Os 20 anos de publicação da encíclica Dies Domini

Publicada em 31 de maio de 1998, a encíclica Dies Domini, de autoria do então papa João Paulo II, veio realçar a importância do descanso dominical para os círculos católico-romanos.1 Ao que parece, a principal preocupação em pauta era a perda de significado do domingo diante das condições socioeconômicas e culturais da época, que ameaçavam reduzir a solenidade religiosa do dia a um mero descanso físico.2

Frente àquela realidade, o papa esclareceu que seu objetivo era “recuperar as profundas motivações doutrinais que estão na base do preceito eclesial, para que apareça bem claro a todos os fiéis o valor imprescindível do domingo na vida cristã”.3 Para tanto, sua abordagem vai desde a observância do sétimo dia pelo próprio Deus, conforme destacada na narrativa de Gênesis, até a suposta transferência dessa solenidade para o primeiro dia da semana, em comemoração à ressurreição de Cristo.

Ao discorrer sobre o assunto, Alberto Timm comenta que a encíclica Dies Domini surgiu da tentativa católica de construir uma teologia bíblica a respeito do domingo.4 Biblicamente, porém, é possível constatar que as Escrituras não fazem menção a outro dia como sendo o dia de repouso religioso, senão ao sétimo dia da semana, o sábado.

Nesse contexto, haveria respaldo bíblico para defender o chamado “argumento da transferência” apresentado por essa encíclica papal? O mandamento da observância do sábado contido no Decálogo foi, de fato, substituído pelo descanso dominical?

Dies Domini e suas pressuposições

A teologia católica, assim como qualquer outra, é fundamentada em pressupostos que norteiam sua interpretação das Escrituras e de sua fé. Assim, é válido pontuar, mesmo que brevemente, dois pressupostos básicos que, presentes também nas entrelinhas da encíclica, proveem uma base argumentativa para a crença na transferência do sábado para o domingo: a doutrina da sucessão apostólica e o papel da Tradição na interpretação bíblica.

A Igreja Católica defende a ideia da sucessão apostólica,5 crendo, desse modo, possuir uma relativa pureza doutrinária ininterrupta desde sua fundação. Por isso, as referências históricas de cristãos primitivos observando o domingo são consideradas como normativas para a prática cristã contemporânea.6

Quanto ao papel da Tradição para sua hermenêutica, a Igreja de Roma deixa claro que as Escrituras têm a “Sagrada Tradição” – a maneira com que o evangelho é transmitido dentro do contexto eclesiástico ao longo da história7 – como “a regra suprema de sua fé”.8 Em outras palavras, a Bíblia não é a única regra de fé e prática para o catolicismo, como geralmente se admite no meio protestante (sola Scriptura). Assim, toda interpretação bíblica católica – inclusive a encíclica –, estará norteada por sua própria Tradição.

Dies Domini e seu conteúdo bíblico

Uma leitura superficial da encíclica Dies Domini é suficiente para notar que o ponto fundamental a partir do qual se constrói todo o “argumento da transferência” é o evento da ressurreição de Cristo. Considerando-a como o “dado primordial sobre o qual se apoia a fé cristã”, toma-se o fato de tal evento haver ocorrido no primeiro dia da semana como o indicativo de que este se torna, por excelência, o dia do descanso cristão.9

Interessante é notar que a encíclica, bem como o Catecismo da Igreja Católica,10 não descartam o sábado como tendo perdido sua validade, tampouco defendem a revogação do dia de adoração apontado pelo Decálogo. Antes, João Paulo II afirma que “mais do que uma substituição do sábado, o domingo constitui a sua perfeita realização […], seu desenvolvimento e plena expressão”.11 Para ele, o descanso de Deus na criação e a salvação de Seu povo prefigurada pelo êxodo que, sob a antiga aliança, constituíam o significado do sábado, encontram seu cumprimento na morte e ressurreição de Jesus. Tendo esse grandioso evento ocorrido em um domingo, conclui-se que “o sentido do preceito veterotestamentário do dia do Senhor é recuperado, integrado e plenamente revelado” em Cristo. Assim, “do sábado passa-se ao primeiro dia depois do sábado, do sétimo dia passa-se ao primeiro dia: o dies Domini torna-se o dies Christi!”12 À luz da Bíblia, porém, não há base para sustentar tal argumento.

Dies Domini à luz da Bíblia

Ao se considerar qualquer controvérsia a respeito do dia de repouso e adoração, tal discussão sempre girará em torno das páginas do Novo Testamento. Afinal, as repetidas referências ao sétimo dia no Antigo Testamento o colocam acima de qualquer questionamento (Gn 2:1-3; Êx 16, 20:8-11; Dt 5:12-15; Ne 13:15, 16; Is 58:13, 14; Jr 17:19-27; Ez 20:12, 20).

A própria encíclica admite que Cristo, quando realizava curas no dia de sábado, longe de indicar sua perda de validade, aprofundou o significado libertador desse dia (Mt 12:9-13; Lc 13:10-17, 14:1-6; Jo 5:2-9).13 Na sequência dos evangelhos, o livro de Atos “revela que o único dia em que os apóstolos estiveram envolvidos em serviços de culto […] foi o sábado” (At 13:14, 42, 44; 16:13; 17:2, 18:4).14 Kenneth Strand também sugere que essas evidências, além de apontar para o fato de que Cristo e os apóstolos mantiveram o sábado como dia de descanso religioso, indicam ainda que não houve outro dia sendo honrado como dia de adoração senão o sétimo dia.15

É inquestionável que a ressurreição de Cristo, evento de importância ímpar para a fé cristã, ocorreu em um domingo (Mt 28:1; Mc 16:2, 9; Lc 24:1; Jo 20:1, 19).Mas isso justificaria a substituição do sábado pelo domingo como dia de adoração? Alberto Timm destaca que há uma imposição retroativa da tradição pós-apostólica – a qual veremos a seguir – ao texto bíblico, distorcendo assim o significado natural das passagens em questão.16 Em realidade, nenhum texto neotestamentário relaciona a ressurreição a um novo dia de adoração.

Dies Domini e a Tradição

Longe de ser uma prescrição do Novo Testamento, a observância do domingo como dia de culto encontra sua origem na história do cristianismo, cujo desenvolvimento não é simples de ser detalhado. É importante salientar, como apresentado por Samuele Bacchiocchi, que a origem da observância dominical é resultado de uma interação entre fatores do judaísmo, do paganismo e do cristianismo,17 além de um longo processo histórico.

Inicialmente, como assegura Kenneth Strand, o domingo não era um substituto para o sábado, de tal modo que ambos foram igualmente observados no período do cristianismo apostólico.18 Provavelmente sua origem como comemoração cristã esteja ligada à Festa das Primícias que, no Novo Testamento, é relacionada à ressurreição de Cristo. Nesse contexto, seria natural que os primeiros cristãos – em sua maioria cristãos judeus – comemorassem as primícias em honra à ressurreição. Essa festividade, entretanto, ocorria anualmente. Posteriormente, porém, deve ter-se convertido em uma celebração semanal.19

De fato, a substituição efetiva do sábado para o domingo deve ser creditada à história da Igreja de Roma. Desde muito cedo, teólogos cristãos de Roma, ao lado dos de Alexandria, eram os que não apenas mantinham o domingo como dia de celebrações religiosas, mas também manifestavam atitudes negativas em relação ao sábado, como demonstraram Justino Mártir e Barnabé de Alexandria, por exemplo.20 Samuele Bacchiocchi assinala que, sendo formada em sua maioria por cristãos conversos do paganismo, a igreja romana tomou medidas com o intuito de salientar suas distinções quanto aos judeus, que viviam em constante tensão com o Império Romano.21 Sem dúvida, o contexto antijudaico do período foi um dos mais importantes fatores para a substituição do dia cristão de adoração.22

Bacchiocchi esclarece que a escolha do domingo em si relaciona-se também com a difusão dos cultos ao Sol comumente comemorados no Império Romano no primeiro dia da semana. Os cristãos teriam assumido esse dia, não porque estivessem desejosos de adorar ao deus-Sol, mas porque o dia estaria relacionado à nova criação e ao simbolismo do “Sol da Justiça”,23 algo que ainda permanece presente na própria encíclica Dies Domini.24

Posteriormente, as leis dominicais do Império e o íntimo relacionamento existente entre este e a Igreja, que se desenvolveu de Constantino a Justiniano, acabaram assinalando a substituição do sábado para o domingo, por volta do oitavo século.25

Conclusão

Apesar dos argumentos usados por João Paulo II serem bem elaborados, nenhum dos textos bíblicos utilizados por ele no desenvolvimento de sua tese diz de maneira objetiva que o sábado foi substituído pelo domingo como dia de repouso. Contudo, à luz de sua própria perspectiva, esse fato não consiste em um problema teológico para o catolicismo. Admite-se, porém, que “os cristãos […] assumiram como festivo o primeiro dia depois do sábado, porque nele se deu a ressurreição do Senhor”.26 Relembrando o papel da Tradição para a interpretação da fé católica e da doutrina da sucessão apostólica,
assume-se que “era justo que os cristãos […] se sentissem autorizados a transpor o significado do sábado para o dia da ressurreição”.27 Em última instância, recorre-se à Tradição e à suposta autoridade apostólica da Sé Romana para justificar a transferência do sábado para o domingo.

Essa realidade parece deslocar a controvérsia sábado versus domingo para além da discussão bíblica, chegando aos pontos mais fundamentais da Teologia Cristã: a noção de Revelação e a interpretação das Escrituras. Como alerta Bacchiocchi, “para aqueles cristãos que defendem suas crenças e práticas exclusivamente pelo princípio reformador do sola Scriptura, observar o domingo como o dia do Senhor sobre a autoridade da tradição da igreja e não sobre a autoridade das Escrituras é um dilema paradoxal”.28

Atualmente, os recorrentes debates nos círculos cristãos sobre o tema, bem como os movimentos de apoio ao descanso dominical ao redor do mundo,29 aparentemente enraizados no “argumento da transferência”, realçam a necessidade da teologia adventista reafirmar sua crença no sábado bíblico à luz de sua perspectiva profética (Ap 13). 

Referências

Diego Bispo é aluno de Teologia do Unasp, Engenheiro Coelho

Lucas Higor é aluno de Teologia do Unasp, Engenheiro Coelho

1 João Paulo II, Dies Domini. Disponível em
<https://goo.gl/2ZsED9>.

2 Dies Domini § 4.

3 Dies Domini § 6.

4 Alberto R. Timm, O Sábado na Bíblia: Porque Deus Faz Questão de um Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010), p. 97.

5 Dies Domini § 3.

6 Por exemplo, nos § 19, 23, 46 e 47.

7 A. Ribeiro. “A Revelação nos Concílios de Trento e Vaticano II”, em Teocomunicação, v. 36, nº 151
(p. 55-74), p. 64.

8 Constituição Dogmática Dei Verbum § 21. Disponível em <https://goo.gl/tzyKwD>.

9 Dies Domini § 3.

10 Catecismo da Igreja Católica § 2168 a 2176. Disponível em <https://goo.gl/dhMZPa>.

11 Dies Domini § 59.

12 Dies Domini § 18.

13 Ibid.

14 Kenneth Strand, “Como o domingo tornou-se o popular dia de culto – parte 1”, em Parousia, n. 1, v. 3 (p. 67-72), jul-dez 2004, p. 70.

15 Kenneth Strand, “O sábado”, em Raoul Dederen (ed.), Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011), p. 565.

16 Alberto R. Timm, O Sábado na Bíblia, p. 77.

17 Samuele Bacchiocchi, From Sabbath to Sunday: A Historical Investigation of the Rise of Sunday Observance in Early Christianity (Roma: The Pontifical Gregorian University Press, 1977), p. 308.

18 Kenneth Strand, “Como o domingo tornou-se o popular dia de culto – parte 1”, p. 67.

19 Kenneth Strand, “Como o domingo tornou-se o popular dia de culto – parte 2”, em Parousia, n. 1, v. 4 (p. 63-72), jan-jun 2005, p. 64, 65.

20 Ibid, p. 64.

21 Samuele Bacchiocchi, From Sabbath to Sunday, p. 307.

22 Kenneth Strand, “Como o domingo tornou-se o popular dia de culto – parte 2”, p. 65.

23 Samuele Bacchiocchi, From Sabbath to Sunday,
p. 307-309.

24 Dies Domini § 27, 64.

25 Kenneth Strand, “Como o domingo tornou-se o popular dia de culto – parte 2”, p. 68-70.

26 Ibid., grifo nosso.

27 Dies Domini § 63, grifo nosso.

28 Samuele Bacchiocchi, From Sabbath to Sunday, p. 311.

29 Ver, por exemplo, a Aliança Dominical Europeia. Disponível em <https://goo.gl/q1rNpA>.