O risco em se permitir que as ferramentas para a missão se tornem um fim em si mesmas

No dia 10 de abril de 1912, David Blair trocou apressadamente de posto com seu colega de trabalho, Charles Lightoller. Ao sair, esqueceu-se de entregar ao substituto uma chave que estava em seu bolso. Um problema aparentemente insignificante que, no entanto, custou a vida de 1.522 pessoas. Aquela chave abria o armário em que ficavam guardados os binóculos do Titanic. Mesmo sendo verídica, essa história poderia ser taxada de absurda se motivasse a seguinte advertência: “Esquecer uma chave no bolso pode levar à morte milhares de pessoas.” O mesmo pode ser dito sobre o título deste artigo, já que parece absurda a ideia de alguém idolatrar um método. Contudo, como na história da chave, para além das aparências, a idolatria do método é um problema real.

Definição de idolatria

O primeiro ponto para compreender a idolatria do método é conceituar o termo e identificar suas características. G. K. Beale apresenta uma adaptação ao conceito de idolatria apresentado por Lutero em seu Catecismo Maior: “Tudo aquilo a que seu coração se apega e se entrega com fé, isso é seu deus; bastam apenas a confiança e a fé do coração para constituir tanto a deus quanto ao ídolo.”1

Certamente esse conceito não é novo. Émile Durkheim disse algo semelhante ao defender que a religião era uma criação da sociedade, que idealizava seus deuses e o que era bom.2 Claro que isso não pode ser atribuído ao Deus verdadeiro, mas pode muito bem ser atribuído aos ídolos.

Ainda há outros exemplos. Leonardo Boff cita o futebol como uma religião secular. Para ele, o esporte e seu mundo reproduzem elementos da vida religiosa como templos, seitas e cultos. Ele não se refere abertamente ao futebol como idolatria nem ao deus futebol, mas quem discordaria de que grandes jogadores ficam conhecidos por se encaixarem nesse perfil?3 Rodrigo Portella e Deis Siqueira chegam a sugerir que a secularização da sociedade estaria elevando questões corriqueiras a um patamar religioso.4 Ou seja, elementos sem o menor sentido religioso são venerados ou respeitados de uma forma antes restrita às divindades, assim como no exemplo dado por Boff. Desse modo, um método nem precisa ser considerado divino ou espiritual para ser objeto de idolatria.

Por mais que isso seja verdade, pode-se afirmar que idolatrar determinado método é algo demasiado ridículo para se crer. Entretanto, é exatamente isso que ocorre com todas as idolatrias. Isaías 44 menciona que a idolatria não faz o menor sentido, e que o adorador de ídolos venera algo que é menor do que ele mesmo. Aliás, esse texto deixa evidente o que foi visto até aqui: que o ídolo é um deus-criatura, uma construção humana para que se preste culto e se peça favores. Talvez seja justamente o desejo de se engrandecer que leva o ser humano a atribuir poderes imensos a algo que esteja sob seu controle. G. K. Chesterton pondera: “Parece haver uma desproporção entre o sacerdote e o altar, ou entre o altar e Deus. O sacerdote parece mais solene e quase mais sagrado do que Deus […]. Naquele estranho ponto de encontro, o homem parece mais escultural do que a estátua.”5

Esse delírio de grandeza leva a uma correlação entre idolatria e salvação pelas obras, já que os ídolos são criações humanas para proporcionar favores a si mesmos, entre eles a salvação. A obediência não é exercida como fruto da divindade, mas como meio de conseguir bênçãos.

C. S. Lewis comenta que misturar moral com divindade é algo raro na humanidade, e que o único povo a apresentar uma “divindade” assim é o judeu.6 Isso mostra que seguir um falso deus não implica ser bom ou correto, mas fazer algo que traga retorno. Sendo assim, o ídolo pode ser considerado um meio de se conseguir benefícios pessoais diretos ou indiretos.

A história de Mica e os danitas (Jz 17, 18) apresenta outro elemento interessante. Conforme o relato bíblico descreve, muitas coisas foram feitas com o pretexto de agradar ao Deus verdadeiro: eles construíram um altar, contrataram um sacerdote da tribo de Levi e ofereceram um culto. Porém, tudo não passou de idolatria! Mica dizia adorar ao Deus verdadeiro, mas, de fato, havia criado um ídolo para lhe prestar favores (Jz 17:13). Em 1 Reis 12:28 e Amós 8:14 fica evidente que Mica e os danitas adoravam um falso deus, mesmo que suas palavras fossem direcionadas ao Deus verdadeiro. Afinal, o deus de Mica podia ter nome e ser semelhante ao Senhor, porém tinha gostos bem diferentes, uma vez que aceitava uma adoração contrária à lei de Moisés. Portanto, era uma contrafação do Deus verdadeiro, uma caricatura criada para conceder favores.

Esse é um cenário parecido com o descrito por C. S. Lewis em sua parábola “A última batalha”.7 Um dos pontos levantados pelo autor é que, enquanto o Senhor considera repugnante ser confundido com os ídolos, Satanás não se preocupa com essa questão: ele aceita qualquer tipo de falsa adoração direcionada ao Deus verdadeiro. A Bíblia apresenta muitos exemplos disso, e alguns mostram uma dinâmica diferente da que encontramos na história de Mica. Esse é o caso da serpente Neustã.

Neustã foi um ídolo como qualquer outro, sem vontade própria e feito por mãos humanas. A diferença, porém, era que ele surgiu no contexto de uma ordem divina – o Senhor ordenou a Moisés que fizesse uma serpente de bronze (Nm 21:8). Apesar disso, em 2 Reis 18:4 é dito que o povo de Israel começou a tratar aquela serpente como se fosse uma divindade, queimando incenso diante dela. Enquanto na história de Mica o protagonista criou um falso deus por meio de atos inaceitáveis dedicados ao verdadeiro Deus, no episódio dos israelitas e a serpente de bronze, um instrumento criado por ordem de Deus se tornou objeto de idolatria.

Um ponto esclarecedor nessa história é que o nome Neustã significa literalmente “serpente de bronze”, o que indica que não era o nome de uma divindade, mas um tipo de apelido dado a essa escultura.8 Contudo, o objeto de ensino utilizado por Deus acabou sendo considerado poderoso em si mesmo, tornando-se, por fim, um ídolo.

Método, mensagem e poder divino

É nesse contexto que se encaixa a idolatria do método. Por mais que pareça absurdo alguém pegar um manual metodológico e colocá-lo em um pedestal rodeado de velas, não parece tão insensato acreditar que o sucesso venha como resultado da aplicação de um método, ignorando a bênção divina. Aliás, essa é uma tentação recorrente no cumprimento da missão. É possível que determinadas instituições, igrejas e comunidades sejam vistas como exemplo pelos resultados alcançados devido a seus métodos, em lugar de atribuir seu sucesso à ligação delas com Cristo e sua fidelidade aos padrões bíblicos.

Claro que devemos encontrar a melhor maneira de realizar o trabalho do Senhor, o que inclui buscar os melhores métodos. Entretanto, se no processo o método se tornar mais importante do que a comunhão ou o estudo das Escrituras, a confiança será deslocada de “o que Deus pode fazer” para “o que nós podemos fazer”. Tal atitude leva à idolatria.

Dificilmente algum líder cristão afirmará que confia mais em um determinado método do que no poder divino. Todavia, isso pode ocorrer, mesmo que involuntariamente. Talvez a maior evidência desse deslocamento da fé se manifeste quando os louros da vitória não vão para Cristo, mas para os métodos utilizados e as pessoas que fizeram uso deles. Ora, se o poder que opera é o divino, porque deveriam as pessoas e os métodos receber a glória pelo sucesso? O serviço do Senhor, contaminado pela veneração ao método, acaba gerando o engrandecimento do ser humano, algo repudiado pelas Escrituras, mas típico da idolatria. Ele é engrandecido pelo ídolo que criou.

Há quem argumente que esse comportamento pode ser tolerado justamente por ser algo pequeno diante dos resultados conseguidos. Contudo, ser leniente com essa questão é tentar agradar ao Senhor com o que O aborrece. Assim, acaba-se prestando adoração e serviço a uma “caricatura” do Deus verdadeiro, como foi o caso de Mica. Enquanto o Senhor exalta o humilde e humilha o exaltado, o “deus idolatrado” valoriza aquele que está se exaltando.

Não é necessário ir tão longe para se tornar um idólatra. De fato, é fácil ser pego nessa armadilha. Mesmo sendo zelosos e obedientes a Deus, podemos cair na idolatria do método. Assim como no caso de Neustã, qualquer um pode ser levado a crer que a ferramenta instituída por Deus tem poder em si mesma e a colocar sua confiança em um mero instrumento. É o que ocorre quando se diz que sem determinado método não é possível ter sucesso, e que fora desse método tudo se torna insuficiente ou insatisfatório.

Assim como a serpente de bronze foi um instrumento sem poder usado pelo Deus todo-poderoso, métodos corretos são ferramentas sem vida usadas pelo Espírito vivificante. João 3:14 diz que a serpente de bronze foi levantada no deserto para apontar o Salvador, não a escultura em si. Da mesma forma, um método deve ter como objetivo levar pecadores a Cristo e não a ele mesmo ou a quem o utiliza.

É indiscutível que precisamos de métodos na adoração, pregação, evangelização ou qualquer outra área. Devemos ter compromisso com a excelência no serviço do Senhor e almejar resultados maiores e mais elevados. Todo servo de Deus deve repudiar a mediocridade e o pensamento de acomodação. Entretanto, não podemos nos esquecer de que o poder que ajuda a alcançar esses resultados não é nosso, mas do Espírito que opera em nós. Enquanto persistir a ideia de que algo, além do Deus todo-poderoso, seja responsável pelo sucesso, estaremos idolatrando o método.

Devemos procurar os melhores métodos, com a certeza de que a ferramenta somente será eficaz com o poder do Altíssimo. Cabe ao servo fiel se gloriar no nome do Senhor. “Uns confiam em carros de guerra, e outros, em seus cavalos; nós, porém, invocaremos o nome do Senhor, nosso Deus” (Sl 20:7, NAA). 

 Bruno Lopes, mestre em Teologia Bíblica, é pastor em Alvorada do Norte, GO

Referências

1 G. K. Beale, Você se Torna Aquilo que Adora: Uma Teologia Bíblica da Idolatria (São Paulo, SP: Vida Nova, 2014), p. 17.

2 Emile Durkheim, The Elementary Forms Of Religious Life (Nova York, Londres, Toronto, Sidney, Tókio, Singapura: The Free Press, 1995).

3 Leonardo Boff, “O futebol como religião secular”, Jornal do Brasil, 29/6/2014.

4 Rodrigo Portella, “Religião, sensibilidades religiosas e pós-modernidade da ciranda entre religião e secularização”, Revista de Estudos da Religião, 2013. Ver Deis Siqueira, “O labirinto religioso ocidental”; “Da religião à espiritualidade”; “Do institucional ao não convencional”, Sociedade e Estado, v. 23, no 2, 2008.

5 G. K. Chesterton, O Homem Eterno (São Paulo: SP, Mundo Cristão, 2010), p. 119.

6 C. S. Lewis, The Problem of Pain (Quebec: Samizdat University Press, 2016), p. 7.

7 C. S. Lewis, “A última batalha”, As Crônicas de Nárnia (São Paulo: SP, Martins Fontes), 2009.

8 T. R. Hobbs, Word Biblical Commentary: 2 Kings (Dallas: TX, Word Incorporated, 2002), p. 252.