A encíclica Spe Salvi, do papa Bento XVI, vista sob uma perspectiva adventista do sétimo dia 

No dia 30 de novembro do ano passado, o papa Bento XVI promulgou a segunda encíclica de seu pontificado. Intitulada Spe Salvi1, a carta apostólica versa sobre a esperança cristã e seus efeitos na vida da comunidade da fé, em face de um mundo alienado de Deus. Os adventistas têm acompanhado as declarações papais na expectativa de que o quadro profético em que crêem (Ap 13) continue a se cumprir. Nesse sentido, a mais comentada encíclica foi a Dies Dominis, na qual o papa João Paulo II argumentava no sentido fortalecer a observância do domingo. 

Entre a Dies Dominis, datada de 31/05/1998, e a Spe Salvi, o cenário católico mudou. João Paulo II morreu e foi substituído pelo cardeal Joseph Ratzinger, que escolheu ser chamado Bento XVI. Embora sem o carisma de seu antecessor, Bento XVI logo tratou de impor sua versão tradicionalista do catolicismo, tanto em seus pronunciamentos como por seus escritos. Enquanto na Dies Dominis João Paulo II escreveu imitando o tom carinhoso do apóstolo João, Bento XVI disserta como teólogo. 

Apesar de ganhar notoriedade em boa parte da mídia como um ataque ao secula-rismo e ao ateísmo, Spe Salvi focaliza suas considerações no viver cristão. Bento XVI analisa diversos textos bíblicos, principalmente escritos por Paulo, a respeito da natureza, do significado e propósito da esperança que Cristo nos trouxe. “Na esperança, fomos salvos” (Rm 8:24), eis o texto introdutório do papa. 

Uma visão geral sobre a nova encíclica pode sugerir o exercício de uma teologia mais bíblica por parte do pontífice católico. Outro detalhe que salta aos olhos é a valorização de mártires de países sem maciça presença católica, com a provável intenção de fortalecer o catolicismo nesses territórios. Ratzinger cita a freira africana Josefina Bakhita (canonizada por João Paulo II) e Le-Bao Thin, mártir vietnamita. 

Com uma retórica temperada, entre a erudição e o apelo devocional, Bento XVI discorre sobre pontos comuns aos cristãos, conduzindo seu tema até introduzir posicionamentos e dogmas católicos. 

Afetando o presente

Em sua dissertação, Ratzinger aponta para seu propósito: os cristãos sabem que “sua vida não acaba no vazio”. Enquanto o “racionalismo filosófico relegou os deuses para o campo do irreal”, o cristão tem a convicção de que “não são os elementos do cosmo, as leis da matéria que, no fim das contas, governam o mundo e o homem, mas é um Deus pessoal que governa as estrelas, ou seja, o Universo”. 

A ciência, elemento poderoso e influente da modernidade, “pode contribuir muito para a humanização do mundo e dos povos”. Contudo, tem potencial destrutivo, “se não for orientada por forças que se encontram fora dela”. Ela não oferece soluções ao anseio da humanidade por redenção, coisa que só o amor é capaz de realizar. 

Para o pontífice, a fé nos concede “agora algo da realidade esperada, e esta realidade presente constitui para nós uma ‘prova’ das coisas que se não vêem”. A substância das coisas futuras fica ainda mais confirmada por intermédio de Cristo. Por isso, o “evangelho não é apenas uma comunicação de realidades que se podem saber, mas uma comunicação que gera fatos e muda a vida”.2 

O apóstolo Pedro nos conclama ao empenho para sermos achados em paz, sem culpa ou mancha, uma vez que estamos vivendo no contexto em que o Juízo começou “pela casa de Deus” e tendo em vista que esperamos “novos céus e nova Terra” (2Pd 3:13, 14; 1Pd 4:17). Assim, faz sentido que Bento XVI afirme: “A imagem do Juízo final não é primariamente uma imagem aterradora, mas de esperança […] é uma imagem que apela à responsabilidade.”3 É inevitável aceitar que nossa esperança afeta o presente, a forma como vivemos, nossas atitudes, opiniões, critérios de julgamento e relacionamentos. 

Mas, existem outras considerações questionáveis, feitas por Bento XVI, principalmente quando ele aborda a esperança da vida eterna. 

Eternidade dinâmica

O papa menciona que a morte não é desejável, mas nos acomodamos a ela. Para ele, o aspecto positivo da morte é pôr um termo na vida que, caso se prolongasse indefinidamente, seria algo “fastidioso e, em última análise, insuportável”. Nem mesmo a Terra te-ria sido “criada com esta perspectiva” de uma vida imortal. A antítese entre a rejeição da eternidade e a luta para prolongar a vida levam o papa a concluir que “não sabemos realmente o que queremos; não conhecemos esta ‘vida verdadeira’; e, no entanto, sabemos que deve existir algo que não conhecemos e para isso nos sentimos impelidos”. Sem considerar o material bíblico sobre o tema, Bento XVI ensaia uma solução filosófica: 

“A única possibilidade que temos é procurar sair, com o pensamento, da temporalidade de que somos prisioneiros e, de alguma forma, conjecturar que a eternidade não seja uma sucessão contínua de dias do calendário, mas algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o instante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe. Podemos somente procurar pensar que este instante é a vida em sentido pleno, um incessante mergulhar na vastidão do ser, ao mesmo tempo que ficamos simplesmente inundados pela alegria.”4 

Por mais tocante que seja o estilo poético, há sérios problemas na definição de vida eterna como “o instante repleto de satisfação”. A qualificação “eterna” diz respeito não só à condição da vida, como também à sua extensão. Se a vida eterna fosse menos que literalmente eterna, teríamos de concordar que não haveria solução para o problema da morte. Ora, se algum resquício do pecado sobrevivesse à concretização do plano redentor, Deus não seria vitorioso no grande conflito. Porém, a promessa é de que “a morte já não existirá” (Ap 21:4). 

A noção de vida eterna endossada por católicos e muitos protestantes é contaminada pelo pensamento grego. Eternidade acaba sendo entendida como tempo estático, do qual não se nota a passagem, ou mesmo como um dia contínuo. Essa concepção, se verdadeira, seria de fato “fastidiosa” e “insuportável”. No entanto, a Bíblia nos informa de quão concreta, ativa e estimulante será a vida eterna (Is 65:21- 23). A eternidade, assim, não é tempo que não passa, mas tempo que não se acaba. Sentiremos o tempo passar, mas continuaremos a aprender, estudar, produzir, criar, a nos relacionarmos e a adorar, crescendo à semelhança do Senhor, sem sermos limitados pelos aspectos negativos do tempo, como a velhice e a morte. 

Outro equívoco da esperança oferecida pela encíclica papal é o do purgatório. Segundo Ratzinger, podemos encontrar referências à “condição intermediária”, na qual “almas não se encontram simplesmente numa espécie de custódia provisória, mas já padecem um castigo”. É o caso de nos perguntarmos quão antigas são as referências judaicas a essa “condição intermediária”. Durante o período intertestamentário, por influência do pensamento grego, já era disseminada entre os judeus a idéia de uma alma imortal, que sofre castigos no outro mundo. Na Spe Salvi, faz-se menção a esse “judaísmo antigo”, citando o livro apócrifo de 2Mac 12:38- 45, do primeiro século a.C. 

Apelando às emoções, o papa descreve um amor que chega “até ao além”, que nos liga uns aos outros “para além das fronteiras da morte”, o que, segundo ele, constitui “uma convicção fundamental do cristianismo através de todos os séculos e ainda hoje permanece uma experiência reconfortante”. 

A certa altura, o papa admite que a doutrina do purgatório “se desenvolveu aos poucos na igreja ocidental”5, o que, se analisado à luz da História, se mostrará mais como resultado da influência do paganismo do que como fruto de reflexão bíblica. A Escritura ensina que a morte é um fim temporário (Ec 3:19, 20; 9:5, 6, 10; Sl 115:17), diante da qual fecham-se as oportunidades, “vindo, depois disto, o Juízo” (Hb 9:27), culminando com a ressurreição dos justos e, mil anos depois, a dos injustos (Dn 12:2; Ap 20:40-6). Faltam dados bíblicos que aludam à existência de um purgatório. 

Embora não tenhamos todos os detalhes relativos à vida na eternidade, não estamos sem luz quanto à volta de Jesus e os acontecimentos futuros (1Ts 5:1-4). Nossa esperança será sólida na medida em que estiver alicerçada na Bíblia e livre de amalgamações com a filosofia humana. Para os adventistas, o estudo das profecias, especialmente as de Daniel e Apocalipse, tem mantido o foco de nossa esperança em Jesus e naquilo que a revelação sobre os últimos acontecimentos descreve. 

Meditação

Para ter acesso à esperança, de acordo com Ratzinger, o cristão tem de ser orientado por “pessoas que souberam viver com retidão”. Então, apresenta Maria como “estrela da esperança”; “mãe da esperança”. A Bíblia, entretanto, mostra Jesus como “autor e consumador da fé”, em quem devemos fixar nossos olhos, durante a corrida espiritual (Hb 12:1, 2). Ele é nosso único Salvador e intercessor junto ao Pai (At 4:12; Ef 1:20, 21; 2:6; Hb 4:14-16; 8:1, 2; 9:15). Portanto, a intercessão dos santos é um obscurecimento da esperança cristã, jamais seu complemento. 

Graças a Deus, nossa esperança não depende da tradição medieval ou da crença nos santos. Ela está fundamentada em Cristo Jesus. Somente estando nutridos por Sua Palavra somos fortalecidos para vencer os desafios impostos pelo mundo pós-modeno. 

Referências: 

1 Ver http://www.zenit.org/article- 

16906?1=portuguese 

2 Bento XVI, Spe Salvi. 

3 Ibidem. 

4 Ibidem. 

5 Ibidem.