Um discípulo tem duas obrigações: imitar o mestre e transmitir seus ensinosoutras pessoas

Ruthven J. Roy – D. Min., consultor para estratégias de Ministérios da Igreja, em Hagerstown, Maryland, Estados Unidos

Durante séculos, o crescimento do cristianismo tem sido calculado em termos de número de membros de cada igreja. Embora o chamado de Cristo para discipular seja abordado, parece não ter influenciado a Igreja com a abrangência que deveria fazê-lo. Em muitos casos, o discipulado ainda não tem sido a orientação básica tal como foi no primeiro século do cristianismo; e isso tem afetado a efetividade da missão de grandes denominações.

Entretanto, gurus e pesquisadores do assunto concordam em uma coisa: as taxas de crescimento de igreja têm diminuído em muitos países que são influenciados pela cultura pós-moderna, caracterizada por sua desconfiança e deslealdade institucionais, seu pluralismo religioso e seu escancarado individualismo. Muitas igrejas já têm fechado suas portas, outras estão morrendo ou se reestruturando, e ainda outras caminham tropegamente, esperando que alguma mudança positiva ocorra. As poucas que se mostram criativas e vigorosas o bastante para enfrentar o desafio da pós-modernidade estão experimentando algum crescimento.

Essa crise em boa parte das igrejas – pouco ou nenhum crescimento, irmandade apática e desleal, assistentes esporádicos aos cultos e aumento da apostasia – tem levado muitos líderes e organizações de volta à mesa de conversação para repensar e discutir estratégias de crescimento e conservação.

Em tempos recentes, a palavra discipulado começou a sair dos arquivos da tradição apostólica, como parte de um processo de conversação em muitas igrejas e denominações. No entanto, a palavra ainda é usada muito frouxamente, porque muitas dessas igrejas se tornaram vítimas de estruturas organizacionais rígidas, prescritas por valores tradicionais que estão por trás da orientação dos seus membros. Aliás, para muitas instituições eclesiásticas, tal orientação foi reduzida à prática de contar cabeças e administrar dinheiro.

Há quem pense que discipulado é apenas uma palavra vazia, politicamente correta, girando em tomo da comunidade de fé, ao invés de ser o estilo de vida que define essa comunidade. Todavia, é valioso notar que embora a irmandade da igreja seja um conceito bíblico viável, precisamos estar atentos para não cometermos o erro de pensar que ser membro da igreja signifique automaticamente ser discípulo. Não é assim. Uma pessoa pode ser membro de uma igreja e não ser um discípulo de Jesus Cristo. O dilema de muitas denominações cristãs hoje é que elas possuem poucos membros e ainda menos discípulos.

A condição de membro da igreja deve sempre ser definida e regulada pelo chamado pessoal de Cristo ao discipulado. Ou seja, o propósito do discipulado sempre foi ser a inalterável estrutura modeladora e definidora da vida e prática do crente, sendo a condição de membro o resultado automático. A aceitação do chamado pessoal de Cristo faz de uma pessoa membro do Seu corpo, não apenas de uma estrutura organizacional. O chamado de Cristo ao discipulado não é uma outra opção evangelística para a igreja. Mais do que isso, é o sangue que corre em sua veia; é o seu estilo de vida.

Nós simplesmente não podemos ampliar os limites do reino nem o número dos seus súditos, sem priorizar e abraçar o discipulado. Em muitas congregações, isso requer uma completa mudança de paradigmas do atual pensamento e prática de evangelismo e conservação. Tendo em vista esse ideal, é importante examinarmos o chamado de Cristo a Seus primeiros discípulos.

Compreendendo o chamado

O chamado ao discipulado é um mandamento: “E disse-lhes: Vinde após Mim, e Eu vos farei pescadores de homens” (Mat. 4:19). Esse chamado não ocorreu em um vácuo. Era uma parte integrante da estratégia do reino de Cristo e forma a inamovível plataforma de crescimento e sustentação desse reino aqui na Terra. O discipulado só pode ser compreendido quando é visto através da janela do reino de Deus. Qualquer outra visão será calamitosamente infrutífera e míope. A verdade mais desconfortável é que, em muitas comunidades de crentes, temos permitido que a visão da Igreja ou denominação obscureça a visão do reino de Deus e, por extensão, o conceito de membro eclipse o chamado de Cristo ao discipulado.

Ao contrário de João Batista, Cristo não veio apenas proclamar a vinda do reino, mas agir em favor do seu estabelecimento. No capítulo 4 de Mateus, encontramos o Mestre “caminhando junto ao mar da Galiléia” (v. 18). Isso não era simplesmente um passeio casual, mas uma estratégia de missão e busca do reino. A caminhada junto ao mar era um passo intencional do estabelecimento do reino, através do chamado aos primeiros discípulos.

É interessante notar que esse ato de Jesus era oposto à tradição rabínica, a qual requeria que o discípulo em perspectiva buscasse o mestre de sua escolha e lhe pedisse uma oportunidade para sentar-se aos seus pés como aluno. Mas Cristo era um rabi diferente. E com Seu gesto exemplar, Ele deu uma lição prática de um princípio fundamental do reino: “E quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo” (Mat. 20:27).

Convite pessoal

Antes e acima de tudo, o chamado de Cristo é direto e pessoal: “Segue-Me!”, disse Ele a Mateus (Mat. 9:9). Esse chamado não pode ser bloqueado nem sofrer limites. Não pode ser ab-rogado por qualquer mandato executivo denominacional ou eclesiástico. Nenhum crente nascido de novo pode escapar a ele. Não é um dever transferível devido a preferências pessoais, nem é escusável em virtude de alguma outra obrigação mais elevada.

A primeira vista, “Segue-Me” pode parecer simplista, rudimentar e não estratégico. Mas, através de um exame mais profundo, descobrimos que esse convite contém a poderosa semente do crescimento exponencial e a sustentação do reino de Deus. “Segue-Me” implica mais do que simplesmente “venha após Mim”. E um chamado para imitar o Mestre em palavras e obras. Demanda ser quem Jesus era e fazer o que Ele fazia. Um verdadeiro discípulo tem apenas duas obrigações: tornar-se como o seu mestre; e transmitir os ensinos e estilo de vida desse mestre a outras pessoas.

Com esse convite simples, Cristo estava estabelecendo o princípio fundamental para o crescimento do Seu reino. É o chamado princípio de auto-duplicação, e é poderoso. Muitas vezes Ele repetiu esse princípio “Segue-Me” (Mat. 8:22; Mar. 2:14; Luc. 5:27; João 1:43 e 21:29). Através desse processo, de reprodução de discípulos, Cristo tencionava estender-Se e ampliar Sua influência em uma infindável rede que deveria produzir mais e mais discípulos para o reino de Deus.

Transformação poderosa

O chamado ao discipulado não é apenas pessoal, mas é poderoso. E apoiado e garantido pela promessa de Jesus: “… e Eu vos farei pescadores de homens” (Mat. 4:19). Quem ou o que uma pessoa é, antes do chamado de Cristo, não importa ao Mestre. Todos os acessórios e realizações humanos, limitações e fraquezas, dissipam-se na presença e sob o poder do “Eu vos farei…”.

Pensemos quão insignificante era o grupo que Cristo escolheu para formar o núcleo de Sua campanha em favor do reino. Seus antecedentes, caracteres e personalidades eram tão diversos e discordantes que aqueles homens representavam uma fórmula perfeita para o fracasso. Talvez nenhum deles fosse aprovado no teste ou qualificado para unir-se a qualquer comunidade cristã hoje. Mas, de todo modo, Cristo os escolheu. Sob Sua tutela paciente e capa-citadora, aqueles homens, exceto Judas, emergiram para se tomarem progenitores espirituais da Igreja cristã.

Bill Hull corretamente afirma que “Jesus vê Seus seguidores por aquilo que eles serão, e não pelo que são no campo espiritual. Todos são candidatos a alguma coisa, e não há exceções. Independente do que possamos ver, pró ou contra, em uma pessoa, há muito mais que enche os olhos, coisas que só Deus entende”.

Ocupação produtiva

O chamado de Cristo tem um propósito último em vista, ou seja, pescar pessoas. É muito importante compreender que a força motriz e a ênfase do discipulado não residem na pescaria, mas no ato de seguir. Pescar indivíduos que ainda não foram salvos é sempre o resultado inevitável de seguir a Jesus, porque isso é gerado pelo poder do Mestre através do Espírito Santo. O Senhor promete que se O seguirmos, Ele nos fará pescadores de homens. E não existe possibilidade de falha nessa promessa, porque Ele mesmo é o responsável pelo resultado da pescaria.

Esse fato nos leva a uma conclusão irrefutável: Já que pescar é o resultado inevitável de seguirmos a Jesus, também é o grande teste do relacionamento de uma pessoa com Ele. Em outras palavras, se eu não sou um pescador de homens, não sou um verdadeiro discípulo ou seguidor de Cristo. Posso estar seguindo a alguém ou alguma coisa — um líder religioso, um sistema, uma organização ou denominação – mas, certamente, não estou seguindo a Jesus de Nazaré. Ele mesmo disse que a produção de frutos (fazer discípulos, conforme João 15:16) é o teste do verdadeiro discipulado (João 15:8).

Pescando sem seguir

Mas existem aqueles que podem estar pescando sem seguir a Jesus. Afinal, pescar é mais fácil do que seguir. No entanto isso é ilusório e bastante perigoso. Uma pessoa pode gastar a vida inteira pescando – tal como os discípulos que pescaram durante uma noite e nada apanharam (Luc. 5) – e, no final, ouvir as palavras do Mestre: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de Mim” (Mat. 7:23).

Considere alguns prejuízos e ciladas do ato de pescar sem seguir:

1. A tendência de focalizar sobre o peixe ou a pesca. Isso freqüentemente leva a uma auto-imagem inflada, aquela atitude de “sou melhor do que você”, da parte do pescador. Aí a visão de Cristo e Seu chamado normalmente é colocada em um plano secundário, ou é totalmente descartada.

2. Alimentar a preocupação de tentar “limpar” o peixe antes que ele seja apanhado. Essa atitude pode ser vista no hábito de se erguer barreiras legalistas entre Cristo e os pecadores que tentam chegar a Ele.

3. Tentar separar os peixes bons dos maus no barco (a igreja).

4. Direcionar a atenção a um grupo especial de peixes, em detrimento de outros.

5. Substituir Cristo pelo eu. Nesse processo, um homem sempre aparece como responsável pelos resultados da pescaria. É em tal cenário que o sucesso é medido pela habilidade (ou a sua falta) para fisgar um grande número de peixes. E essa avaliação pode ser aplicada no âmbito pessoal, corporativo ou denominacional.

6. Enfatizar o número de peixes conseguido, mas não o cuidado dispensado a eles.

Quando seguimos a Cristo, aprendemos a pescar como Ele o fez. Trabalharemos por todos os tipos de pessoas, independente de sua orientação, estilo de vida, sua cultura ou raça, usando diferentes meios, métodos e situações (iscas, equipamentos e instrumentos de pesca) para alcançar as pessoas onde elas se encontram.

Os peixes não precisam ser de acordo com o tamanho ou o modelo do nosso barco, nem às nossas atitudes e preferências como pescadores. O que deve ser nosso interesse é fazer ajustes estratégicos para uma boa pescaria. Ademais, os peixes não têm todos o mesmo tamanho nem a mesma forma; muito menos partilham o mesmo habitat nem a mesma comida.

Cristo encontra as pessoas em seu próprio terreno e lhes possibilita, independente de sua vida e prática, acesso irrestrito, desimpedido, a Ele. Seus verdadeiros seguidores farão o mesmo. Devemos cooperar com Ele no trabalho de alcançar as pessoas, mas ao final Ele Se reserva o direito exclusivo de limpá-las.

Chamado superior

O chamado de Cristo é para discipularmos, não apenas ser membros ou líderes da igreja. E um chamado para servir, não para ser servido. Esse chamado não deve ser substituído ou suplantado pelo chamado de uma Igreja, denominação, ou qualquer outra instituição. Um chamado enunciado por tais entidades será autenticado pelo Céu, somente se a ele for atribuída a extensão de um chamado feito pelo Mestre.

O corpo só faz o chamado porque a Cabeça o dirige. Embora o discipulado e o ato de ser membro de uma igreja não sejam mutuamente exclusivos, as duas coisas denotam duas experiências distintas. A adesão a uma igreja revela um senso de comunidade e pertinência, mas o discipulado comunica um senso de missão e propósito. A missão de Cristo no mundo é estabelecer o reino de Deus, chamando indivíduos para esse serviço. E a natureza do Seu chamado é que ele é pessoal, poderoso e produtivo. Por isso é importante que Lhe respondamos apropriadamente. Não nos esqueçamos: É um chamado para segui-Lo e ser Seu discípulo.

Intimamente ligado à pessoa do discípulo está o processo do discipulado. É isso o que torna o discípulo aquilo que ele supõe ser. Discipulado é um compromisso para toda a vida, e um processo de fazer discípulos como o discipulador maior – Cristo Jesus – por preceito e exemplo. Isso envolve ser como o Mestre no ministério público e na disciplina privada: em solidão, quietude, oração, jejum, benevolência e meditação.2 Todo crente é chamado a essa experiência, bem como a estender esse convite a outros.

Ellen White lembra que “Aquele que chamou os pescadores da Galiléia, chama ainda homens ao Seu serviço. E está tão disposto a manifestar por nosso intermédio o Seu poder, como por meio dos primeiros discípulos. Imperfeitos e pecadores como possamos ser, o Senhor estende-nos o oferecimento da comunhão com Ele, do aprendizado com Cristo. Convida-nos a colocar-nos sob as instruções divinas, para que, unindo-nos a Cristo, possamos realizar as obras de Deus”.

Referências:

1 Bill Hull, Jesus Christ Disciple Maker (Grand Rapids: Fleming H. Revell, 1994), pág. 20.

2 Dallas Willard, The Spirits of the Disciplines (New York: HaperCollins Publishing, 1991).

3 Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, pág. 297.