Existe alternativa para o modelo ameaçador de liderança praticado por muitas instituições seculares
Depois de aproximadamente um mês e meio no espaço, os sete astronautas da nave espacial Columbia retornaram à atmosfera terrestre e acabaram colidindo com moléculas cada vez mais comprimidas que incendiaram a nave, que estava sob a suspeita de ter algum defeito. Pouco eles sabiam que também estavam mergulhando de cabeça nas conseqüências de uma “cultura organizacional” disfuncional. Resultado: todos eles morreram.
A comissão oficialmente nomeada para investigar o acidente citou o seguinte fator como uma das três questões culturais organizacionais da Nasa que contribuíram para o desastre: “Barreiras organizacionais que impediram a comunicação efetiva de informações críticas sobre segurança e diferenças profissionais de opinião abafadas.”1
O jornalista William Langewiesche, da revista Atlantic Monthly, escreveu que “o temor por causa do trabalho silenciou os engenheiros”.2 A nave Columbia estava em risco. A declaração de Langewiesche e o relatório da comissão de investigação revelam que, em virtude do medo, os engenheiros da Nasa falharam ao não advertir seus supervisores do risco sob o qual suspeitavam estar. Assim, a cultura prevalecente na Nasa impediu os engenheiros responsáveis pelo projeto de questionarem seriamente decisões administrativas. Lamentavelmente, o medo se tomou instrumento de liderança.
O fator medo
A utilização do medo como instrumento motivador certamente não é novidade. Essa prática tem marcado o comportamento organizacional ao longo da História. Embora, evidentemente, disfarçado em trajes mais sofisticados que os métodos despóticos de Josef Stálin, Adolf Hittler e outros, o medo que governou os relacionamentos organizacionais da Nasa carregava o mesmo estigma filosófico básico.
Janet Hagberg3 enumera o temor como o componente primário no mais básico e menos sofisticado modelo de como o poder pessoal pode ser usado em relacionamentos de liderança. É uma opção claramente dependente do grau de poder pessoal disponível a um líder ou estrutura de liderança. A influência equilibrada reside nos valores de relacionamento humano adotados pelo líder. Esses valores são fundamentais no contexto do cristianismo e requerem que consideremos a relevância ética da coerção e do medo em nossas lideranças e estruturas administrativas.
A atitude “faça o que eu digo e ponto” é a base primitiva para todo comportamento baseado no temor, que leva à prática de abuso físico, sexual, político ou emocional. O que nós raramente discutimos é o insidioso temor nas mãos de supervisores, gerentes e chefes com os quais muitos indivíduos convivem diariamente.
Liderança é a descrição de um relacionamento especial que existe entre as pessoas. Embora a palavra seja freqüentemente empregada como descrição de habilidade ou destreza que alguém possui para mover pessoas em busca de um alvo comum, ela é muito mais do que um indivíduo faz. A boa liderança está baseada no correto modelo de relacionamento entre o líder e seus liderados.
Na verdade, nós coexistimos em relacionamentos “coercivos”, como parte regular, e até inevitável, da vida. O indivíduo hierarquicamente superior a mim exerce relacionamento “coerci-vo” para comigo. Um empregado não apenas troca seu tempo e habilidades por salário ou recompensa, mas também concorda em sujeitar-se às estruturas que governam a organização. O lugar ou maneira em que o líder escolhe exercer a prática da coerção definirá se o relacionamento empregatício será saudável ou doentio. Um relacionamento saudável de trabalho requer respeito e apreciação mútuos pelo que cada parte desempenha em função do alvo comum. A presença ou ausência de temor serve como medida da saúde do relacionamento na liderança.
Joseph Rost propõe uma definição de liderança que desautoriza a presença de coerção. Diz ele que “liderança como um relacionamento de influência significa que o comportamento usado para persuadir outras pessoas não deve ser coercivo”.4
Gerenciamento e liderança não são coisas idênticas. Se há relacionamento coercivo, a situação deve ser definida como supervisão ou gerenciamento. Liderança só é possível quando um gerente ou supervisor eleva-se acima do comando e controla a estrutura que formalmente define o relacionamento com os subordinados. Isso é conquistado fora dos parâmetros de gerenciamento, através de laços de relacionamentos que motivam a busca de objetivos comuns.
Liderança cristã
De acordo com o modelo da igreja primitiva, a liderança cristã é isenta de estrutura coerciva para forçar a obediência. O Novo Testamento apresenta Jesus como líder-servo. Ali não encontramos indicação de estrutura coerciva que governasse Seu relacionamento com os discípulos. Eles foram convidados aberta e livremente a segui-Lo, e escolheram fazê-lo. Uma vez que o relacionamento teve início, aqueles discípulos permaneceram com Jesus por escolha própria e foram moldados por Sua influência no transcurso do tempo em que permaneceram juntos.
Embora tivessem recebido autoridade concedida pelo Espírito, aqueles homens foram comissionados a liderar uma organização isenta de estruturas coercivas. As pessoas às quais eles ministravam eram tão livres para abandonar o corpo de Cristo, assim como foram livres para se unir a ele. O elo que os mantinha unidos era o amor pelo Mestre e de uns para com os outros.
Jesus liderou Seus discípulos no contexto de um relacionamento que Ele constantemente procurou fortalecer. Durante Seus últimos dias na Terra, Jesus colocou significativa ênfase no fortalecimento e manutenção do relacionamento amoroso. Unidade mútua e com a Divindade foi a principal preocupação revelada em Sua oração sacerdotal antes da agonia do Getsêmani (João 17). Segundo Suas palavras, o êxito do ministério público dos discípulos dependeria da força e saúde do relacionamento entre eles (João 13:35). Assim, não havia a mínima insinuação de estruturas coercivas internas entre os primeiros cristãos.
A palavra hierarquia pode ser usada para descrever a estrutura organizacional da igreja primitiva, na medida em que anciãos e, posteriormente, diáconos foram designados para servir. Embora Cristo tivesse revolucionado a estrutura tradicional de poder, sugerindo que os primeiros deveriam ser os últimos e os maiorais deveriam servir, Ele não desafiou a ordem organizacional apropriada e necessária. Em vez disso, desafiou a atitude e o comportamento dos líderes nos sistemas hierárquicos tradicionais: em vez de ser servido, servir. Em lugar de receber, dar-se.
O fator amor
O princípio fundamental do Reino coloca o amor a Deus e amor pelo semelhante numa incontestável posição de primazia: “Amarás, pois, o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força…. Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes.” Mar. 12:30 e 31.
As Escrituras Sagradas provêem um claro modelo de liderança baseado em relacionamento amoroso. Sendo isso verdade, devemos considerar sua aplicação às inevitáveis estruturas gerenciais dentro das quais operamos. Em virtude de que o mandamento do amor é uma diretriz claramente relacionai e não está limitado a qualquer segmento particular da vida, devemos assumir que ele tem uma poderosa ligação de impacto sobre aqueles a respeito de quem declaramos ser cristãos. É justo assumir que o impacto de tal experiência deve ser revelado no modo como nos relacionamos com aqueles que estão acima ou abaixo de nós, na estrutura hierárquica organizacional dentro da qual servimos.
Algumas perguntas são oportunas: É possível a uma organização operar em harmonia com a lei do amor e ainda sobreviver em um mundo competitivo, no qual os recursos são limitados, e a eficiência e a produtividade não são opcionais? Se a verdadeira liderança só pode ser exercida na ausência do temor, como um líder pode motivar seus liderados, de modo que todos possam erguer-se acima das estruturas coercivas de gerenciamento e cooperar genuinamente para cumprir a missão da instituição?
Vamos explorar uma solução possível para a questão de exercer apropriada autoridade coerciva. Se um administrador, gerente ou líder estiver comprometido com a primazia da lei do amor, devemos pressupor que ele também esteja, antes e acima de tudo, preocupado com o bem-estar de seus liderados. Conseqüentemente, não pode liderar ignorando as necessidades dos indivíduos sob sua responsabilidade. Esse compromisso estratégico é alimentado por algumas decisões táticas, enumeradas a seguir:
1. Aumentar a competência do lidera-do através de treinamento e supervisão.
2. Fortalecer o senso de confiança do liderado, encorajando-o e treinando-o.
3. Criar um ambiente de trabalho que permita a criatividade e os inevitáveis enganos que a acompanham.
4. Capacitar sistematicamente o liderado, através da manifestação de confiança em seu trabalho e sua pessoa.
5. Refletir atitudes e comportamentos que não residam sobre estruturas coercivas disponíveis no relacionamento formal entre líder e servidor.
6. Demonstrar e comunicar genuína preocupação pelo liderado e sua família.
A pressuposição contida na lei do amor é que a produtividade superior ou mesmo aceitável recomendará o liderado com base em um relacionamento construído sobre o maior de to-dos os mandamentos.
Novo modelo
Durante a última década, o mundo empresarial tem gravitado em torno de um modelo de liderança e gerenciamento que enfatiza a capacitação do indivíduo, enquanto minimiza a separação entre administração e empregado. Muitas notáveis corporações têm descoberto que é possível sobressair-se em negócios enquanto aderem a uma abordagem de gerenciamento e liderança fundamentada no princípio de serviço. Já está mais que adequadamente demonstrado que o modelo industrial de eficiência e utilidade através do medo e exploração de empregados tem uma alternativa positiva no modelo de serviço, encontrado nos ensinamentos de Jesus Cristo.
Robert Greenleaf, consultor da ATY&T, empresa gigante do ramo das telecomunicações, lançou o movimento secular em direção a esse modelo, com seu livro Servant Leadership [Liderança Serviçal], que reflete claramente suas raízes quaquers. Greenleaf ensina que as pessoas são chamadas por Deus para se relacionarem como “amigos” em todos os aspectos da vida. Embora, muitos tenham adotado, desde então, uma motivação direcionada para o lucro, pragmática, e não ideológica, aplicando-a ao modelo de serviço nos negócios e cultura organizacional, a liderança serviçal tem-se provado um modelo eficaz.
O modelo de serviço não depende do poder pessoal do “líder”, mas encontra sua eficácia na força do relacionamento de liderança existente entre as partes envolvidas no processo. Na verdade, liderança é um processo relacionai que resulta na boa vontade para colaborar, verificada entre líderes e liderados. Esse processo – liderar em função do cumprimento de uma tarefa – é entendido sem o uso do tipo de medidas coercivas que tão freqüentemente geram temor e separação entre o líder e seus seguidores.
Por essa razão, é absolutamente fundamental que todos os líderes, e particularmente os cristãos, compreendam o valor indispensável do relacionamento como elemento essencial da liderança efetiva. Embora o medo seja um ingrediente abominável em qualquer ambiente de liderança ou gerenciamento, é mais inaceitável ainda no contexto da liderança cristã. Por seu desígnio e propósito, a liderança cristã está impedida de utilizar qualquer estrutura coerciva baseada no poder pessoal. Pastores e líderes de qualquer segmento da igreja são chamados a liderar totalmente desprovidos desse expediente autoritário.
As vezes, no decorrer da História, a igreja e seus líderes têm sido culpados de criar estruturas coercivas que permitem ao líder mandar em lugar de liderar. Doutrinas específicas já foram concebidas e nascidas a partir da necessidade de manipular o ignorante em direção a comportamentos que se acomodaram a desejos e necessidades institucionais. Quando tentado a lançar mão de meios coercivos, o líder cristão precisa refletir cuidadosamente sobre a liderança modelada por Aquele em virtude de quem é chamado cristão.
O ambiente administrativo da igreja nunca deveria permitir a presença de temor, criado pela coerção doentia. Respeito por toda pessoa, independentemente de sua posição ou função na igreja, é um dever. Cada pessoa é merecedora da dignidade nascida do amor cristão, e todo líder que escolhe sacrificar a dignidade de outro, por qualquer razão alegada, necessita aprender dA-quele que lidera através do amor.
Acaso, tal perfil de liderança enfraquece o processo administrativo ou coloca a organização em risco? Não, pelo contrário. Mesmo uma responsabilidade administrativa tão extrema como é a dispensa de alguém, deve ser regida pela lei do amor, sem exceções. Amor e serviço podem ser efetivamente mantidos mesmo através de tempos, situações e tarefas difíceis.
Os ensinamentos da Palavra de Deus são fiéis e verdadeiros. A primazia da lei do amor é reforçada na primeira epístola de João: “No amor não existe medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo. Ora, o medo produz tormento; logo, aquele que teme não é aperfeiçoado no amor.” I João 4:18.
Ninguém na igreja, seja liderado ou líder, empregado ou não, deveria viver sob a nuvem do temor. Nosso Pai celestial não requer isso de nós, tampouco deveríamos nós requerer de outros. Ele é o modelo daquilo para o que fomos chamados e somos capazes para fazer: liderar sem usar o instrumento do medo.
Stanley E. Petterson, secretário ministerial da Associação Georgia-Cumberland, Estados Unidos
Referências:
1 Columbia Accident Investigation Board Report, vol. 1, agosto/2003, pág. 9.
2 Atlantic Monthly, vol. 292, n° 4, novembro 2003.
3 Janet Hagberg, Real Power, ver. ed. (Salem, Wisc: Sheffield, 1994), pág. 223.
4 Joseph C. Rost, Leadership for the Twenty-First Century (Praeger Publishers, 1993), pág. 105.
“Líderes cristãos estão impedidos de utilizar qualquer estrutura coerciva baseada no poder pessoal“