Costumamos identificar pessoas incoerentes em suas palavras e atitudes, dizendo que elas têm “duas caras”. E essa é uma questão que vai além das fronteiras semânticas e pragmáticas do estudo da polidez e dos provérbios. Na verdade, aqui podemos buscar uma interface do linguístico com o religioso.
De acordo com Dominique Maingueneau, todo indivíduo possui duas “faces”: negativa e positiva.1 A negativa corresponde ao espaço ou “território” de cada um. As pessoas não querem ser incomodadas, impedidas ou controladas. A face positiva está relacionada com a imagem que transmitimos socialmente para as outras pessoas. Elas desejam ser amadas e compreendidas.
Falas ameaçadoras
Todo ato de comunicação pode ser considerado uma “ameaça” para uma ou várias faces. Por exemplo: Uma ordem valoriza a face positiva do locutor e desvaloriza a do interlocutor. Admitir um erro é uma fala ameaçadora para a face positiva do locutor, pois o expõe; e, como cristãos, não devemos adotar essa visão. Promessas são falas ameaçadoras para a face positiva e negativa do destinatário bem como a face positiva do emissor. Perguntas indiscretas, ordens, advertências, conselhos não solicitados são falas ameaçadoras para a face negativa do destinatário.
Percebe-se claramente que uma mesma fala pode ameaçar uma face com o intuito de preservar a outra. Por isso, os envolvidos na comunicação são levados constantemente a negociar, buscando meios de preservar suas próprias faces, porém sem ameaçar a do outro.
O ensino bíblico
Nas Escrituras, encontramos ensinamentos que nos convidam a uma reflexão mais detida sobre esse tema: “Ofereci as costas aos que Me feriam e as faces, aos que Me arrancavam os cabelos; não escondi o rosto aos que Me afrontavam e Me cuspiam” (Isa. 50:6). “Dê a face ao que o fere; farte-se de afronta” (Lam. 3:30); “… mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra” (Mat. 5:39). Como se vê, o Mestre dos mestres implodiu um paradigma que até hoje está arraigado na sociedade: a violência deve ser combatida com violência.
O autor Augusto Jorge Cury2 analisa o objetivo que Cristo queria atingir ao orientar Seus seguidores a oferecer a outra face. O Senhor não falava da face física, mas da psicológica. Oferecer a outra face é não revidar quando agredido. Olhando superficialmente, isso parece uma atitude reveladora de fragilidade e medo. Contudo, só uma pessoa forte é capaz de oferecer a outra face. Somente alguém seguro dos seus valores será capaz de elogiar seu agressor. Quem dá a outra face não se esquiva; enfrenta o outro com a tranqüilidade própria dos que são cônscios e seguros de suas emoções.
A lógica a ser trabalhada é a de que nada perturba mais o agressor do que não ser revidado em sua agressividade. Essa atitude o desarma na tentativa de buscar justificar-se. Certamente ele tentará mitigar o ocorrido através do pedido de desculpas.
Dar a outra face é uma atitude de respeito. Com esse gesto, dizemos que estamos dispostos a compreender os fundamentos da agressividade alheia. E isso é uma forma de ajuda cristã. “A psicologia de ‘dar a outra face’ protege emocionalmente a pessoa agredida e, ao mesmo tempo, provoca a inteligência das pessoas violentas, estimuladas a pensar e reciclar a própria violência.”3
Passividade versus maturidade
Novamente nas palavras de Cury, “Cristo, através do discurso de dar a outra face, queria proteger a pessoa agredida, fazê-la transcender a agressividade imposta pelo outro e, ao mesmo tempo, educar o agressor, levá-lo a perceber que a sua agressividade é um sinal de fragilidade”.4 Cristo era totalmente contrário a qualquer espécie de violência. Contudo, a humildade que apregoava nada tinha a ver com medo, submissão passiva; porém, ligava-se à maturidade da personalidade, construída por intermédio de uma emoção segura e serena.
Cristo nos ensinou o procedimento correto a seguir, a fim de preservar tanto a nossa face positiva quanto a do nosso agressor. E não faltam situações para colocar em prática o Seu conselho. Portanto, não tenha medo de pedir desculpas, estender a mão reconciliadora, estreitar-se com alguém num abraço perdoador.
Referências:
1 Dominique Maingueneau, Análise de Textos de Comunicação (São Paulo, SP: Cortez, 2001), pág. 38.
2 Augusto Jorge Cury, O Mestre dos Mestre: Análise da Inteligência de Cristo (São Paulo, SP: Academia de Inteligência, 1999).
3 Ibidem, pág. 166.
4 Ibidem, pág. 167.
Cleide Emília Faye Pedrosa, Professora de Lingüística na Universidade Federal de Sergipe, e esposa de pastor.