Refutações a estas provas baseadas na verdade imortal e sua união com a alma.

Agostinho adianta-se em responder a duas refutações apresentadas contra o argumento da verdade:

  • a. “A ignorância e o esquecimento, e mesmo a própria estultícia, podem significar, com o alheamento da razão e da imutável realidade da verdade, uma aproximação ao nada e, por conseguinte, à morte.” 1

Agostinho responde distinguindo entre “tender ao nada e chegar ao nada.” Baseando-se no argumento da indestrutibilidade da matéria, já apresentado por numerosos filósofos, diz que o “corpo . . . por mais que se fracione nunca deixa de sê-lo. . . . Muito menos se deve temer isso quanto à alma, que é em realidade me-lhor e mais vital que o. corpo, ao qual comunica a vida.” 2

Isto diz Agostinho, baseado no princípio do melhor. O corpo, “apesar de suas constantes e ordenadas transformações,”, apesar de sua mutabilidade, continua existindo. “A alma, sobejamente mais nobre que o corpo, deve durar na existência sob a ação criadora e conservadora de Deus.” 3

A esta argumentação agostiniana poderiamos responder que o princípio do melhor nem sempre opera como o supõe Agostinho. Sabemos que o corpo, conquanto não deixe de ser matéria, ao ser fracionado deixa, sim, de ser corpo, na concepção que antes se tinha dêle. Isto é, os elementos que o faziam corpo, passam a integrar corpos muito distintos na forma, e às vêzes também na natureza. De maneira que deixa de existir com a unidade do que era, para ser outra coisa. Por isso, o basear-se, como o faz Agostinho, no princípio do melhor para remontar logo à imortalidade da alma, é dar um passo demasiado grande. Por mais nobre que seja a alma, deve durar, como o diz Agostinho, “sob a ação criadora e conservadora de Deus.” E em relação a isto perguntamos: Como conclui êle que Deus não pode retirar essa “ação criadora e conservadora”? Teríamos assim, neste estudo, como único recurso seguro para resolver êste ponto, de passar a um plano teológico, bíblico. Mas o importante é notar que esta argumentação não tem valor como filosófica, por mais pêso que alguns lhe queiram dar.

  • b. Outra refutação do argumento da verdade é a da existência da falsidade. Agostinho também responde, mas indubitavelmente também aqui perdem fôrça os seus argumentos.

Afirma que “está bem claro e manifesto quanto pode prejudicar a alma a falsidade. Porque, pode fazer mais do que induzi-la em êrro? Mas só se engana quem vive. Não pode, por conseguinte, a falsidade matar a alma.” 4

Busca também explicar isso de outra forma. “Deus não tem mais contrário que o não ser. Logo a verdade que se confunde com o primeiro ser não pode ter um contrário pelo que deixe de existir. Por conseguinte, tampouco a alma, que recebeu o ser e a verdade daquela primeira essência e verdade divina, pode morrer.” 5

Dissemos que perde fôrça seu argumento porque pode ser explicado dando-lhe um sentido muito diferente. Dá a entender que a falsidade só existe enquanto vive a alma humana, e quer então concluir dizendo que isto demonstra que a existência da falsidade não pode matar a alma, sugerindo assim que ambas coexistem, e que portanto a alma é imortal.

Não procede esta conclusão de Agostinho, pôsto que, a menos que explique a imortalidade do êrro, pode-se dizer que pelo fato de ter a alma algo de verdade, vive; e por isso que tem também êrro, com o tempo deve morrer. Quer dizer que a alma humana vive por algum tempo graças à parte de verdade que tem, mas que, devido ao êrro, pode morrer. Podem-se tirar ambas as conclusões, de maneira que nenhuma delas é indiscutivelmente válida.

Por outro lado, a explicação de que a verdade — Deus — “não pode ter um contrário que deixe de existir,” tampouco serve para demonstrar que a alma não pode morrer. Isto só se pode dizer daquilo a que Agostinho chama “verdade íntegra,” ou da totalidade da verdade — Deus. Conquanto “a alma” tenha “recebido o ser e a verdade daquela primeira essência e verdade divina,” também poderia ser que a verdade que haja recebido seja a verdade de que poderia morrer, e isto devido ao êrro que a “prejudica.”

Notemos aqui que estamos usando a mesma espécie de argumento do qual parte Agostinho para provar a imortalidade da verdade: “Se perece a verdade, não será verdade que a verdade pereceu?” Como o homem só pode possuir parte da verdade, e não se baseia necessàriamente em um princípio regedor verdadeiro para interpretá-la, suas conclusões amiúde o levam ao êrro e à falsidade. Mais: o homem apartou-se da verdade, e por isso essa “condição de união” da verdade com a alma que, segundo Agostinho, é a razão, também se acha cheia de êrro, como já vimos. E afastando-se da verdade, afastou-se dAquele que disse: “Eu sou … a verdade e a vida. De maneira que não há neste ponto base filosófica que prove a imortalidade da alma. A apresentação no plano teológico precisa da Bíblia como fundamento. Ela não apóia essa maneira de pensar.

  • II. A Felicidade não Pode Deixar de Existir

Agostinho cuida também de provar a imortalidade da alma mediante a argumentação seguinte :

  • 1. Todos querem ser felizes.
  • 2. “A vida feliz consiste no gôzo da verdade”; êsse gôzo é a verdade de Deus, que é “a verdade, a iluminação e saúde” da alma. A “apreensão desta verdade significa sua aquisição total, nas asas de uma tendência rumo de Deus. … Lá onde encontrei a verdade, encontrei a meu Deus.” 6 Esta apreensão da verdade, aparentemente, como podemos observar, dá-se intuitivamente.
  • 3. “Pois bem, se todos os homens querem ser felizes, quererão também ser imortais, pois do contrário não poderão conseguir a felicidade. . . . Naquele vida … o homem . . . possuirá o sumo bem, que é Deus, fruição plena para os que O amam e felicidade alcançada e sempiterna.” Devemos esclarecer que “não há mais que uma substituição da suma verdade pela sua bondade, que no fundo coincide com a verdade . . . porque o Filho de Deus imprimiu em nossa natureza o anelo de felicidade e imortalidade.” 7

Esta prova baseia-se em grande medida na Sagrada Escritura e de certo modo no instinto de conservação do homem que, somado ao anelo de felicidade e imortalidade, nos revelaria a natureza de nossa alma. É, porém, preciso notar que nem todos aceitam as condições estipuladas pelo Livro sagrado para chegar a essa felicidade, e por conseguinte a imortalidade poderia ser relativa em certos casos. Muito mais se poderia dizer dessa argumentação, mas cremos não ser necessário insistir.

  • III. Prova Baseada na Fé do Filho de Deus

Sobre isto diremos apenas que, segundo Agostinho, “a fé, apoiada não em argumentos da razão, senão na autoridade de Deus, promete a imortalidade futura, e portanto a felicidade verdadeira, a todo homem, composto de alma e corpo.”8 Isto é: Deus libertou o homem de sua mortalidade por meio da Encarnação do Verbo. Devemos de nôvo recordar que tôda vez que Agostinho fala da mortalidade da alma, refere-se à sua separação de Deus pelo pecado, e não quer dizer que perca essa “fôrça de vida inextinguível.”

Conclusão

Tôdas as provas aduzidas por Agostinho em favor da imortalidade da alma podem-se refutar dizendo que, assim como Deus pode criar uma alma susceptível de imortalidade, pode também tirar-lhe essa capacidade. Agostinho, ao recorrer à Bíblia para apoiar sua doutrina, encontra certas dificuldades que resolve de maneira engenhosa, mas não de todo convincente, se atentarmos para o contexto bíblico.

A idéia de Agostinho, de que a alma morre ao separar-se de Deus, mas continua existindo de um modo singular, fá-lo desembocar em outras dificuldades com o texto bíblico, que êle não expõe. Uma delas é a que resulta de afirmar que a alma tem capacidade de conhecer depois da morte do corpo, e ainda maior por ver-se já livre do corpo. Não recorre neste caso ao Salmo 146:4 nem a tantas outras passagens bíblicas que dizem claramente o contrário. Apóia-se na parábola do rico e Lázaro. Cai em outra dificuldade ao ter que admitir que tanto as almas dos ímpios como as dos justos são imortais e que, portanto, viverão eternamente. Isto o leva inevitàvelmente a aceitar o castigo eterno dos maus, e prepara o caminho para a doutrina do purgatório.

Não é, pois, de estranhar o que disse E. G. White: “A teoria da imortalidade da alma foi uma das falsidades que Roma tomou emprestadas do paganismo, incorporando-as à religião da cristandade . . . doutrina que, semelhantemente à do tormento eterno, se opõe aos ensinos das Escrituras, aos ditames da razão, e a nossos sentimentos de humanidade.” 9 Declara com tôda a precisão que “sôbre o êrro fundamental da imortalidade inerente, repousa a doutrina da consciência na morte.” 10 O ensino da imortalidade da alma “se opõe aos ensinos das Escrituras,” a crença no estado consciente dos mortos choca-se com “os ditames da razão,” e a doutrina do tormento eterno fere “nossos sentimentos de humanidade.”