Então que continue pregando, aconselhando, confortando, animando, partilhando a alegria da salvação. Que leve em conta os aspectos pessoais, práticos, do dia-a-dia dos membros de suas congregações. As pessoas vão à igreja com seus problemas e angústias, e muitas vezes ouvem uma mensagem profundamente teológica, postulados doutrinários, promoções; tudo isso é correto. Mas nem sempre atende às necessidades vitais de cada um. É preciso encarnar a Palavra, de maneira que o povo saiba e sinta como ela funciona, de fato, no cotidiano. E os benefícios que podem tirar disso para a solução de seus problemas. É um privilégio ser ministro de reconciliação. E também uma grande responsabilidade. Mas Deus pode e deseja ajudar cada pastor a cumprir essa tarefa.