“Procure apresentar-se a Deus aprovado, como obreiro que não tem do que se envergonhar e que maneja corretamente a Palavra da verdade”

A existência da Bíblia, como livro para o povo, é o maior benefício que a humanidade já recebeu. Qualquer tentativa para depreciá-la é um crime contra a humanidade.”1 Essa frase é atribuída ao filósofo prussiano Immanuel Kant. Declarações assim fortalecem as evidências da relevância das Escrituras Sagradas para a sociedade. Quando contemplamos um filósofo racionalista que compreendeu a importância da Bíblia, uma pergunta é inevitável: Estamos nós, como pastores, cônscios da importância das Escrituras, não apenas como um Livro de leitura e reflexão, mas como manual de orientações para nossos expedientes ministeriais? Nossas ações pastorais são realmente marcadas pela Bíblia?

Do ápice da alegria do nascimento e dedicação de uma criança, ao cimo da tristeza de um culto fúnebre, lá deve estar o pastor com seu sermão pronto, fundamentado nas Escrituras. Nesse sentido, o desafio é tão intenso quanto a necessidade do rebanho em ouvir a Palavra. Independentemente da reunião, via de regra, o pastor justifica suas diretrizes em comissões, seja na aplicação de disciplina eclesiástica, liberação de verbas para algum projeto, sempre fazendo uso de argumentos bíblicos. Isso acontece também nas palestras para jovens ou adultos. Ou seja, suas ações têm como fonte epistemológica as Escrituras Sagradas.

Muitas vezes somos convidados de surpresa para dar alguma mensagem das Escrituras em reuniões. Logicamente, oportunidades desse tipo são estímulos constantes para o estudo da Bíblia. Mas essa necessidade vai muito além dos surpreendentes convites feitos. O pastor precisa estar envolvido, relacionado e comprometido com a Palavra de Deus. No conjunto da ortopraxia ministerial deve-se encontrar o cultivo de uma postura bíblica na adoração, na educação, na saúde, na economia, no governo, liderança ou administração. Faz-se necessário estimar a Bíblia como necessidade real em nosso cotidiano ministerial.

Este artigo se propõe a analisar três pontos que evidenciam a necessidade de mantermos nossas ações pastorais firmemente alicerçadas na Palavra de Deus.

Preparo pessoal

O apóstolo Paulo manifestou sua preocupação com líderes das igrejas cristãs de sua época, no que se referia à Bíblia. Observemos algumas de suas orientações:

“Maneja bem a Palavra.” Em 2 Timóteo 2:15, o apóstolo aconselhou enfaticamente o jovem líder Timóteo. Entre muitos conselhos, este merece destaque: “Procure apresentar-se a Deus […] como obreiro […] que maneja corretamente a Palavra da verdade.” Em sua exposição sobre esse texto, Warren W. Wiersbe diz o seguinte: “A Palavra é um tesouro que o despenseiro deve guardar e investir. É a espada do soldado e a semente do agricultor. É a ferramenta do obreiro para construir, medir e reparar o povo de Deus.”2

A expressão grega traduzida nesse verso como “manejar corretamente” (orthotomeo) pode ser interpretada como uma metáfora paulina significando “cortar retamente”, da mesma forma que o lavrador conduz o arado de modo reto, sem desvios. Para William Hendricksen, o líder que manuseia bem a Palavra “não a muda, não a perverte, não a mutila nem a distorce, nem faz uso dela com um propósito errôneo em mente. Ao contrário, ele interpreta as Escrituras em oração e à luz das Escrituras. Aplica seu sentido glorioso, corajosamente e com amor, a situações e circunstâncias concretas, fazendo-o para a glória de Deus, para a conversão dos pecadores e para a edificação dos crentes”.3

Ele completa: “O manuseio próprio da Palavra da verdade implica a rejeição do que está em conflito com seu conteúdo e significado.”4 Talvez isso explique a amalgamação da cultura cristã atual com a cultura da sociedade contemporânea de Paulo.

Nessa orientação paulina podemos extrair diretrizes para que o pastor empregue fidedignamente a Palavra da verdade, que pode ser considerada “testemunho acerca de nosso Senhor” (2Tm 1:8), “evangelho da salvação de vocês” (Ef 1:13), “Palavra de Deus” (2Tm 2:9). Ao considerar esse texto, Hendricksen afirma: “É a verdade redentora de Deus. O modificador da verdade enfatiza o contraste entre a inabalável revelação especial de Deus, de um lado, e o palavrório sem valor dos seguidores do erro.”5

Apego à Palavra fiel. Tito foi outro colaborador que também recebeu orientações pastorais do apóstolo Paulo, a respeito desse assunto: “Apegue-se firmemente à mensagem fiel, da maneira como foi ensinada, para que seja capaz de encorajar outros pela sã doutrina e de refutar os que se opõem a ela” (Tt 1:9). “Você, porém, fale o que está de acordo com a sã doutrina” (Tt 2:1).

Infelizmente, há o perigo de pregarmos com a convicção de um Deus real e presente, mas vivermos como se Ele nunca tivesse existido. Norman Champlin explica o termo “apegar”, ou “reter”, da seguinte forma: “No grego, é ‘antecho’, que significa agarrar-se a, devotar-se a.”6 De Tito, como pastor, não se podia esperar menos do que devoção ou entrega à Palavra, tendo em vista que tanto ele como as comunidades cristãs estavam sofrendo constantes ataques dos hereges.

Preparo constante. O apóstolo Pedro aconselhou: “Estejam sempre preparados para responder a qualquer pessoa que lhes pedir a razão da esperança que há em vocês” (1Pe 3:15). Isso implica preparo pessoal, atitude de autoapologética. Robert M. Johnston explica o contexto originador desse conselho: “Quando os cristãos se afastaram dos anteriores costumes tradicionais e mudaram seu estilo de vida por motivos religiosos, deviam ser capazes de defender verbalmente sua conduta.”7

Esse preparo também implica o preparo da própria igreja. O preparo pessoal do pastor resulta em proteção às suas convicções teológicas, bem como às da igreja. De acordo com Ellen G. White, “Os pastores que trabalham na palavra e na doutrina devem ser obreiros competentes e apresentar a verdade em sua pureza, porém com simplicidade. Devem alimentar o rebanho com forragem limpa, inteiramente joeirada.”8

Por meio da apresentação da sã doutrina, cabe aos pastores o dever de defender o rebanho contra heresias. Essa não somente foi a visão do apóstolo Paulo, mas também a de Pedro. A diferença foi que Paulo focalizou a estratégia de como se preparar, enquanto Pedro enfatizou a necessidade do preparo.

Assim, para Timóteo, o conselho de Paulo foi “manejar corretamente”. A Tito, “apegar-se firmemente”; e Pedro realçou a necessidade de o cristão estar constantemente preparado. Portanto, conclui-se que manter a igreja na sã doutrina é o resultado de um trabalho realizado por alguém que maneja bem a Palavra do Senhor, a retém e não negligencia o preparo nela.

Preparo macro da igreja

A igreja é a instituição escolhida por Deus para a proclamação do evangelho em todo o mundo; a comunidade de fiéis com os mesmos propósitos e filosofia de vida. Para que se mantenha viva e saudável, alicerçada numa perspectiva bíblica, para que seja relevante para a sociedade, a igreja deve ser incólume em pelo menos três aspectos:

Identidade. Elementos como origem profética, características singulares e mensagem peculiar compõem a identidade da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Observe que, caso não possuíssem fundamento bíblico, essas três particularidades indubitavelmente estremeceriam diante das intempéries sociais da cultura e religiosidade em vigor. Logo, aqueles que foram eleitos para exercer função de liderança devem levar ao conhecimento do povo de Deus as bases bíblicas que formam a identidade da igreja. Os membros de nossas congregações precisam conhecer a razão da existência da Igreja Adventista do Sétimo Dia, sua pertinência na sociedade, em que lugar na Bíblia de modo mais específico suas credenciais são apresentadas. Textos como Daniel 8:14, Apocalipse 3:14-21; 10:2-11;
12:17; 19:10, entre outros que evidenciam e notificam nossa identidade, precisam ser pesquisados. Sobre eles devemos refletir e apresentá-los à congregação.

Não apenas a origem da igreja, mas sua mensagem também é profética. “Ergam os vigias agora a voz e deem a mensagem que é a verdade presente para este tempo. Mostremos ao povo onde nos encontramos na história profética.”9 Aqui está um ponto merecedor de atenção especial. Devemos ter profundidade teológica, fugir da superficialidade bem como da homilética filosófica. Os púlpitos das congregações clamam por mensagens proféticas, não necessariamente populares, mas que sejam relevantes, imprescindíveis e essenciais ao contexto profético em que vivemos.

Outro ponto digno de consideração é que, uma explosão de relativismo invade toda a estrutura intelectual e acadêmica no mundo. Onde há espaço para debate, conceitos, subjetividades, a égide da discussão perpassa a relatividade pós-moderna. A igreja como espaço de ideias, discussões e diálogos não estaria fora dessa influência. Orientações teológicas, principalmente as que estão ligadas à ética, antes consideradas como absolutas, hoje são tidas como relativas. Há propostas de uma nova leitura da Bíblia, citando-se o exemplo da leitura sociológica, na qual a Bíblia deve ser apresentada de acordo com a comunidade existente, ou o que está mais perto da necessidade social de determinado grupo humano. Tudo isso é defendido por teólogos que um dia levantaram a bandeira do Sola, Prima e Tota Scriptura. É a transposição da exegese bíblica para a eisegese humana.

“No conjunto da ortopraxia ministerial, deve-se encontrar o cultivo de uma postura bíblica na adoração, na educação, na saúde, na economia, na liderança e administração. Faz-se necessário estimar a Bíblia como necessidade real em nosso cotidiano pastoral”

Nossa mensagem profética é absoluta. Por isso, sempre fez parte de nossa identidade. Observe a exposição de Arthur Holmes sobre o que se configura como verdade absoluta: “Dizer que ela é imutável e universalmente a mesma. A verdade não é absoluta por ela mesma, mas porque provém exclusivamente de Deus único e eterno. Ela está fundamentada na objetividade metafísica da Sua criação. A verdade absoluta aqui sugerida, por outro lado, depende da verdade (ou fé) absoluta particular em Deus, já que podemos confiar em tudo o que Ele faz e diz.”10

Quando são analisados o contexto atual de nossas igrejas e os constantes ataques à sua doutrina, a negligência na leitura e pesquisa da Bíblia bem como na reflexão a respeito dela, no mínimo, coloca em risco a noiva do Senhor.

Adicionado a tudo isso, existe a influência de um novo modelo de religiosidade nas igrejas. Influenciados pelo cientificismo racionalista e a experiência evangélica, estamos vivendo uma espécie de ateísmo cristão, conforme define Augusto Nicodemus: “Ateísmo cristão revelado por alguém que, ao mesmo tempo, tenta redefini-lo usando linguagem e termos evangélicos. Alguém que, na prática, vive como se Deus não existisse.”11 Essa religiosidade que tem influenciado muitas igrejas é caracterizada por uma experiência na qual a opinião humana sobrepõe a orientação divina, a fé é substituída pela lógica, e a razão substitui a Bíblia. Imersos nesses problemas modernos somos desafiados a voltar nossa atenção para as Escrituras Sagradas. Não podemos nos esquecer de que a mensagem profética é o último comunicado de Deus ao ser humano antes da vinda de Cristo, e esse comunicado é a notícia, o aviso que a humanidade necessita.

Santidade. Em se tratando de seres humanos pecaminosos, falar de santidade parece algo fantasioso. No entanto, esse não é um estado de perfeição absoluta, integridade plena, sob o ponto de vista humano. Paulo notificou aos cristãos coríntios que eles deviam aperfeiçoar a santidade (2Co 7:1), evidenciando assim que tal experiência era algo a ser continuamente desenvolvido. Ellen G. White atribuiu algumas definições a esse termo: “Não é prova conclusiva de que um homem seja cristão o manifestar ele êxtases espirituais sob circunstâncias extraordinárias. Santidade não é arrebatamento: é inteira entrega da vontade a Deus; é viver por toda a palavra que sai da boca de Deus; é fazer a vontade de nosso Pai celestial; é confiar em Deus na provação, tanto nas trevas como na luz; é andar pela fé e não pela vista; é apoiar-se em Deus com indiscutível confiança, descansando em Seu amor.”12

Viver em santidade é subsistir como alguém separado por Deus e proceder em coerência com os oráculos sagrados. Seríamos mais imitados e menos rejeitados, se permitíssemos que o Espírito Santo nos santificasse. Estaríamos mais relacionados com a verdade (2Ts 2:13) e mais próximos da comunidade (Hb 12:14). “A influência social santificada pelo Espírito de Cristo deve se desenvolver na condução de pessoas para o Salvador.”13 A igreja terá sua influência ressaltada a partir do grau de santificação notabilizado por seus membros e seus pastores.

Unidade. Para a igreja, ser incólume na unidade significa ser ilesa em sua homogeneidade. Apesar da identidade individual, temos um ponto em comum que é o diferencial e estabelece coesão e harmonia na igreja de Deus. Jesus Cristo, o Ser incomum, é o elemento comum que estabelece harmonia e coesão em qualquer grupo por mais dividido que esteja. Seu modus operandi transforma os grupos mais desconexos em verdadeiros blocos monolíticos da fé cristã.

Em João 17, Cristo orou pela unidade entre Seus discípulos de então, bem como entre Seus discípulos de hoje. Por três vezes, Ele pediu ao Pai que os discípulos fossem “um” (Jo 17:11, 21, 22). Algo de suprema importância é a razão pela qual essa unidade deve existir: “Para que o mundo creia que Tu Me enviaste” (v. 22). A crença na manifestação do Salvador do mundo como homem de Deus está condicionada à unidade da igreja.

Na perícope que compreende os versos 11 a 22, encontramos o seguinte pedido: “Santifica-os na verdade, a Tua palavra é a verdade” (v. 17). Que mensagem poderosa! Entre a unidade e a santidade está a Palavra de verdade. Como afirmou Edson Luiz Dal Pozo, “Cristo chama todos os Seus discípulos à unidade. A resposta que todo cristão deve dar é o testemunho de unidade nEle. A divisão entre os cristãos é um escândalo e um testemunho contrário diante do mundo. A separação entre os cristãos faz com que Suas palavras caiam em descrédito, sem valor de fé. A unidade que Cristo prega não é fim da diversidade, pois é ela que enriquece o espírito da comunidade”.14 Portanto, verifica-se que é impossível reputar identidade, santidade e unidade à parte da Palavra da verdade, nas ações ministeriais.

Preparo micro da igreja

Nossa ortopraxia necessita estar fundamentada na Bíblia, considerando que há necessidade de promover conhecimento das Escrituras, tendo em vista o cristão em seu aspecto individual. Quando em momentos de crises, traumas e dissabores, o pastor geralmente se torna o grande conselheiro encorajador do membro da igreja. Por exemplo, um casal perde seu filho saudável, com poucos meses de vida, ceifado por morte repentina. Qual é a fonte de consolo a que os desesperados pais devem recorrer? Onde buscar esperança, senão nas Escrituras Sagradas? Escreveu o apóstolo Paulo: “Tudo o que foi escrito no passado, foi escrito para nos ensinar, de forma que, por meio da perseverança e do bom ânimo procedentes das Escrituras, mantenhamos a nossa esperança” (Rm 15:4).

O que diremos a uma pessoa que vive escravizada, e por isso mesmo atormentada dia e noite, pelos vícios e pelo ceticismo, e clama por liberdade? A saída é recorrer às Escrituras: “E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará” (Jo 8:32). Aos que se encontram em pecado, o salmista ensina o caminho preventivo: “Guardei no coração a Tua Palavra para não pecar contra Ti” (Sl 119:11). Assim, o uso que os pastores fazem das Escrituras tem grande importância para a solução de questões individuais dos membros da igreja.

Não há dúvida quanto ao fato de que, se estivermos mais aprofundados na Bíblia, as pessoas serão mais facilmente atraídas à mensagem de Deus. Como resultado, nossas igrejas estarão cheias de pessoas vivendo mais perto de Deus. Quando pregamos o que não vivemos e pedimos o que não fazemos, nosso trabalho é fundamentado na areia movediça. Jamais podemos nos esquecer desta realidade: a evidência de que somos discípulos de Cristo, fiéis ministros Seus, é concretizada quando demonstramos estar firmados em Sua Palavra. 

Referências:

  • 1 Henry Hampton Halley, Manual Bíblico de Halley (São Paulo, SP: Editora Vida, 2001), p. 23.
  • 2 Warren W. Wiersbe, Comentário Bíblico Expositivo (Santo André, SP: 2006), v. 1, p. 320.
  • 3 William Hendriksen, Comentário do Novo Testamento: 1 Timóteo, 2 Timóteo e Tito, (São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2001), p. 324.
  • 4 Ibid.
  • 5 Ibid., p. 323.
  • 6 Russell Norman Champlim, O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo (São Paulo, SP: Editora Candeia, s/d), p. 420.
  • 7 Robert M. Johnston, La Bíblia Amplificada: Pedro e Judas (Buenos Aires: ACES, 1999), p. 97.
  • 8 Ellen G. White, Testemunhos Seletos, v. 1, p. 163.
  • 9 ________________ , Ibid., v. 2, p.323.
  • 10 Arthur F. Holmes, All Truth is God’s Truth (Grand Rapids, MI: Eerdmans Publishing Company, 1977), 1977), p. 37.
  • 11 Augusto Nicodemus, O Ateísmo Cristão e Outras Ameaças à Igreja (São Paulo, SP: Editora Mundo Cristão, 2011), p. 79.
  • 12 Ellen G. White, Atos dos Apóstolos, p. 51.
  • 13 ________________ , A Ciência do Bom Viver, p. 496.
  • 14 Edson Luiz Dal Pozo, Para que Todos Sejam Um: Estudo Exegético Teológico de João 17:20-26, tese de mestrado (São Leopoldo, RS: Escola Superior de Teologia), p. 10.