Guardar o sábado significa colocar Deus como administrador e agente principal em todos os aspectos de nossa vida profissional

Certamente, o sábado celebra a obra criadora de Deus, e não o trabalho do homem. Porém, todos fomos beneficiados com um dia semanal de descanso para comemorar essa obra divina. Mas a questão é: Será que o conceito divino do sábado contribui para nossa compreensão e desempenho das tarefas comuns de cada dia? Este artigo argumenta que o quarto mandamento, a santidade do sábado, não diz respeito somente a um dia de descanso, mas também pressupõe nosso compromisso com Deus nos demais dias da semana. O sábado do sétimo dia somente pode ser mantido santo se trabalhamos da maneira que Deus deseja nos outros seis dias da semana.

Os deuses de algumas sociedades antigas evitavam o trabalho. O épico mesopotâmico de Atrahasis, do primeiro e segundo milênios a.C., descreve como os deuses enfadados do trabalho e disputando uns com os outros sobre quem deveria fazê-lo, criaram os seres humanos para resolver o dilema.1 O grego Hesíodo escreveu no oitavo século a.C. que os deuses criaram os seres humanos para fazer seu trabalho como castigo por terem roubado deles o fogo. Então, os deuses enviaram Pandora como “dádiva”, a qual derramou sua jarra deixando cair todas as labutas e doenças graves que atormentam a humanidade até hoje.2 Em tais sistemas religiosos o trabalho era visto como algo impróprio para os deuses, que foram feitos para desfrutar a luxúria e o ócio eterno. Os seres humanos ainda compartilham com os antigos a ilusão de que o ócio é a felicidade máxima.

Na contramão desse conceito pagão, o Deus dos hebreus é triunfalmente descrito trabalhando. A primeira informação bíblica declara que Ele trabalhou e, mais do que isso, Ele trabalhou para criar um mundo maravilhoso para Seus filhos (Gn 1:1-2:3). A nós, criados à imagem de Deus, foi graciosamente ofertado o dom do trabalho (Gn 1: 26-28; 2:15). O sábado comemorou o trabalho da própria criação de Deus. Ele foi estabelecido para abençoar e santificar (Gn 2:2, 3).

O mandamento

Os Dez Mandamentos endossam a narrativa da criação de que Deus trabalha em favor de seres humanos. Deus escreveu em tábuas de pedra Seus mandamentos demonstrando assim que a razão para a observância do quarto mandamento é a criação do mundo. Ele mesmo estabeleceu o sétimo dia para ser santificado e para descanso como memorial dessa atividade criadora
(Êx 20:8-11). Quando Moisés repetiu os mandamentos para o povo, em seu sermão de despedida, ele acrescentou a obra de redimir Israel da escravidão do Egito (Dt 5:15) como justificativa para o descanso sabático. Assim, ambas as referências ao quarto mandamento afirmam algo que os antigos povos contemporâneos de Israel teriam visto como um conceito chocante – de que Deus trabalha em favor dos seres humanos.

Mas o mandamento do sábado também diz respeito ao nosso trabalho. Tal reconhecimento prevê que o chefe da casa, sua família, seus funcionários, e até mesmo seus animais, tenham a oportunidade de descansar. Além disso, todo trabalho deve cessar; não deve ser repassado ao desconhecido ou estrangeiro (Êx 20:10;
Dt 5:14). No caso dos israelitas, Deus estabeleceu que o sábado seria um benefício para eles e também para os “estrangeiros dentro dos seus portões”.

Assim, o quarto mandamento tem uma tríplice razão para ser uma oportunidade de repouso sagrado: em primeiro lugar, o sábado comemora a obra de Deus para a humanidade; segundo, sua provisão é para todos os seres criados; e em terceiro lugar, ele reconhece a dignidade do trabalho humano.

Perspectiva literária hebraica

No relato de Gênesis 2:1-3, o verbo “santificar” está no tempo piel que indica intensificação e repetição da ação.3 A intensificação implica que a santificação teve um efeito imediato, e a repetição implica que a bênção do sábado deve ser repetida a todos posteriormente. O sábado não foi estabelecido apenas para ser uma bênção judaica.4

Uma única letra hebraica, o vau, geralmente é utilizada para adicionar algo ao texto e é traduzida como “e” ou similar. Às vezes, essa simples letra contrasta o significado sendo traduzida por “mas” ou similar.5 Para a maioria dos tradutores da Bíblia o vau que ocorre no quarto mandamento, entre a ordem para os seres humanos trabalharem durante seis dias e, em seguida, se lembrar do sábado, parece atuar como um contraste e, portanto, tem sido traduzida como “mas” (ver Êx 20:10 na KJV, ESV, NKJV, RSV). No entanto, ela pode ser justificadamente traduzida por “e”, conforme defende Jay Green.6 O sábado contrasta o trabalho humano com a obra divina, mas a mudança na tradução do vau, consequentemente, não contrastaria o trabalho humano com o sábado, porém, poderia indicar a intenção de Deus para conectar intimamente a bênção do sábado com o trabalho humano diário, assim como Ele abençoou Sua obra de criação (Gn 1:22, 28). O trabalho, é claro, foi a intenção divina para os seres humanos, mesmo no Éden (Gn 1:26; 2:15).

Perspectiva de Jesus

Um dos princípios do Reino de Deus, apresentado por Jesus no Sermão do Monte, é: “Não pensem que vim abolir a lei ou os profetas; não vim abolir, mas cumprir” (Mt 5:17). No entanto, muitas vezes, durante seu ministério terrestre, Jesus discordou dos líderes religiosos a respeito da guarda do sábado. Seu delito recorrente foi curar. Uma atividade considerada como trabalho. Embora essas curas apenas insinuassem uma habilidade criativa, Jesus simplesmente Se defendeu mencionando que era lícito fazer o bem no sábado (Mt 12:12). Porém, quando curou o homem à beira do tangue de Betesda, Ele fez uma declaração chocante: “Meu Pai ainda está trabalhando, e eu estou trabalhando”
(Jo 5:17, RSV). Jesus, aqui, parece ter apresentado Deus como quebrando, Ele próprio, Seu mandamento do sábado!

A aparente abordagem controversa de Jesus em relação à observância do sábado sugere que Ele estava tentando ensinar alguma coisa sobre o propósito desse dia que não foi compreendida pelos judeus. Ele declarou que o sábado também é um dia para fazer o bem. O sábado é um presente oferecido por Deus a Seus filhos, e, o mais surpreendente, ele estabelece uma conexão entre Deus e o trabalho humano.

Deus Conosco

O sábado é uma lembrança de que Deus pretendia estar presente com a humanidade desde o princípio. O mundo não foi feito em seis dias, mas em sete (Gn 2:2). Certamente, a atividade criativa material de Deus ocorreu em seis dias, ao fim dos quais Ele viu tudo o que tinha feito e disse: “Muito bom!” (Gn 1:31). Os céus e a Terra foram acabados (Gn 2:1), mas no sétimo dia Deus terminou Sua obra, não a Terra e os céus, ou fazendo algo imaterial, mas vital, um dia abençoado e santificado (v. 2, 3). O mandamento observa que esse dia foi santificado, e o que faz qualquer coisa ser santa é a presença de Deus. A provisão restante do mandamento faz com que esse dia seja de comunhão entre Deus e os seres humanos a quem Ele criou, sem a distração do trabalho diário.

Quando os homens decidiram gerenciar o mundo pelos seus próprios esforços, achando que seu conhecimento era tão bom quanto o de Deus, logo descobriram que não era (Gn 3:1-7). Mesmo assim, Deus não os abandonou. Ele ainda estava lá para trabalhar por eles e “levá-los para fora da casa da escravidão”. O primeiro ato divino pós-edênico foi fazer roupa apropriada para Adão e Eva, porque as roupas de folhas de figueira, escolhidas por eles, eram inadequadas (v. 21). Assim, esses textos mostram que os pecadores não podem se redimir da escravidão do pecado sem a ajuda de Deus.

Alguns têm visto as imperfeições presentes no mundo e, erroneamente, querem justificar que o trabalho criativo de Deus ainda esteja inacabado e os seres humanos são chamados para terminá-lo.
O trabalho humano é entendido como uma “continuação da obra divina da criação”, e que os homens, “continuam a obra de Deus para transformar a Terra em Céu”.7 Os seres humanos foram designados para completar a obra de Deus e levar o mundo à perfeição.8 Mas o sábado mostra que é Deus quem está trabalhando para nós e conosco. Embora o propósito original do sábado fosse o de revelar a presença contínua de Deus num mundo perfeito que Ele mesmo criou, Deuteronômio nos mostra que uma fantástica lembrança da atividade criativa divina e do Seu desejo de manter relacionamento com a humanidade é que Sua obra era necessária não apenas para nos criar, mas também para nos redimir da escravidão do pecado (Dt 5:15).

Enquanto a atividade criadora de Deus é descrita, praticamente, sem esforço divino – Deus simplesmente falou e o mundo veio a existir, a obra de redimir o homem é apresentada com esforço físico e necessário: “Lembra-te […] que o Senhor, o teu Deus, te tirou de lá com mão poderosa e com braço forte” (Dt 5:15). Deus não Se retirou para deixar a humanidade “tentar” limpar o mundo do pecado, mas Ele está presente com Seu poder para nos redimir. Israel foi advertido para “não esquecer” (isso também nos lembra do mandamento do sábado [Êx 20:8]) que foi Deus quem os tirou do Egito. Foram especialmente advertidos de que sua prosperidade vindoura em Canaã não deveria ser atribuída a seus próprios esforços (Dt 8:11-19).

Assim, o mandamento do sábado em Deuteronômio demonstra que Deus está trabalhando em nosso favor. Diferentemente de ter deixado o mundo para que nós o completemos, Ele está presente para nos ajudar em nossa necessidade de salvação eterna e nas atividades diárias que empreendemos.

A ressurreição de Jesus foi um evento incrível que claramente demonstrou o poder de Deus sobre a morte. Mas essa obra vitoriosa de Deus não pode ser separada do Seu compromisso de trabalhar em favor de todas as coisas que Ele criou e que, no fim, irá fazê-las novas outra vez. Isso macularia nossa apreciação por Sua majestosa obra criadora e redentora.

Jugo de Cristo

Deus fez o sábado não apenas para prover o descanso ao homem, mas também para lhe assegurar que estaria com ele. O sábado é um sinal entre Deus e Seu povo (Ez 20:20). Nós precisamos do descanso físico; porém, Jesus reconheceu nossa necessidade de um descanso mais profundo. Ele nos convida: “Venham a Mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e Eu lhes darei descanso. Tomem sobre vocês o Meu jugo e aprendam de Mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas. Pois o Meu jugo é suave e o Meu fardo é leve” (Mt 11:28, 29).

Ao tomar o jugo de Cristo, reconhecemos nossa incapacidade de alcançar as coisas por nós mesmos. Unidos a Ele podemos nos regozijar na obra que Ele faz em nós e conosco. Deus trabalha conosco permitindo que nosso trabalho seja uma bênção. Deus abençoou o casal original (Gn 1:28). Depois do dilúvio, Deus abençoou Noé e sua família (Gn 9:1). Quando Deus chamou Abrão, Ele prometeu não só abençoá-lo, mas também que ele seria uma bênção aos outros (Gn 12:2).9 Isso pode parecer muito oneroso, na verdade, uma exigência absurda, entretanto a recomendação de Cristo é: “[…] sem Mim vocês não podem fazer coisa alguma” (Jo 15:5). Sem Jesus nada de fato vai acontecer, mas unidos a Ele a ordem para ser uma bênção pode ser cumprida.

Sábado e trabalho

O sábado é, assim, uma linda celebração do trabalho. Embora a obra criadora e redentora de Deus em nosso favor seja celebrada primariamente, o sábado também contém a promessa maravilhosa de que a presença de Deus nos permitirá realizar nosso trabalho de uma forma abençoada. O sábado enobrece nosso conceito sobre o trabalho. Enquanto os seres humanos estão tentando isso desesperadamente para salvar o planeta, prolongar a vida e destruir abusos de todos os tipos, Deus promete que a celebração do sábado, em nossos pensamentos, durante as atividades da semana, se torna uma bênção. O Deus do sábado é o grande Deus trabalhador. Temos o privilégio de participar de Seus planos. “Guardar” o sábado significa mais do que simplesmente ter um dia para descansar. Significa colocar Deus como administrador e agente principal em todos os aspectos de nossa vida profissional.

Portanto, o sábado nos fornece um critério para medir o valor do trabalho realizado. A avaliação da obra da criação foi uma atividade “pré-sabática” de Deus, e Ele disse que “tudo era muito bom”
(Gn 1:31-2:3). À luz da bênção do sábado, todo trabalho que empreendemos também pode ser avaliado. O critério é simples: Tem o seu trabalho, realizado sob o jugo e poder de Jesus, sido uma bênção? Se a resposta for positiva, então, você poderá ouvir: “Muito bem, servo bom e fiel […] Entra no gozo do teu Senhor” (Mt 25:21, 23, RSV) – no descanso sabático eterno, tornado real pela presença de Deus. 

Referências:

  • Norbert Lohfink, Great Themes From the Old Testament, (Edinburgh: T&T Clark 1982), p. 204, 205.
  • Hesiod, “Theogony” e “Works and Days” (New York: Oxford University Press, 2008), p. 38, 39.
  • Ethelyn Simon, Irene Resnikoff, e Linda Motzkin, The First Hebrew Primer, 3ª ed. (Berkeley, CA: EKS Publishing, 2005), p. 255.
  • Veja exemplo da posição contrária em N. Lohfink, Great Themes From the Old Testament, p. 216.
  • David J. A. Clines, ed., The Concise Dictionary of Classical Hebrew (Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2009), p. 95.
  • Jay Patrick Green, ed., The Interlinear Bible: Hebrew-Greek-English (Peabody, MA: Hendrickson, 2011), p. 65, 159.
  • N, Lohfink, Great Themes From the Old Testament, p. 220.
  • Papa João Paulo II, “Laborem Exercens” (1981), seção 25.
  • Laurence Turner, Genesis (Sheffield: Sheffield Academic Press, 2000), p. 64; e W. Lee Humphries, The Character of God in the Book of Genesis (Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 2001), p. 83.