A carta que o anjo da igreja de Pérgamo recebeu fala a respeito de uma espada. Não se trata de uma espada qualquer, mas de uma arma que, além de ser pontiaguda como as demais, é dotada de dois fios, significando que tem condições de cortar de ambos os lados. “Ao anjo da igreja em Pérgamo escreve: Estas coisas diz Aquele que tem a espada afiada de dois gumes”, ordenou Jesus que João informasse.
Uma vez que já sabemos que a maneira de Jesus Se apresentar a cada igreja tem relação com o problema que ela está enfrentando, poderemos desejar saber que espécie de problema estava enfrentando a igreja de Pérgamo. O que estaria ocorrendo com aquela comunidade, para que Jesus a ela Se dirigisse usando a figura de uma arma de guerra dotada de poder tão destruidor, pelo menos naquela ocasião?
A leitura da carta justifica a espécie de linguagem utilizada por Cristo. Ao abrir a carta que lhe foi endereçada, aquela igreja deve logo ter associado as palavras nela contidas à sua história, tanto contemporânea quanto antiga. Com respeito à história contemporânea, Roy A. Anderson informa que a cidade “foi elevada a capital da província da Ásia, quando Átalo III, último rei da dinastia atálida, deixou o seu reino para Roma em 133 a.C. Os procônsules que aí reinaram foram investidos com um símbolo de autoridade representado numa grande espada de dois gumes. A suprema corte da província também estava aí localizada” (Revelações do Apocalipse, pág. 34). Do ponto de vista da história recente de Pérgamo, portanto, as palavras que Jesus usou eram bastante familiares.
Mas talvez houvesse outro motivo para que Jesus tivesse iniciado a carta falando de espada. Esse motivo era mais moabita do que romano. Na reprovação feita à igreja, Jesus condena duas doutrinas que estavam sendo seguidas, uma das quais bem conhecida dos israelitas. Recebeu ela o nome de “doutrina de Balaão”, pelo fato de assumir aspectos semelhantes aos que foram seguidos por aquele ambicioso profeta. Com respeito à outra filosofia, embora menos conhecida dos hebreus do tempo de Moisés, ou mesmo completamente estranha para eles, era bastante perigosa para os cristãos do tempo de João. Dela escreveu W. M. Ramsay: “É altamente provável que os nicolaítas tivessem já chegado, ou chegariam em breve, à conclusão de que podiam justificadamente fazer face aos correntes testes de lealdade e queimar um pouco de insenso em honra do imperador … Seus ensinamentos eram seculares, sensuais, diabólicos.” (Idem, pág. 37).
Com referência à doutrina de Balaão, o texto bíblico explica que se tratava de uma doutrina segundo a qual este personagem bíblico “ensinava Balaque a armar ciladas diante dos filhos de Israel, para comerem coisas sacrificadas aos ídolos e praticarem a prostituição” (Apoc. 2:14). É uma referência àquilo que se encontra registrado no livro de Números 25:2, o que levou Deus a tomar enérgicas providências contra os desobedientes.
A história de Balaão ocupa vários capítulos do livro de Números, como também alguns versos espalhados pelas Escrituras. É uma bela história de como Deus cuidou do Seu povo no passado, nela existindo até profecias a respeito de Jesus. De modo especial, desperta a atenção do leitor a descrição dos sete altares que foram edificados com o propósito de fazer com que Deus mudasse de idéia com relação aos israelitas.
Mas, com certeza, tem significado especial a conversa de Balaão com a sua jumenta, enquanto viajava para encontrar-se com o rei dos moabitas. Estamos lembrados de que, ao receber “permissão” para ir com os mensageiros de Balaque, Balaão montou em sua jumenta e partiu. Logo depois, o animal começou a desviar-se do caminho e a tomar outras atitudes, as quais provocaram a ira de Balaão. Tudo ficou esclarecido, no momento em que o recalcitrante profeta ficou sabendo que um anjo estava com uma espada em punho, pronta para tirar-lhe a vida.
Os seguidores da “doutrina de Balaão”, que faziam parte da igreja de Pérgamo, certamente se recordavam desse acontecimento; e não tardaram a estabelecer ligações entre a espada a que Jesus Se referiu, e aquele que deixou estarrecido o profeta. O apelo para que se arrependessem não era mais cordial do que o consentimento dado a Balaão para prosseguir: “Arrepende-te; e se não, venho a ti sem demora, e contra eles pelejarei com a espada da minha boca.” (Apoc. 2:16).
Ao que parece, Balaão entendia bem a linguagem da espada. Talvez por isso, Deus enviou um anjo armado com um instrumento desse tipo. Momentos antes de ser ameaçado pelo mensageiro celeste, Balaão desejou ter na mão uma espada, pois assim poria fim à vida do seu animal. “Tivera eu uma espada na mão e, agora, te mataria” (Núm. 22:29), ameaçou ele a sua jumenta.
Assim, a espada que Balaão desejou ter e que não teve, e a que não esperava ver e viu na mão do anjo, formavam um pano de fundo que os membros da igreja de Pérgamo não tardaram a decifrar. Jesus estava falando de um assunto conhecido, quando lhes falou de Balaão e de espada.
Poderá ter-lhes, contudo, causado alguma estranheza o fato de a espada de que Jesus lhes falava ter dois gumes. Jesus, porém, precisava fazer uso dessa figura; pois, enquanto no caso de Balaão, uma espada comum resolveu o problema daquele vidente, ou seja, a “doutrina de Balaão” foi enfrentada com uma só espada, no caso de Pérgamo a espada precisava ter dois gumes; pois havia duas doutrinas: a “doutrina de Balaão” e a “doutrina dos nicolaítas”. Jesus lhes falou dessa espada.
Dois gumes
Podemos encontrar, na carta enviada a Pérgamo, uma sugestão sobre a maneira como Jesus Se comporta e como haverá de comportar-Se no futuro, com relação às falsas doutrinas, ou às doutrinas que têm em vista levar as pessoas a se afastarem de Deus. Todas as vezes que Cristo usa o símbolo de uma espada, ao entrar em choque com as forças do mal, essa espada sai-Lhe da boca, e corta de ambos os lados. Em Apocalipse 19:15, onde se fala do desfecho final da disputa entre a verdade e o erro, encontramos de novo Jesus usando essa “aguda espada”, para desbaratar as forças do mal. “Sai da Sua boca uma espada afiada para com ela ferir as nações”, diz a primeira parte do verso.
Pelo fato de nos conflitos travados por Cristo contra os Seus inimigos, aparecerem termos que sugerem derramamento de sangue, poderá parecer que a espada que ele usa seja literal. Na realidade, porém, trata-se de uma espada simbólica. Em muitas ocasiões, as Escrituras usam essa figura para designar a Palavra de Deus, como acontece em Efés. 6:17, onde lemos: “Tomai também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus.” Com certeza, um dos textos que mais claramente falam dessa comparação da espada com a palavra é Hebreus 4:12. Nele, o autor considera a Palavra de Deus como mais “penetrante do que espada alguma de dois gumes”. Naturalmente, em se tratando de espada literal, esta não pode atingir “juntas e medulas”; e, menos ainda, “alma e espírito”. A Palavra de Deus, porém, consegue discernir até “pensamentos e intenções do coração”.
A promessa que Jesus faz à igreja de Pérgamo, de batalhar contra as doutrinas por ela seguidas, usando uma espada que Lhe sai da boca, mostra que o conflito é de natureza verbal. Doutrina é algo que demanda a elaboração de alguma tese. Há certos postulados defendidos pelos seguidores de uma doutrina. Ela poderá até receber a proteção do poder temporal. Suas teorias, porém, ainda que às vezes descabidas, são inculcadas através de palavras. E, se o problema é de palavras, a Palavra de Deus – a espada de dois gumes – penetra mais fundo. Ela pode destruir, se o pecador for relutante; mas pode, principalmente, dar vida; pois remove da alma o que está em oposição à vontade de Deus.
Maná, pedra e novo nome
A julgar pelo significado do seu nome -“elevação” – Pérgamo devia estar preocupada com sua posição social. Devia existir, entre os membros da igreja, aqueles que estavam sendo fascinados por coisas materiais que chamassem a atenção das pessoas. Ou pode ser também que estivesse havendo certa relação entre a doutrina de Balaão e o lugar no qual esse profeta se esforçou para “render culto” a Deus. Os altares construídos por Balaão, a pedido de Balaque, ocuparam os “altos de Baal” (Núm. 22:41). Havia uma preocupação em ocupar lugares elevados, os quais serviam de santuário ao deus dos moabitas.
A mensagem ao vencedor da igreja de Pérgamo tinha um propósito totalmente oposto, a saber, mostrar que Deus “escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes”. Por isso, enquanto a doutrina de Balaão “ensinava Balaque a lançar tropeços diante dos filhos de Israel, para que comessem dos sacrifícios da idolastria”, sacrifícios que, certamente, distinguiam-se pela exuberância, Jesus fala em dar aos vitoriosos de Pérgamo o “maná escondido” (Apoc. 2:17).
O qualificativo “escondido”, aqui ligado à palavra maná, parece não ter apenas o propósito de lembrar a ordem dada por Moisés, para que fosse preservado um pouco daquela substância (Êxo. 16:33), mas a finalidade de falar de alguma coisa que não aparece muito. O maná, um alimento simples, embora o melhor para a ocasião, recebe uma qualidade que o ajuda a tornar-se mais singelo ainda: embora sem perder o seu significado. Em contraposição aos propalados sacrifícios feitos a Baal, temos a promessa do maná escondido.
Da mesma forma que o “maná escondido”, a contemplação do vencedor com uma pedra branca e um nome que ninguém conhece, parece estar em oposição aos sentimentos de grandeza de alguns membros da igreja de Pérgamo. Em geral, só conferimos verdadeiro valor às coisas ao conhecermos o significado destas. De acordo com a perspectiva divina, essas três coisas são grandemente valiosas. Poderão, entretanto, ser destituídas de valor, para quem delas esteve sempre distante. O membro da igreja de Pérgamo precisava ser vitorioso, a fim de que fosse capaz de valorizar coisas que para eles não tinham sentido antes. Era preciso deixar de “comer os sacrifícios da idolatria”, e “comer do maná escondido”.
Merece uma palavra de consideração, pelo fato de estar em íntima ligação com o espírito da igreja de Pérgamo, a expressão “trono de Satanás” (Apoc. 2:13). Como estamos procurando mostrar, havia naquela igreja uma preocupação com grandeza, com coisas que chamassem a atenção. Preocupar-se com coisas elevadas não é pecado, mas passa a ser um erro quando tem a finalidade de promover-nos, de exaltar a nós mesmos. Quando o coração se exalta, torna-se um trono no qual Satanás se assenta confortavelmente.
O profeta Isaías descreveu de maneira muito clara o desejo de Satanás, de estabelecer o seu trono: “Tu dizias no teu coração: Eu subirei ao Céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono.” (Isa. 14:13). O coração de Satanás, indica o profeta, estava atraído por um trono e este deveria estar numa posição o mais elevada possível. Havia o desejo de exaltação. E, certamente, devia ser este o sentimento de alguns membros da igreja de Pérgamo. Curiosamente, eles conservavam o nome de Cristo e não negavam a fé nEle, a ponto de haver quem estivesse disposto, entre eles, a morrer por Cristo (Apoc. 2:13); contudo, Satanás ali habitava.
É interessante lembrar que, atitudes semelhantes foram também reveladas por Lúcifer no Céu. Pelo visto, não estava descontente com o lugar no qual se encontrava, pois fazia planos para ali continuar. Queria até mesmo entronizar-se acima das estrelas de Deus. Era a posição, que julgava inferior, que lhe causava desconforto. Ellen White escreveu com relação a ele: “Pouco a pouco Lúcifer veio a condescender com o desejo de exaltação própria… Não contente com sua posição, embora fosse mais honrado do que a hoste celestial, arriscou-se a cobiçar a homenagem devida unicamente ao Criador. Em vez de procurar fazer com que Deus fosse o alvo supremo das afeições e fidelidade de todos os seres criados, consistiu o seu esforço em obter para si o serviço e lealdade deles.” (Patriarcas e Profetas, pág. 35).
Na verdade, Lúcifer não precisaria ir até às “estrelas de Deus”, para aí estabelecer o seu trono; pois este já estava estabelecido no seu interior. O descontente não precisa ir muito longe em busca de satisfação dos seus interesses, visto que estes moram com ele; e o fazem sempre infeliz, quando não são atendidos.