A experiência com a Palavra de Deus é objetiva, individual e insubstituível
Há duas imagens do concilio da Divisão Sul-Americana, em Foz do Iguaçu, no mês de maio, que ficaram na mente dos pastores. Na cerimônia de encerramento, todos receberam uma simbólica miniatura de igreja e se comprometeram a fazê-la brilhar. A cena-clímax do concilio foi quando essas igrejas foram erguidas, iluminadas em seu interior. Na abertura da programação, todos tinham recebido uma Bíblia; e, com a mão sobre ela, fizeram um voto de pregar a Palavra de Deus, comprometendo-se com a conclusão da proclamação da breve vinda de Cristo ao mundo.
A igreja iluminada e colocada no alto é símbolo da presença do Espírito Santo, do batismo no fogo, que vai atrair a atenção de todo o mundo no auge do alto clamor, quando a mensagem da salvação e do juízo ecoará por todos os domínios da Terra, preparando a humanidade para estar na presença do Rei dos reis. A fonte dessa luz é identificada na visão das duas oliveiras (Zacarias 4), na parábola da videira e das dez virgens, bem como na visão das duas testemunhas no Apocalipse: as Escrituras Sagradas.
Diante do chamado para reavivamento e reforma, a igreja precisa refletir sobre o significado e a centralidade da Palavra para essa experiência escatológica. É preciso enfatizar a importância e a centralidade da Bíblia na mensagem do advento bem como estar alerta para os perigos que podem comprometer o brilho da Lâmpada para os pés e da Luz para o caminho.
O Espírito e a Palavra
A visão das duas oliveiras sugere uma relação direta e condicional entre a Palavra de Deus e a outorga do Espírito Santo. No contexto da restauração do templo, relato que se coloca em paralelo com a restauração da verdade no mundo por parte do remanescente, o líder Zorobabel e o sumo sacerdote Josué receberam a garantia de que, pelo poder do Espírito Santo, a obra deles seria concluída. A visão indicava o meio da recepção do Espírito, representado pelo azeite. Entre as lâmpadas e as oliveiras havia uma botija e tubos que as ligavam umas às outras permitindo o brilho da luz.
A mesma relação é realçada na parábola da videira em que Cristo afirma que não podemos “produzir fruto” se não permanecermos nEle, que é a Palavra encarnada (Jo 15) e a fonte do Espírito (Jo 20:22).
O Apocalipse retoma a visão de Zacarias, ao falar das duas oliveiras como sendo o Antigo e o Novo Testamento. “São estas as duas oliveiras e os dois candeeiros que se acham em pé diante do Senhor da Terra” (Ap 11:4).
O comentarista Mathew Henry diz que há uma interface clara entre a visão das oliveiras em Zacarias e as visões dos sete castiçais no Apocalipse (Ap 1:20) e das duas testemunhas (Ap 11). Ao relacionar as duas testemunhas com as duas oliveiras, o Apocalipse estabelece uma conexão entre a Palavra e o Espírito Santo, que já estava clara nos ensinos de Cristo: a fonte do Espírito é a Palavra e a recepção dEle só pode ocorrer mediante submissão a ela. A Palavra encarnada e a Palavra escrita são colocadas em plena identificação.
Assim, os tubos da visão de Zacarias, ligando as oliveiras aos castiçais, apontam para uma relação direta e objetiva entre a Palavra de Deus e os crentes: condição clara para recepção do poder do Espírito Santo, sem o qual a conclusão da missão é impossível. Esses tubos mecânicos são um símbolo eloquente da necessidade de comunhão, estudo e submissão à Palavra revelada de Deus.
Jesus, a Palavra viva e encarnada de Deus, mostrou a importância e a autoridade da Palavra escrita, ao Se submeter Ele mesmo a essa autoridade. Cada vez que pronunciou o célebre “está escrito” (Mt 4:4, 7,10), Ele deu prova de que, como Deus e Salvador, o autor da Palavra Se submetia à autoridade dela.
A Palavra no adventismo
A fim de exercer sua função na igreja, as Escrituras precisam ser aceitas como única regra de fé e prática. No desenvolvimento do adventismo, as Escrituras foram a única fonte da verdade.
Nos primeiros anos de circulação da Review and Herald e de outras publicações adventistas, havia muita suspeita em relação a visões e sonhos. Tiago White chegou a escrever que “como muitos tinham preconceito contra visões, achamos melhor não inserir nada dessa natureza em nossas publicações regulares” (RH, 21/07/1851). Essa atitude mostra quão central era a Bíblia para esses pioneiros interessados numa completa restauração do lugar da Bíblia em detrimento de toda tradição e vontade humana.
Em outubro de 1855, ele voltou ao tema para dizer que “as opiniões publicadas em nossas colunas são todas extraídas das Sagradas Escrituras. Nenhum escritor da Review tem jamais se referido a elas (visões da Sra. White) como autoridade em qualquer ponto… O lema da Review tem sido A Bíblia e a Bíblia somente, a única regra de fé e prática’” (RH, 16/10/1855).
Alguns críticos alegaram que a doutrina do santuário, que exerce função estrutural na teologia adventista, seria resultado de visão mais do que de estudo das Escrituras, o que não corresponde aos fatos históricos.
A doutrina do juízo investigativo, muito questionada por essas pessoas, foi resultado de oração e estudo das Escrituras. O pesquisador adventista Merlin D. Burt diz que a ideia de que uma visão por parte de Hiram Edson teria sido a base dessa doutrina não tem apoio histórico. Pois, as publicações acerca desse tema naquele contexto não fazem referência a essa visão, mas ao estudo exaustivo das Escrituras por parte do próprio Edson, do médico Frederick B. Hahn e do professor Owen R. L. Crosier, autor do célebre artigo “A lei de Moisés”, considerado marco inicial na compreensão do santuário celestial e do juízo investigativo, e o ponto decisivo para esclarecer o desapontamento de 1844.
A única fonte a mencionar a visão de Edson é um fragmento de manuscrito do próprio Edson, que provavelmente foi escrito décadas depois. Burt afirma que publicações adventistas só fizeram referência à experiência de Edson, no milharal, depois de sua morte, em 1882. Uma longa carta de Edson escrita em maio de 1845, e publicada pelo Jubilee Standard, não faz referência à questão do santuário nem a uma visão. Se ele teve uma visão logo após o desapontamento e a tivesse usado para estabelecer uma doutrina, essa visão teria sido divulgada rapidamente, uma vez que esse era um grande problema a ser superado por aqueles crentes. Mas, nesse caso, eles teriam descoberto uma verdade revelada por meio de outra revelação e não pelo estudo das Escrituras. Deus não revela de forma sobrenatural o que podemos aprender por nós mesmos por meio da Bíblia.
O artigo “A lei de Moisés” foi publicado somente em 07/02/1846, numa edição extra do Day-Star, um ano e meio após o desapontamento. Até esse tempo os adventistas estiveram discutindo e buscando uma solução para o caso. Burt considera uma tradição a ideia de que uma visão teria dado início a essa doutrina, e propõe que Edson pode ter tido um insight, no contexto de seus concentrados estudos sobre o tema, cuja data pode ter sido deslocada no registro que menciona o fato, já que foi feito muito tempo depois.
Ellen White afirma que, após o desapontamento, seguiu-se “cuidadosa investigação das Escrituras, de todos os textos que tocavam neste assunto”, por parte de Hiram Edson, Hahn e Crosier, os quais eram íntimos associados. “A então extensa apresentação [‘A lei de Moisés’], bem comprovada pelas Escrituras, levou esperança e coragem ao coração deles, ao mostrar claramente que o santuário devia ser purificado ao fim dos 2.300 dias no Céu e não na Terra, como haviam crido então” {Cristo em Seu Santuário, p. 9). Em abril de 1847, ela falou sobre o artigo de Crosier, acerca do santuário: “O Senhor me mostrou em visão, passado mais de um ano, que o irmão Crosier tinha a verdadeira luz sobre a purificação do santuário”, e que “foi de Sua vontade que o irmão Crosier escrevesse a compreensão que ele nos apresentou no Day-Star extra, em 7 de fevereiro de 1846. Sinto-me inteiramente autorizada pelo Senhor a recomendar este extra a cada fiel” (A Word to the Little Flock, p. 12).
Mais tarde, Ellen White afirmou que seu esposo, José Bates, Stephen Pierce, Hiram Edson e outros “achavam-se entre os que, expirado o tempo de 1844, buscavam a verdade como a tesouros escondidos”, com oração e estudo fervoroso {Mensagens Escolhidas, v. 1, p. 206).
Esse fato encarece a ideia de que as Escrituras são a única e suficiente fonte no entendimento da vontade de Deus. Sugere também que visões foram dadas a Ellen White a fim de confirmar ou ampliar as descobertas feitas e validar os pontos doutrinários alcançados mediante oração e estudo exaustivo das Escrituras, a não ser em casos de temas não revelados até então.
A convicção de que nenhuma crença adventista veio por outro meio senão o estudo da Bíblia também fortalece a noção de que ela é uma fonte completa e inesgotável na revelação da vontade de Deus. Cada tópico acerca da fé e do viver cristão está revelado de forma direta ou indireta, sendo necessário, da parte humana, empenho em garimpar e perscrutar as coisas profundas de Deus, em oração e submissão ao Espírito Santo.
“Na doação do Espírito, a Palavra encarnada e Palavra escrita são colocadas em plena identificação”
A essencialidade das Escrituras
No capítulo intitulado “Nossa única salvaguarda”, no livro O Grande Conflito, Ellen White provê algumas linhas-mestras do que pode ser chamado de visão adventista das Escrituras. A tônica desse capítulo é a necessidade da igreja de identificação com a verdade no contexto da crise final.
Ela diz que “o povo de Deus é encaminhado às Santas Escrituras como a salvaguarda contra a influência dos falsos ensinadores e do poder ilusório dos espíritos das trevas”, no contexto do auge do engano. “Tão meticulosamente a contrafação se parecerá com o verdadeiro, que será impossível distinguir entre ambos sem o auxílio das Escrituras Sagradas”. Por isso, “pessoa alguma, a não ser os que fortaleceram o espírito com as verdades da Escritura, poderá resistir no último grande conflito” (O Grande Conflito, p. 593).
Esse capítulo talvez seja a mais eloquente exaltação da Palavra de Deus. Com base nele, pode-se dizer que o adventismo defende a experiência pessoal e individual com a Palavra de Deus como essencial na vida cristã. Essa experiência com a vontade divina revelada nas Escrituras é indispensável, intransferível e insubstituível. Nesse sentido, as parábolas das dez virgens e a da videira se tornam um pano de fundo para as palavras da mensageira do Senhor.
As Escrituras são a fonte na provisão do azeite, símbolo do Espírito de Deus que traz discernimento e visão espiritual capaz de reconhecer a verdade e separá-la do erro, razão pela qual ela precisa ser independente e plena de autoridade. Assim, é preciso defender a completa independência da Palavra escrita de Deus, em relação à tradição, experiência pessoal, ciência, filosofia e mesmo à teologia, que também é uma ciência.
Diz Ellen White: “Deus terá sobre a Terra um povo que mantenha a Bíblia, e a Bíblia só, como norma de todas as doutrinas e base de todas as reformas”. “As opiniões de homens ilustrados, as deduções da ciência, os credos ou decisões dos concílios eclesiásticos… nenhuma destas coisas, nem todas em conjunto, devem ser consideradas como prova em favor ou contra qualquer ponto de fé religiosa. Antes de aceitar qualquer doutrina ou preceito, devemos pedir em seu apoio um claro Assim diz o Senhor’” (Ibid., p. 595).
Contra o relativismo
Nesse sentido, é bastante atual sua recomendação quando as ciências e a experiência ou a vontade individual tendem a se sobrepor ao que Deus diz em Sua Palavra. Há evidências, lógica e bom senso no saber científico e na experiência pessoal, mas só o claro “Assim diz o Senhor” serve como luz para o caminho num mundo dominado pelo engano, nestes últimos dias.
Deus fala por Sua Palavra de forma clara, simples e direta. As sentenças da Palavra escrita são como a voz de Deus nos falando. Ellen White afirma que “a linguagem da Bíblia deve ser explicada de acordo com o seu sentido óbvio, a menos que seja empregado um símbolo ou figura” (Ibid., p. 599). Ela diz que a verdade é “claramente revelada na Escritura Sagrada”, mas os homens a envolvem “em dúvida e trevas”, ensinando que “as Escrituras têm um sentido místico, secreto, espiritual, que não transparece na linguagem empregada”; mas, estes tais “são falsos ensinadores” (Ibid., p. 598).
A declaração de que “apenas os que forem diligentes estudantes das Escrituras, e receberem o amor da verdade, estarão ao abrigo dos poderosos enganos que dominam o mundo” (Ibid., p. 625) é de valor imensurável nestes dias de relativismo e de verdades plurais. Num mundo que cultua a tolerância e o politicamente correto, tem se tornado comum encarar a verdade como questão de ponto de vista, de interpretação e de paradigmas.
“Quando quer que se afirme que uma declaração das Escrituras possa ser entendida de forma conservadora ou liberal, está se instituindo o relativismo”
A divisão de opiniões acerca da vontade de Deus em termos de uma ala conservadora e outra liberal, na igreja e no mundo, é uma subtileza dos nossos dias, contra a qual a igreja deve estar alerta. Quando quer que se afirme que uma declaração das Escrituras possa ser entendida de forma conservadora ou liberal, está se instituindo o relativismo. Cristo afirmou, em contraste com os mestres da lei, que a vontade de Deus é revelada em claros “sim, sim” e “não, não” (Mt 5:37), e o que passa disso provém do maligno. Não pode haver duas opiniões certas ou aceitáveis acerca de um mesmo ponto de fé e prática, sem que nos tenhamos mergulhado no relativismo pós-moderno.
No contexto pós-moderno, alguém pode argumentar que o conjunto de fé e prática da igreja adventista seja resultado de uma interpretação e não a “verdade” dada ao povo remanescente. No entanto, o que constitui a mensagem adventista e a “verdade” é a libertação da Bíblia em relação à tradição e às interpretações pessoais que se haviam sobreposto às Escrituras ao longo de séculos do grande conflito. A mensagem adventista não é a nossa mensagem ou uma interpretação que fazemos da Bíblia. É a própria voz de Deus falando por Sua Palavra escrita, então livre da tradição e dos dogmas humanos.
Experiência individual e inteligente
A igreja adventista nasceu como movimento de ruptura com a tradição, com a vontade particular e com todas as demais fontes externas que se sobrepunham às Escrituras como a Palavra viva de Deus. Essa igreja prega a necessidade de uma experiência pessoal e individual de cada crente com a Palavra. Não basta que se aprenda acerca de Deus na igreja, com os pastores e lendo livros. Cada crente precisa aprender por si mesmo a vontade de Deus, por meio de Sua Palavra.
De acordo com Ellen White, é estratégia de Satanás levar os crentes “a olhar para os bispos, pastores, professores de teologia como seus guias, em vez de examinarem as Escrituras a fim de por si mesmos, aprenderem seu dever” (Ibid., p. 595). Nesse capítulo do livro, ela usa as expressões “por si mesmos” e “por nós mesmos” diversas vezes, enfatizando a experiência individual com a Palavra de Deus como sendo indispensável e insubstituível.
Essa experiência não é emocional nem formal. É viva, direta, inteligente e transformadora. Enquanto estuda as Escrituras, o crente não busca apenas uma experiência emocional que o faça se sentir feliz e confiante, confortado e tocado nos sentimentos. Em vez disso, essa experiência o envolve como um todo indivisível, incluindo intelecto, que deve ser esclarecido e instruído com a verdade revelada.
Somos aconselhados a “exercer todas as faculdades do espírito no estudo das Escrituras, e aplicar o intelecto em compreender as profundas coisas de Deus”. Isso deve ser buscado “com espírito humilde e dócil para obter conhecimento do grande Eu Sou” (Ibid., p. 599).
A verdade não produz necessariamente um efeito de bem-estar emocional, embora isso possa resultar do conhecimento dela. A verdade é uma Pessoa e se desdobra num conjunto de pressuposições e conceitos que desafiam nossa inteligência. Para muitos cristãos, a verdade se esgota na identificação com a pessoa de Cristo. Mas, deve-se notar que, a pessoa de Cristo independente da vontade objetiva dEle, pode Se tornar um conceito emocional alheio à revelação.
“A verdade e a glória de Deus são inseparáveis”, diz Ellen White. Por isso, “é-nos impossível, com a Bíblia ao nosso alcance, honrar a Deus com opiniões errôneas” (Ibid., p. 597). Nesse sentido, “o primeiro e mais elevado de todo ser racional é aprender das Escrituras o que é a verdade, em então andar na luz (Ibid., p. 598).
Em contraste com a “teologia do encontro” que prega uma religiosidade que se expressa no mero sentimento de uma relação pessoal com Cristo, destituída de verdades proposiocionais, o adventismo entende que “Deus nos deu Sua Palavra para que pudéssemos familiarizar-nos com os seus ensinos e saber, por nós mesmos o que Ele requer de nós” (Ibid., p. 598); e conhecer e viver as verdades espirituais capazes de “surpreender o enganador em seu disfarce” nos últimos dias (Ibid., p. 625).
Não há reavivamento sem restauração da verdade e ruptura com as tradições e opiniões particulares que se sobrepõem à Palavra de Deus. Opiniões pessoais, pretendido bom senso, tradições, costumes seculares, relativismo e vontade individual precisam dar lugar ao “Assim diz o Senhor” em cada ponto de fé e prática.