Escreveu Corneille: “Triunfamos sem glória quando conquistamos sem perigos.” (1) Penso que não é êste nosso caso, como igreja. Nós, em conjunto com tôda a criação, gememos na ardente expectativa de ser libertos “do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus.”(2) A crise na qual já ingressamos, e que se irá acentuando até um grau inimaginável, não é senão o resultado da soma de uma série de perigos interiores e exteriores que ameaçam a Igreja e procuram eclipsá-la, destruí-la. Recentemente o presidente de nossa obra em todo o mundo, pastor Pierson, identificou êsses perigos potenciais que se adensam no horizonte da igreja: erosão da fé, secularismo crescente, hipocrisia, apatia, desonestidade, ausência de conversão, e inatividade. (3)

Mas sem perigo não há glória, e sem crise não há vitória, por isso dizemos como Paulo: “Graças, porém, a Deus que em Cristo sempre nos conduz em triunfo.” Oh! S. Paulo conhecia perfeitamente os perigos dos seus dias, os riscos e ameaças sempre impendentes sôbre o ministério da Igreja. Êle os sentiu repetidamente em sua própria vida. Em sua segunda carta aos Coríntios, cap. 11, menciona-os pormenorizadamente: perigos exteriores que não o preocupam muito, perigos interiores que lhe angustiavam o espírito a ponto de arrancar-lhe lágrimas. Todavia, já no crepúsculo de sua vida pôde escrever: “Tudo posso nAquele que me fortalece.” (5) Sua confiança na igreja foi sempre total, inalterável. Jamais duvidou do triunfo final da igreja de Deus, embora mais de uma vez se referisse, penalizado, a fracassos de certos indivíduos, mesmo de colaboradores no evangelho, que o desampararam, amando mais o mundo.

Ao dedicar êste tema aos perigos da igreja, lembremo-nos de que a igreja não é um ente impessoal, mas sim um edifício santo, no qual, sôbre o fundamento de Cristo e Seus mensageiros, profetas e apóstolos, nós mesmos estamos sendo edificados. Esta estrutura divina não corre perigo; não há potência na Terra, nem poder ao inferno, nem energia alguma do cosmos, que possa sequer fazer perigar o seu triunfo. Pode a igreja ter muitos defeitos e imperfeições, mas é na Terra o único objeto ao qual Cristo confere Sua atenção suprema. É seguro o seu triunfo.

Entretanto, o que não está determinado é quem são os que vão triunfar com a igreja. É no plano individual que os perigos se tomam sérios e graves. Escolhos imprevisíveis podem levar ao desastre. Daí a importância do conselho inspirado: “Mantendo fé e boa consciência, porquanto alguns, tendo rejeitado a boa consciência vieram a naufragar na fé.” (6)

Já deixamos o Egito e aproximamo-nos de Canaã. Êsse penoso caminho, da escravidão para a gloriosa herança dos santos em luz, foi percorrido em mais de uma oportunidade, pelos escolhidos de Deus. “Na areia estão as pegadas dos que já passaram …” Os perigos estão indicados claramente, porque “estas coisas lhes sobrevieram como exemplos, e foram escritas para advertência nossa, de nós outros sôbre quem os fins dos séculos tèm chegado.”

“O percurso dos filhos de Israel foi descrito fielmente; a libertação que o Senhor operou em seu favor, sua perfeita organização e sua ordem especial, seu pecado em murmurar contra Moisés, e portanto contra Deus, suas transgressões, suas rebeliões, seus castigos, seu esqueletos semeados pelo deserto por motivo de sua falta de vontade em submeter-se aos sábios planos de Deus — êste quadro fiel acha-se colocado diante de nossos olhos, como advertência para não seguirmos seu exemplo de desobediência, e cairmos como êles.” (8)

Faz algum tempo, uma revista da igreja Congregacional publicou interessante descrição de quadro novas espécies de aves eclesiásticas. Entre elas aparecia a denominada Statisticus primus: distingue-se por seu grande amor aos números de tôdas as classes; pode somar, dividir e obter as médias com grande facilidade, e cita-as freqüentemente, mas perturba-se fàcilmente com números pequenos; seu alimento preferido são áridas estatísticas, que ingere em grandes quantidades; desenvolve-se especialmente em igrejas crescentes, pois lhes agrada reunir-se em grandes agrupamentos e, de ângulos diversos, contar repetidamente os seus componentes. (9) Nem a publicação que estamos citando, nem quem isto escreve, são contra as estatísticas: são necessárias e altamente orientadoras; mas o perigo está no uso que se lhes dê.

Depois de passar um ano junto do Sinai, o povo de Israel encontrava-se estatisticamente muito bem. Tudo havia sido organizado, até aos mínimos pormenores. Acompanhava-os a prosperidade sanitária e econômica. O abastecimento de víveres realizava-se com tôda a regularidade, mediante o maná e ocasionais provisões de codornizes. Outros pormenores de seu bem-estar foram providos pela refrigerante nuvem diurna e a providente coluna de fogo noturna. A água não era problema, nem se lhes desgastava a roupa e o calçado. Era natural que o povo começasse a encontrar prazer no que conseguira; e quando a ordem divina lhes indicou que deviam abandonar o monte e viajar para o norte, imediatamente se ergueu a grita de protesto. Taberá foi o nome que recebeu êsse lugar, e Taberá significa incêndio, porque ali o fogo do céu fêz cessar os protestos, demonstrando o desgosto com que Deus olha ao comodismo em Seu povo.

Ameaça-nos porventura êsse comodismo? Estamos projetando boa imagem na comunidade: os artigos periodísticos acêrca de nossa obra, escritos em têrmos de admiração e respeito, publicam-se com bastante freqüência. Gozamos o favor do povo e somos, mesmo, de certo modo, populares. Com raras exceções, somos olhados com respeito e estima. As fotografias de prefeitos, com tesoura nas mãos, prontos para cortar a fita que dá acesso a uma nova instituição adventista, são freqüentes. É que estamos crescendo.

Acaso não estamos satisfeitos, e não nos sentimos lisonjeados com o conseguido? É claro que sim, e com justa razão. Existem, porém, perigos que nos espreitam no terreno dêsse conformismo: é que êsses fatos não constituem os sinais distintivos do povo de Deus. Uma coisa é sentirmo-nos gratos a Deus pelo que tem feito por Sua igreja até aqui, e outra muito diversa e descansar confiados nos supostos méritos do que se realizou. Coisa terrível é tosquenejar e adormecer sem perceber que o azeite das lâmpadas se vai acabando, ou já se acabou, porque a obra há de ser concluída “não por fôrça nem por poder, mas pelo Meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos.” (10)

Ernesto Troelstch e Max Weber, em uma série de estudos eclesiásticos recentes, parecem ter demonstrado, acima de tôda a dúvida, que os movimentos religiosos seguem uma rota inexorável: iniciam-se com o fervor e o entusiasmo da seita, para terminar no conformismo e na mornidão da igreja. Êsses autores distinguem quatro etapas no processo: seita, denominação, denominacionalismo e igreja. (11) Será que nossa igreja está percorrendo êsse mesmo trilho, ou mantemos ainda o espírito fervoroso e a disposição ao sacrifício demonstrados por nossos pioneiros?

Liston Pope, em uma obra aparecida há pouco, acentua as diferenças mais notáveis entre os dois estados opostos: seita e igreja. (12) A seita acentua a interpretação bíblica literal; a igreja, ao contrário, incorpora o pensamento humanístico e científico em sua interpretação das Escrituras. A seita mantém uma rígida comunidade moral, excluindo de seu seio os membros indignos; na igreja não se encontra tal rigor: só requer que a conduta se ajuste às normas sociais existentes, e antes de tomar alguma medida disciplinar, considera tôdas as possíveis repercussões do caso. A seita busca e anima a participação da congregação; na igreja, a liderança leiga foi suplantada por um reduzido grupo especializado. O culto da seita é fervoroso; na igreja tudo é regido por uma liturgia mais ou menos elaborada. A seita dá grande ênfase à evangelização e aos avivamentos; na igreja essas atividades são olhadas como chegadas ao fanatismo, e a ênfase é sôbre a educação.

Prossegue a lista de comparações, mas as acima dadas são ilustrativas. Não nos agrada ser chamados seita. Pensamos que nessa palavra há certa qualificação depreciativa. Ao contrário, buscamos o reconhecimento por parte dos grandes corpos religiosos da cristandade, e ficamos satisfeitos por o havermos em parte conseguido. Triste seria que êsse conhecimento fôsse fruto de uma perda de nossa investida evangelística e do fervor de nossos pioneiros na proclamação e testificação de nossa mensagem distintiva.

“Revivam a fé e o poder da igreja primitiva, e o espírito de perseguição reviverá também, e o fogo da perseguição voltará a acender-se.” Estas são palavras com as quais termina o segundo capítulo do O Conflito dos Séculos. (13)

Corremos realmente o risco do concessionismo do compromisso, do conformismo? Ricardo Niebuhr faz notar que só em casos muito excepcionais o fervor da primeira geração se manifesta também na segunda. Em que geração nos encontramos nós? Com certo alarma, e ao mesmo tempo não sem alguma esperança e alegria, li faz algum tempo do batismo do primeiro adventista da sexta geração. (14) Celebrou-se em nosso colégio do Oriente Médio, em Beirute (Líbano), a 3 de junho de 1961. Com alarma, porque êsse fato fala de nossa demora em completar a obra de que fomos incumbidos; mas também com alegria, porque demonstra que os adventistas ainda mantemos nosso amor à verdade. Mas, mantemos realmente o fervor e o espírito de sacrifício de um José Bates, de um Tiago White, de um João Loughborough, de um Francisco Westphal? Não será que o longo contato com o mundo e seus costumes está comprometendo nossa identidade? Pois a mente vai-se adaptando ao que contempla. . . .

Em um capítulo referente à moda e ao vestuário, a mensageira do Senhor chegou a esta conclusão: “O povo de Deus perdeu, em grande medida, sua peculiaridade, e se tem adaptado gradualmente aos cânones do mundo, com êle se misturando a ponto de assemelhar-se aos mundanos.” (15) E em um artigo de caráter mais geral, acrescentou: “Muito do professo e peculiar povo de Deus está tão conformado com o mundo que já não se distingue de seu caráter peculiar e se torna difícil diferençar entre ‘o que serve a Deus e o que não O serve’.” (16)

Creio, com tôda a convicção, que o conformismo é um dos nossos maiores perigos. Afrouxa a vigilância e anuvia o entendimento. Em sua esteira o mundo se introduz na igreja, e com êle muitos outros males e perigos a atacam. Como oraria nosso Senhor, se estivesse na Terra hoje! “Não peço que os tires do mundo; e, sim, que os guardes do mal. Êles não são do mundo como também Eu não sou.” (17) Com fervor aconselhou o apóstolo: “Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nêle; porque tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não procede do Pai, mas procede do mundo. Ora, o mundo passa, bem como a sua concupiscência; aquêle, porém, que faz a vontade de Deus permanece eternamente.” (18) Portanto, irmãos, “não vos conformeis com êste século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.” (19)

(Sermão pronunciado por Humberto R. Treyer, em Embalse del Rio Tercero, Córdoba, por ocasião da 21.Assembléia da União Austral dos Adventistas do Sétimo Da, na noite de quarta-feira, 24 de dezembro de 1969.)

Referências
  • 1. Lewis C. Henry, ed., Five Thousand Quotations for all Ocasions, Garden City, New York. (Doubleday & Company, Inc., 1945), pág. 54.
  • 2. Rom. 8:21.
  • 3. Robert H. Pierson, “Wy are we here, and Where are we going.” The Review and Herald, 13 de novembro de 1969, pág. 9.
  • 4.  II Cor. 2:14. ‘ 5. Fil. 4:13.
  • 6. I Tim. 1:19.
  • 7. I Cor. 10:11.
  • 8. Testimonies, Vol. 1, pág. 652.
  • 9. Frank M. Weiskel, “Ecclesiastical Bird Watching.” Christianity and Crisis, fev. 3, 1958. Citado in The Ministry, set. 1958, pág. 16.
  • 10.  Zac. 4:6.
  • 11. William Loveless, ‘‘Indian Summer.” The Ministry, set. 1965, págs. 26 e 27.
  • 12. Liston Pope, “Milhands and Preachers,” citado por William Loveless, “Indian Summer.” The Ministry, set. 1965, pág. 27.
  • 13.  O Conflito dos Séculos, pág. 52.
  • 14. G. Artur Keough, “A Sixth-Generation Adventist,” The Ministry, out. 1961, pág. 12.
  • 15.  Testimonies, Vol. 5, pág. 525.
  • 16. Testimonies, Vol. 2, pág. 125.
  • 17.  S. João 17:15 e 16.
  • 18. I S. João 2:15-17.
  • 19.  Rom. 12:2.