As conclusões da Conferência Bíblica de 1919 sobre Ellen G. White
Entre os assuntos contra os quais dissidentes e críticos da Igreja Adventista do Sétimo Dia têm lançado seus mais ferrenhos ataques, está o papel de Ellen G. White e seus escritos. Afinal, qual é a função que esses escritos desempenham no adventismo? Qual é o nível de autoridade e o tipo e grau de inspiração que eles possuem?
O objetivo deste artigo é analisar brevemente como essas questões foram abordadas na Conferência Bíblica de 1919, realizada em Takoma Park, no estado de Maryland, Estados Unidos, e as dificuldades decorrentes de se aceitar o modelo de inspiração verbal para os escritos de Ellen G. White.
Motivada pelas grandes conferências proféticas realizadas pelos fundamentalistas protestantes no começo do século passado – cujo tema predominante era a iminente vinda de Cristo –, em um mundo abalado pela primeira guerra mundial, a Conferência de 1919 tinha o objetivo de fortalecer a unidade entre os pensadores da Igreja em determinados temas teológicos e pedagógicos.1
O encontro reuniu 65 pessoas, entre “editores, professores de Bíblia e História de nossos colégios e seminários, e membros da Comissão da Associação Geral”.2 As reuniões aconteceram entre os meses de julho e agosto e contaram com a presença do então presidente da Associação Geral, pastor Arthur G. Daniells. Durante a assembleia, foi dada ênfase à necessidade de um estudo mais profundo da Bíblia, e atenção especial aos temas considerados “fundamentos” de nossa fé.3
Entre os tópicos em pauta, constavam: a pessoa e obra mediadora de Cristo; a natureza e obra do Espírito Santo; as duas alianças; os princípios de interpretação profética; a chamada “questão oriental”4; a besta (ou as bestas) do Apocalipse; os 1.260 anos; os Estados Unidos na profecia; as sete trombetas; Mateus 24; e a identificação dos dez reinos de Daniel 7, entre outros.
Esses assuntos foram tratados como estando relacionados à hermenêutica. A preocupação era estabelecer princípios seguros de interpretação.
O tema Ellen G. White
A princípio, o assunto da inspiração de Ellen G. White não estava na pauta, mas surgiu quando, no décimo dia da reunião, o debate tratou da inspiração profética. Os participantes encontraram algumas dificuldades históricas nos escritos da Sra. White. Então, Arthur Daniells percebeu a necessidade de abordar o assunto de maneira mais abrangente. W. E. Howell, que presidia a assembleia, o convidou para explanar esse tema no dia 30 de julho, sob o título: “O uso do Espírito de Profecia em nosso ensino de Bíblia e História”. Durante o debate, surgiram algumas importantes questões.
A primeira, levantada por Clifton L. Taylor, do Departamento Bíblico do Canadian Junior College, tinha que ver com o uso exegético dos escritos de Ellen G. White. Devemos recorrer a ela como intérprete do texto bíblico? Seus comentários sobre textos das Escrituras devem ser considerados autoritativos, infalíveis e a única explicação correta para eles, ou não?
Com o endosso de J. N. Andrews, professor de Bíblia no Washington Foreign Mission Seminary, Christian M. Sorenson, professor de História no Emmanuel Missionary College, e W. W. Prescott, ex-editor da Review and Herald (atual Adventist Review) e então secretário da Associação Geral, Daniells respondeu que assumir uma posição de inerrância em relação a Ellen G. White pode ser perigoso. Ele deixou claro que “não é a nossa posição, nem é correto [afirmar] que o Espírito de Profecia seja o único intérprete seguro da Bíblia”. Afinal, como salientou W. E. Howell, a própria Ellen G. White declarou que a Bíblia é sua própria intérprete.5
Daniells foi também taxativo ao lembrar que as doutrinas adventistas não foram formadas com base em Ellen G. White. Nossas crenças vieram por meio de intenso estudo das Escrituras, sendo posteriormente confirmadas pelo Espírito de Profecia. Assim, o estudante deve recorrer primeiramente à Bíblia. Só então, os escritos de Ellen G. White devem ser utilizados para “ampliar a visão”, bem como outros materiais que o ajudem na compreensão do texto.
Outra questão importante foi apresentada por Prescott: “Como devemos utilizar os escritos do Espírito de Profecia como autoridade para resolver questões históricas?”6 A resposta inicial de Daniells foi que a Sra. White “nunca reivindicou ser autoridade em História” nem declarou ser “mestra absoluta de Teologia. Ela apenas fez declarações fragmentárias, deixando aos pastores, evangelistas e pregadores o encargo de resolver todos esses problemas bíblicos, teológicos e históricos”.7
Qual deve ser, então, a atitude do leitor ao encontrar, eventualmente, dados históricos imprecisos nos escritos de Ellen G. White? Acaso isso deve enfraquecer a fé nesses escritos? Daniells reiterou que a Sra. White nunca “se propôs a definir questões históricas”, uma vez que nem os próprios historiadores concordam plenamente entre si. “Nunca entendi que ela atribuísse infalibilidade às citações históricas.”8
Discutidas essas questões, o ponto mais conflitante da assembleia ainda estava por vir.
Inspiração verbal
Ellen G. White teria sido inspirada verbalmente? Seus escritos teriam sido inspirados palavra por palavra? Antes de tudo, saber como os participantes da conferência consideravam a inspiração da Bíblia é útil para entender como eles consideravam os escritos de Ellen G. White.
Houve duas linhas de interpretação representadas em 1919. Elas concordavam nos pontos essenciais, principalmente no que se refere à autoridade da Bíblia e à necessidade de um estudo profundo da Palavra de Deus. Apesar disso, as divergências entre “progressistas” e “tradicionalistas” ficaram claras à medida que o debate avançou.
Os dois grupos afirmavam que as Escrituras são “verbalmente inspiradas”. No entanto, os progressistas, embora cressem na infalibilidade do texto bíblico, não o consideravam inerrante em cada detalhe cronológico, numérico, histórico ou linguístico. Mais dogmáticos, os tradicionalistas diziam que essa flexibilidade poderia gerar problemas. Assim, adotaram um pressuposto mais rígido: as Escrituras são inerrantes em cada detalhe.
Em relação a Ellen G. White, havia também duas abordagens. O grupo progressista era composto por homens que a haviam conhecido pessoalmente e testemunhado o processo de composição de seus escritos, chegando a participar dele. É possível que Daniells e Precott fizessem parte dessa ala. Os progressistas aceitavam que os escritos da Sra. White, embora inspirados, não são infalíveis. Mesmo alguns deles, que criam na inspiração verbal, entendiam que essa inspiração não implicava inerrância. Aparentemente, os progressistas também faziam distinção entre a Bíblia e o Espírito de Profecia, no que se refere à natureza da inspiração.
Os tradicionalistas eram um grupo mais jovem, que não havia trabalhado com Ellen G. White. Em geral, eles consideravam seus escritos inspirados verbalmente e estando no mesmo nível das Escrituras.9
Arthur Daniells era acusado de ser “cético quanto aos Testemunhos”, pelo fato de não crer que fossem inspirados verbalmente. Segundo W. E. Howell, o ponto de vista da inspiração verbal parecia ser o que mais predominava entre os membros da Igreja e muitos pastores naquela época.10
Dificuldades
Daniells argumentava que algumas dificuldades que a Igreja enfrentava diante dos críticos e dissidentes eram geradas pela crença na inspiração verbal e na infalibilidade de Ellen G. White. Para ele, acusações de plágio, por exemplo, poderiam ter sido evitadas se, desde o início, “tivéssemos compreendido isso do modo como deveria ter sido”.11
Muitos que aceitavam a inspiração verbal ficaram perplexos depois da revisão do livro O Grande Conflito, em 1911, supervisionada pela própria autora, na qual várias alterações técnicas foram realizadas. Se esse livro havia sido inspirado palavra por palavra, e a inspiração é infalível, por que necessitou de ajustes?
Arthur Daniells defendia a ideia de que o profeta é um instrumento divino, mas sua parte humana não deve ser ignorada. Ele lembrou que Ellen G. White repetia com frequência: “Temos este tesouro em vasos de barro”, reconhecendo que era uma frágil mulher, limitada, tentando fazer da melhor maneira possível a obra que lhe havia sido confiada. Daniells afirmou que, a partir do momento em que reconhecemos que ela não era infalível, e que seus escritos não eram inspirados verbalmente, damos oportunidade para a manifestação do humano. Segundo ele, não deveríamos nos surpreender ao encontrar erros (que não afetam a essência da mensagem) nos escritos inspirados – quer sejam da Bíblia ou de Ellen G. White –, pois a inspiração divina não inibe o elemento humano.12
De acordo com G. B. Thompson, secretário da Associação Geral, as controvérsias geradas na Igreja podiam ser atribuídas a “uma educação errada que nosso povo recebeu. Se sempre tivéssemos ensinado a verdade sobre essa questão, não teríamos nenhum problema ou choque na denominação agora. Mas o choque ocorre porque não ensinamos a verdade, e colocamos os Testemunhos num plano em que ela [Ellen G. White] declara que eles não estão. Reclamamos mais para eles do que ela o fez”. Para Thompson, “a evidência e a inspiração dos Testemunhos não estão em sua inspiração verbal, senão em sua influência e seu poder na denominação”.13
Os debates sobre a autoridade e o uso dos escritos de Ellen G. White, bem como sua relação com a Bíblia, ocuparam dois dias da conferência. Embora não tenha estado inicialmente na pauta, esse foi o tema principal da reunião.
“Com relação à infalibilidade, nunca a pretendi; unicamente Deus é infalível” (E. G. White)
Considerações finais
Que relevância têm para nós, hoje, os assuntos abordados naquela assembleia realizada há mais de 90 anos?
Pelo fato de muitos adventistas não terem uma visão clara quanto à natureza da inspiração de Ellen G. White, enfrentamos preconceito e críticas. Somos vistos como tendo uma segunda Bíblia nos escritos dela, o que, sabemos, não corresponde à verdade. Ao longo da história da denominação, foi atribuída a Ellen G. White uma autoridade exagerada que ela mesma nunca reivindicou. Ela afirmou: “Com relação à infalibilidade, nunca a pretendi; unicamente Deus é infalível.”14 William Clarence White, que trabalhou com a mãe por muitos anos, declarou: “Minha mãe nunca reivindicou ser uma autoridade em História.”15
Usando de maneira errada os escritos da Sra. White, muitos acabaram por ofuscar o brilho da “luz maior”, a Bíblia, citando frequentemente o Espírito de Profecia como palavra final, em vez de recorrer às Escrituras com essa finalidade.16 Isso sem falar da perda de credibilidade diante dos críticos e do uso “bélico” que muitos fazem desses escritos, utilizados tantas vezes como espada ou escudo em brigas dogmáticas que giram, em sua maioria, ao redor de assuntos periféricos.
Não queremos aqui, de maneira alguma, diminuir a importância de Ellen G. White como profetisa. Pelo contrário: colocar o Espírito de Profecia na moldura certa e lhe atribuir a função que ele realmente possui (confirmar as verdades bíblicas e orientar a Igreja17) o enaltece, em ver de diminuir seu valor.
Finalmente, a principal contribuição da Conferência Bíblica de 1919 foi evidenciar a coerência do modelo de inspiração do pensamento (dinâmica),18 em lugar da inspiração verbal, como o que melhor explica o processo da inspiração da Bíblia e dos escritos de Ellen G. White, além de confirmar seu papel como mensageira do Senhor.
Referência:
- 1 Michael W. Campbell, The 1919 Bible Conference and its Significance for Seventh-day Adventist History and Theology (Berrien Springs, MI: Andrews University, 2008), p. 81.
- 2 Molleurus Couperus, Revista Spectrum, v. 10, nº 1, p. 25. <http://drc.whiteestate.org/files/890.pdf>, acessado em 3/6/2013.
- 3 Michael W. Campbell, Op. Cit., p. 81.
- 4 A “questão oriental” se referia à interpretação sobre quem era o “rei do Norte”, em Daniel 11. Ver Schwarz apud Herbert E. Douglass, A Mensageira do Senhor (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2000), p. 440.
- 5 Conselhos aos Pais, Professores e Estudantes, 462.
- 6 Report of the 1919 Bible Conference, 30 jul., p. 1202. <http://docs.adventistarchives.org//documents.asp?q=documents.asp&CatID=19&SortBy=1&ShowDateOrder=True>, acessado em 3/6/2013.
- 7 Herbert E. Douglass, Op. Cit., p. 435.
- 8 Report of the 1919 Bible Conference, Op. Cit., 30 jul., p. 1212.
- 9 Michael W. Campbell, Op. Cit., p. 168.
- 10 Herbert E. Douglass, Op. Cit., p. 436.
- 11 Michael W. Campbell, Op. Cit., p. 164.
- 12 Report of the 1919 Bible Conference, Op. Cit., 1o ago., p. 1243.
- 13 Ibid., p. 1238.
- 14 Mensagens Escolhidas, v. 1, p. 37.
- 15 Owen apud Molleurus Couperus, Op. Cit., p. 25.
- 16 O Colportor-Evangelista, p. 125.
- 17 Ver Mensagens Escolhidas, v. 3, seção 2, “Princípios de Inspiração”.
- 18 Segundo a teoria da inspiração do pensamento, o Espírito Santo atua na mente do autor/profeta, dirigindo seus pensamentos, não necessariamente suas palavras. De acordo com esse modelo, o profeta estaria livre para expressar com sua própria linguagem a mensagem revelada por Deus. A teoria da inspiração do pensamento se opõe às teorias da inspiração verbal e da inspiração mecânica (ditado), para as quais Deus é o Autor de cada palavra e detalhe do texto sagrado.