6. Aplicabilidade do princípio do dia-ano. — Quanto à coerência e propriedade de aplicar o princípio do dia-ano aos 2.300 dias do verso 14, desejamos dizer o seguinte: Em tôdas as profecias de representação simbólica, afigurar-se-ia inteiramente apropriado considerar os acompanhantes períodos de tempo como sendo também simbólicos. E um símbolo invariavelmente representa algo diferente de si próprio. No capítulo sob consideração, os símbolos proféticos de nações — retratados em Daniel 8 por um “carneiro” e um “bode” — não significam um carneiro e um bode literais, mas o Império Medo-Persa e o reino da Grécia, respectivamente, segundo foi declarado a Daniel pelo anjo em sua interpretação. Aplicar êstes dois claros símbolos a animais literais, seria evidente pegação e repúdio de seu caráter simbólico, e da interpretação dada pelo anjo.

Semelhantemente, cremos que no período simbólico de tempo dado em conexão com isso, os 2.300 “dias” não podem significar 2.300 dias literais. Devem representar algum outro espaço de tempo em cumprimento. Aplicá-los a igual número de dias — ou metades de um dia, como alguns procuram fazer — seria violar e negar seu caráter fundamentalmente simbólico. Tampouco somos deixados na incerteza quanto ao desígnio dêste aspecto de tempo. O princípio a ser adotado na interpretação de tempo simbólico, é: “Eu [o Senhor] te tenho dado um dia por um ano” (comparar Núm. 14: 34 com Ezeq. 4:6). Acreditamos, portanto, em harmonia com muitos sábios eminentes através dos anos, * que os 2.300 “dias” proféticos indicam 2.300 anos literais no cumprimento, e que algo mais, e algo menos, seria contrário ao princípio básico do simbolismo de tempo.

Por volta de 1205, uma anônima obra Joaquimita interpretava o número 2.300 como 23 séculos a partir do tempo de Daniel. Mais tarde Villanova identificou os 2.300 dias como anos, de acôrdo com o princípio do dia-ano. Então em 1440, o teólogo católico romano Nicholas Krebes de Cusa (Conjectures of Cardinal Nicholas von Cusa Concerning the Last Days), reconheceu os 2.300 “dias” proféticos como anos, que mesmo então datou a partir da Pérsia. Eis uma de suas notáveis declarações:

“Do mesmo modo foi revelado a Daniel de que maneira seria a maldição final após o santuário haver sido purificado e cumprida a visão; e isto depois de 2.300 dias a partir da divulgação da palavra . . . segundo o número predito por converter um dia num ano, em conformidade com a explicação feita a Ezequiel [4:5 e 6].” — Traduzido de Conjectura em Opera, pág. 934.

Cumpre acrescentar que a disposição cronológica dos 2.300 dias-anos não é dada no capítulo 8. Foi-nos dito apenas que ela se referia a “dias ainda mui distantes” (verso 26), e que os eventos a dar-se em sua conclusão ocorreríam muito depois do tempo de Daniel — realmente, no “tempo do fim” (verso 17). (A fixação da data do período será considerada nas Perguntas 25 e 27.)

7. “Contínuo” serviço do santuário.— Daniel 8:11-14 está relacionado com o santuário — seus serviços diários, desolação e restauração. O vocábulo coletivo usado habitualmente para as várias partes do ritual diário — as ofertas, o incenso, as luzes etc. — é tamid, significando “contínuo” ou “regular” (ver Êxo. 29:42; 30:7 e 8; Lev. 24:2). E tamid é o têrmo traduzido por “contínuo” (“costumado” na Edição Revista e Atualizada no Brasil) em Daniel 8:11, 12 e 13; 11:31; e 12:11. Em cada uma dessas vêzes a palavra “sacrifício” é acrescentada pelos tradutores. À primeira vis-ta, parece não haver motivos para isso. Lembrando, porém, que os sacrifícios da tarde e da manhã assinalavam os períodos de oração, incenso e sacrifício, torna-se evidente que a palavra “sacrifício,” embora acrescentada pelos tradutores, não era totalmente inadequada. Afirmam os eruditos que na literatura rabínica ** tanto os sacrifícios da tarde como os da manhã são igualmente designados pelo vocábulo tamid, que aparece sòzinho, como no texto hebraico de Daniel.

* E. B. Elliot, por exemplo (Horae Apocalipticae, 3a. ed., Vol. 3, págs. 226 e 227), faz alusão a “dois feitos deveras notáveis dêsse profeta [Ezequiel], que têm sido freqüentemente mencionados na controvérsia do dia-ano, por comentaristas anteriores. Numa ocasião foi-lhe ordenado por Deus deitar-se 390 dias sôbre seu lado esquerdo perante o, povo; para com isso tipificar, no caráter simbólico de sua representação, os 390 anos da iniqüidade e concomitante aviltamento na nação de Israel; noutra ocasião, devia deitar 40 dias sôbre o lado direito, para dêsse modo tipificar os 40 anos finais da iniqüidade de Judá. E o significado dêstes dias simbólicos foi declarado pelo próprio Deus. ‘Eu coloquei sôbre ti os anos da sua iniqüidade, segundo o número dos dias, trezentos e noventa dias. Designei-te cada dia por um ano.’ — Exemplo mais claro e completo do que êste dificilmente poderia ser desejado, como presumível chave e orientação para o significado dos dias nas visões simbólicas que estamos considerando.”

Em vista dêstes fatos, a palavra “tarde pode ser interpretada corretamente como significando “[sacrifício] da tarde,” e “manhã,” como significando “[sacrifício] da manhã,” os quais juntos formavam um ciclo completo do diário, ‘ regular” ou “contínuo” ritual do santuário. Obviamente são usados para indicar que esta é a visão concernente ao santuário. Destarte, ao mencionar o anjo as 2.300 “tardes e manhãs, Daniel naturalmente entendería significar isto 2.300 unidades tamid, cada uma delas formada de um “[sacrifício] da tarde” e de um “[sacrifício] da manhã.” Não imaginaria que metade delas fôssem “tardes” e a outra metade “manhãs,” formando apenas 1.150 unidades completas, ou dias. Por conseguinte, a tradução “dois mil e trezentos dias,” reflete apropriadamente o sentido da construção hebraica, e do contexto. ***

** A palavra hebraica tamid, para “contínuo,” nos livros de Números e Êxodo, é aplicada aos pães da proposição, ao incenso, às ofertas queimadas, assim como especificamente aos sacrifícios da tarde e da manhã. No entanto, no emprêgo rabínico posterior, tamid era usado quase que exclusivamente para os sacrifícios da tarde e da manhã. Nota-se isto em obras como o Talmude — Pesahim 58a, 61a, 63a, 63b, 66b, 73b, 96a; e Sanhedrin 35b e na nota ao pé da página (“Pelo oferecimento do tamid ou holocausto diário”); Sanhedrin 36a, 44b, 49b, 88b, e nota ao pé da página; Zebahiin 91a (“asperge o sangue do tamid”‘).

Declara o rabi J. II. Hertz, no The Pentateuch and Haftorahs:

“O diário sacrifício contínuo (Heb. tamid) foi mais tarde chamado ‘O Tamid.’ Oferecido durante o ano todo, era ‘o centro e a essência do culto público’.” — Sôbre Núm. 28:2-8 (Ed. Soncino, Londres), pág. 694.

*** Estamos aqui de acôrdo com o Dr. Eduardo J. professor do Velho Testamento no Seminário Teológico Westminster, que defende o ponto de vista de dias completos (The Prophecy of Daniel, 1949, pág. 174):

“Significa 2.300 dias. Esta interpretação aparece nas versões gregas, nas obras de Jerônimo, bem como de mui-tos protestantes e na AV [K. J. V.], e demonstra ser correta. . . .

“Não existe apoio exegético para o ponto de vista de que a frase tardes e manhãs denote dever-se contar separadamente as tardes e manhãs, como sendo 1.150 tardes e 1.150 dias.”

Comentando sôbre a expressão semelhante: “quarenta dias e quarenta noites,” de Gênesis 7:4 e 12; Êxo. 24:18 e I Reis 19:8, Young argumenta não significar ela vinte dias e vinte noites. E os três dias e três noites de Jonas 1:17 não são interpretados como um dia e meio.

Declara Keil: “Devemos portanto tomar as palavras ao pé da letra, isto é, entendê-las como 2.300 dias completos.” — C. F. Keil e F. Delitzsch, Bible Commentary on the Old Testament, The Book of Daniel the Prophet, pág. 304.

O Dr. Herbert C. Leupold, professor de Exegese do Velho Testamento no Capital University Seminary (Exposition of Daniel, 1949, pág. 354), também apóia a interpretação de dias de 24 horas:

“Temos aqui um dos maiores pontos cruciais de todo o livro: Que significam as ‘duas mil e trezentas tardes e manhãs’? A expressão composta é tão incomum que confunde o leitor. . . . Esta, e a expressão equivalente do v. 26, referem-se ao mesmo período de tempo. Embora não possamos citar qualquer analogia no hebraico, o grego sugere algo semelhante, a saber, a palavra nuchthemeron, que significa ‘uma noite e um dia’ (II Cor. 11:25), no sentido de um período de vinte e quatro horas. Esta é a interpretação mais simples e conveniente.”

Além das razões precedentes, que são fundamentais, admitimos como evidência corroborante o fato de a Septuaginta — a mais antiga tradução de Daniel — e a versão de Teodócio, quatro séculos mais tarde, colocarem a palavra “dias” imediatamente após as 2.300 “tardes e manhãs,” para indicar o sentido. O vocábulo “dias” também é usado na Vulgata, na Versão Siríaca e na tradução alemã de Lutero.

É igualmente a tradução congruente dos expositores judaicos na Era Cristã, bem como de centenas de primitivos e posteriores exegetas cristãos. A King James Version (inglêsa) do mesmo modo traz “dias” no texto, pondo “tardes e manhãs” na margem, mas retendo a “visão da tarde e da manhã” no verso 26. Alberto Barnes representa muitos dos comentaristas populares, ao observar: “Não pode haver dúvida, entretanto, de que isto [uma tarde e uma manhã] designe um dia.” — Notes on Daniel, sôbre Daniel 8:14.

8. Vindicação no tribunal celestial. — À luz do que foi dito, cremos que o “santuário” apresentado em Daniel 8:11-14 não podia referir-se sòmente ao Templo de Jerusalém. Inferimos que o santuário a ser purificado no fim dos 2.300 dias é o santuário no Céu, “que o Senhor erigiu, não o homem” (Heb. 8:2), e do qual o triunfante e ressurreto Senhor Jesus Cristo, que ascendeu ao Céu, é o grande Sumo Sacerdote (Heb. 8:1). Foi êsse “templo de Deus” que o profeta contemplou no Céu (Apoc. 11:19; 15:5). Acreditamos ser êste o templo que não sòmente deve ser “purificado” (Dan. 8:14), mas também “justificado” (margem), “endireitado,” “vindicado,” como será mencionado em poucas palavras.

Os serviços típicos do santuário terrestre serviam de “figura e sombra das coisas celestes” (Heb. 8:5). Ora, no tabernáculo do deserto e no Templo posterior, havia cerimônias diárias e anuais. E compreendemos que a obra de Cristo, a partir de Sua ascenção e investidura como nosso Sumo Sacerdote celestial, foi prefigurada pelo serviço diário no santuário terrestre. Isto constituía a primeira etapa de Seu ministério celestial, oficiando como Mediador, e aplicando o sacrifício expiatório que Êle completara na cruz.

Êste serviço diário do santuário terrestre, abrangendo o sacrifício da manhã e da tarde — o tamid (hebraico), ou “contínuo” — prefigurou adequadamente a contínua eficácia do sacrifício de Cristo nosso Senhor, consumado na cruz do Calvário. O Cristo ressurreto, nosso ministrante Sumo Sacerdote, sempre vive “para interceder” por nós (Heb. 7:25). Por isso interpretamos Seu ministério celestial como sendo a mediação de Sua completa e sempre eficaz expiação, que Êle realizou e concluiu na cruz cm favor do homem, aplicando essa expiação ao pecador individual, ao aceitar êle a Cristo como seu Salvador pessoal.

Mas o serviço anual do Dia da Expiação (descrito em Levítico 16) prefigurava a segunda e final etapa do ministério sumo-sacerdotal de Cristo — uma obra incluindo juízo. E acreditamos estar agora vivendo nesse tempo de juízo. Convém acrescentar que, de acôrdo com o con-ceito arminiano de individual responsabilidade para com Deus, nossa compreensão das Escrituras nos leva a crer que será examinado o registo da vida de cada pessoa, e pronunciada sentença de juízo sôbre cada caso considerado. (Isto é apresentado mais plenamente na Pergunta 36.)

Êste juízo final não sòmente envolve o veredicto de todos os casos perante o tribunal divino, mas resulta na justificação do caráter de Deus perante todos os sêres do universo. Demonstra por tôda a eternidade a falta de fundamento e a falsidade das acusações de Satanás contra o caráter, o govêrno e a lei de Deus, e a justiça e eqüidade dÊle em decidir que os que aceitarem as provisões de redenção constituirão os cidadãos de Seu eterno reino e que a todos os pecadores impenitentes será vedado o ingresso a êle. O objetivo do julgamento, naturalmente, não é esclarecer a Deus, mas persuadir para sempre a mente de todos os sêres racionais criados, anjos e homens.

O veredicto universal será: “Justos e verdadeiros são os Teus caminhos, ó Rei das nações!” (Apoc. 15:3); “Tu és justo, Tu que és e que eras, o Santo, pois julgaste estas coisas” (Apoc. 16:5); e “Certamente, ó Senhor Deus, Todo-poderoso, verdadeiros e justos são os Teus juízos” (Apoc. 14:7).

9. Significação da palavra “purificado” — O sentido das várias expressões usadas pelos tradutores para indicar o pleno desígnio da “purificação” (Hebraico: tsadaq) do santuário celestial (Daniel 8:14), não deve ser perdido de vista. Onze traduções diferentes aparecem nas versões correntes. Ei-las: (a) “Purificado” (Septuaginta, Rheims-Douay, Moulton, Boothroyd, Spurrell, Martin, Vulgata, Harka-vy, Ray, Knox, Noves, Francesa — Osterwald, Segond, e Lausanne — K. J. V. e A. R. V.); (b) “ser justificado” (Leeser; Sawyer; A. R. V., margem; K. J. V., margem); (c)“ser vitorioso” (Margolis); (d) “ser endireitado” (Smith-Go-odspeed); (e) “[ser] declarado justo” (Young); (f) “ser restaurado à sua condição legítima” (R. V. S.); (g) “ser tornado justo” (Van Ess); (h) “ser restaurado” (Moffatt); (i) “ser santificado” (Fenton); (j) “ser vindicado” (Rotheram); e (I) “ser consagrado” (Lutero). Ver Problems in Bible Translation (Review and Herald), págs. 174 e 175.

Os lexicógrafos clássicos concordam em traduzir tsadaq por “ser justo,” “ser honrado.” O Lexicon de Gesênio (Edição de Brown, Driver e Briggs) acrescenta: “ser endireitado” ou “ser pôsto em condição justa.” E a Revised Standard Version traz a cláusula: “Então o santuário será restaurado ao seu estado legítimo.” A tradução “purificar” evidentemente é emprestada da Septuaginta (katharisthesetai), seguida pela Vulgata (mundabitur) . Reconhecemos que a justificação e a vindicação do santuário levítico eram realizadas pelas cerimônias do Dia da Expiação, quando o santuário era purificado de tôda corrupção (Lev. 16:16).

Esta purificação, no entanto, era definidamente incluída, pois em Levítico 16:16 menciona-se que era feita uma “expiação,” neste sentido, pelos filhos de Israel, devido a suas “impurezas.” Nesse dia as “iniqüidades dos filhos de Israel” eram removidas (verso 21). Cremos que o antítipo dêsse serviço será encontrado em conexão com o ministério de Cristo no santuário celestial, e isto é evidente de Hebreus 9:23: *

“Era necessário, portanto, que as figuras das coisas que se acham nos Céus se purificassem [katharizo] com tais sacrifícios, mas as próprias coisas celestiais [serão purificadas] com sacrifícios a êles superiores [o do Cordeiro de Deus].”

Tal é nossa compreensão do maior e mais amplo conceito do grande plano divino de salvar os homens, da maneira como é revelado em Daniel 8, pois desde a morte, ressurreição e ascensão de nosso Senhor, o santuário celestial é agora o centro da maravilhosa obra sacerdotal e intercessória de Cristo. Cessou o santuário da Terra com suas figuras e sombras. Mas no Céu desempenha Cristo Sua obra de mediação que culmina na atividade do julgamento. Por conseguinte, concluímos que esta mediação abrange tanto a ministração do sacrifício expiatório do Calvário a cada alma que aceita as provisões de Sua graça, como a eliminação final do pecado do universo de Deus. Cremos, portanto, que êste ministério resultará na purificação ou destruição de tudo que se relaciona com o mal — Satanás, seu autor, e seus adeptos (S. Mateus 25:41; Heb. 2:12), a morte (I Cor. 15:26), e as obras do diabo (I S. João 3:8; comparar com Apoc. 20:10 e 14). — Questions on Doctrine, págs. 259 a 267.

* Brooke Foss Westcott (Epistle to the Hebreus, 1892, pág. 270) faz êste significativo comentário sôbre Hebreus 9:23:

“O fato de que semelhante modo de purificar por sangue era prescrito para os instrumentos materiais de culto, conduzia à inevitável conseqüência de que deveria ser provida alguma purificação análoga e portanto mais excelente para os arquétipos divinos.” “Tôda a estrutura da frase requer que [a palavra] ‘purificado’ seja suprida à segunda cláusula pela primeira.”