I — UM DIA TÍPICO DE SÁBADO OBSERVADO POR JUDEUS DA EUROPA ORIENTAL EM PRINCÍPIOS DE NOSSO SÉCULO 1

O Dia de Preparação

É sexta-feira. Porém, já na quinta-feira as pessoas se apressam em ir ao mercado a fim de comprar aves e peixes para o sábado. Na quinta-feira também é preparada a massa para o challos, ou pão sabático.

“É grande mérito religioso levantar cedo na sexta-feira a fim de fazer preparativos para o sábado.” 2

Antes de amanhecer é aceso o forno. Quando está pronto, a dona de casa pega um pedaço da massa de pão preparada na noite anterior e o arremessa no fogo enquanto profere uma bênção. Lembra assim o preceito de separar as primícias da massa como presente para o sacerdote. Enquanto a massa se queima, ela recita uma prece de meditação (t’chinch), na qual pede a Deus que aceite êsse pedaço de massa como sacrifício sôbre o altar, que lhe conceda recursos para alimentar a seus amados filhos, que em Sua grande misericórdia a proteja da preocupação e das privações. Depois põe o resto da massa a assar, em forma de pães.

A escola (cheder) para as crianças judaicas funciona sòmente de manhã. O tempo é dedicado princípalmente a cantar a seção do Pentatêuco e a porção dos profetas correspondentes ao sábado.

Não é servido um almoço formal. Os judeus mais devotos não comem nada desde a manhã até à noite, a fim de desfrutar mais plenamente a comida sabática, na noite, e obter assim maior mérito.

Nas sextas-feiras de tarde, em alguns lares funcionam cozinhas fechadas que cozinham o cholent, alimento que sendo preparado na sexta-feira, permanecerá quente ali até ser usado no sábado. Geralmente em cada uma destas cozinhas é guardado o cholentde várias famílias. Conserva-se também água quente, para as bebidas do sábado. A cozinha é selada com argila. Durante o sábado não será aceso fogo algum.

Ao aproximar-se o sábado, os armazéns fecham rapidamente as portas. São retiradas as panelas das cozinhas comuns e se apaga o fogo. A família completa o asseio e o arranjo pessoal. A tranqüila atmosfera do sábado começa a manifestar-se. Todos se preparam para as cerimônias que darão início ao dia seguinte. Já estão sentados na sinagoga alguns judeus anciãos, devotos, cantando trechos do Cantares de Salomão. Um arauto percorre as ruas gritando: “À sinagoga!”

A Recepção do Sábado

Em cada lar, sôbre a mesa, há pelo menos dois brunidos candelabros de bronze ou prata. Meia hora antes do pôr do Sol, a mãe põe as velas nos candelabros, acende-as e, cobrindo os olhos com as mãos, repete a bênção: “Bendito seja o Eterno, Rei do mundo, que nos santificou com Seus preceitos e nos ordenou acender as velas do sábado.” 4

A mesa está coberta com uma toalha branca. À cabeceira há dois pães de trigo, cobertos com primorosa toalhinha bordada com bênçãos e figuras alusivas. 5 São dois pães, “em memória da porção dobrada de maná que os judeus recolhiam no deserto, à véspera do sábado.” 6

Os homens, entretanto, estão na sinagoga, onde é celebrado um culto de recepção do sábado. No final da cerimônia, cantam o Lejá Dodi — “canção que saúda o sábado como a uma noiva, a uma rainha. Esta poesia deve sua origem a uma tradição que começou há três séculos, quando os cabalistas de Safede, na Galiléia, costumavam sair em procissão, para fora dos muros da cidade, vestidos em trajes de festa, a fim de dar as boas-vindas ao sábado e acompanhá-lo até suas casas. (Êstes por sua vez se basearam na informação dada pelo Talmude a respeito de certos amoraim palestinos do terceiro século de nossa era. Êstes se vestiam às sextas-feiras de tarde com roupas sabáticas e diziam: “Vinde, saiamos ao encontro da Rainha Sábado,” ou “Vem noiva, vem noiva!” 7)

Tomou-se a personificação do sábado ao pé da letra, e um poeta, Salomão al-Kabetz Halevi, residente na Turquia, compôs o Lejá Dodi, cujo último verso é cantado ainda hoje: 8

“Vem em paz, coroa do espôso, com alegria e regozijo; vem para os filhos fiéis do povo predileto; vem amada, vem noiva.

“Vem, amado, ao encontro da noiva; acolhamos a face do sábado!” 9

Depois de voltarem da sinagoga, saúdam-se uns aos outros em casa com repetidos “Gut Shabbos” (bom sábado). O lar deixa transparecer um aspecto de descanso e felicidade. Pai e filhos andam dum lado para outro da casa, cantando Shalom Aleichem (paz a vós, anjos ministradores etc.). É uma saudação aos dois anjos que o Rei Altíssimo, o Rei dos reis, envia para acompanhar cada judeu desde a sinagoga até seu lar, na sexta-feira de noite.

O dono da casa recita em seguida, em honra de sua espôsa, o trecho de Provérbios 31: 10-31.

Depois a família se assenta à mesa, à qual amiúde tem sido convidado um forasteiro pobre. Recita-se o Kiddush que expressa a gratidão de Israel a Deus por havê-lo dignificado tributando-lhe o sábado sagrado.10 Entre a refeição são cantados z’miros, e também ao terminar a ceia.

Após a ceia o dono da casa repete a parte do Pentateuco que corresponde a essa semana (duas vêzes em hebraico e uma vez em aramaico). A espôsa lê o Ts’ench Ur’ench (paráfrase de partes do Velho Testamento, além de relatos etc.), enquanto os jovens lêem histórias ou vão dar umas voltas por breve espaço de tempo.

O Sábado Durante o Dia

Alguns judeus devotos dirigem-se à sinagoga, ao amanhecer, para estudar a Tora, várias horas antes de começarem os serviços regulares.

Os cultos sabáticos na sinagoga são longos. Nêles são lidos trechos dos cinco livros de Moisés, e capítulos escolhidos dos profetas. Sete pessoas lêem a Tora: primeiro um cohen (sacerdote, descendente de Arão), depois um levita (descendente da tribo de Levi) e então outros 5 israelitas, sem ordem fixa. 11

Concluídos os serviços religiosos, regressam para casa. O desjejum e o almôço são servidos pràticamente juntos. Canta-se muito durante a refeição.

Depois de uma sesta, êles vão para a Casa do Estudo, a fim de estudar. O estudo é realizado em grupos separados: Bíblia, Mishnah, Talmude e outros aspectos do judaísmo. Os jovens passeiam ou brincam. Assim decorre o tempo até às orações da tarde (minchoh).

Após estas orações, é servida a terceira refeição do sábado, geralmente morna ou já fria (apesar de haver sido guardada na estufa fechada).

Despedida do Sábado

A tristeza começa a apoderar-se de todos, pois a Rainha Sábado está a ponto de partir. Isto se vê claramente na sinagoga onde estão reunidos todos os homens. Existe a crença popular de que as almas obtêm repouso durante o sábado, mas são levadas de volta à Gehenna chamejante tão logo termine o sábado.

Esta atmosfera de tristeza cessa a um sinal do arauto, que indica deverem ser iniciadas as cerimônias de despedida do sábado. Estas são atrasadas a fim de prolongar a santidade do dia.

Em casa, entretanto, a espôsa espera até ver três estrêlas juntas no céu, o que indica que o sábado terminou. Recita então o t’chinch, acende uma vela e exclama: “Uma boa semana, uma semana inteira, uma semana feliz, para nós e para todo o Israel. Amém.”

Chegam os homens, de volta da sinagoga. Em seguida, é realizada a cerimônia da Havdalá (separação) para simbolizar a diferença entre a santidade do sábado e os dias comuns. Defronte do dono da casa, “sôbre a mesa, encontra-se um prato com um copo cheio de vinho, um cofrezinho com especiarias (canela ou cravo) e uma vela trançada. O pai pronuncia a berajá (bênção) sôbre o vinho, sôbre o perfume das especiarias e sôbre o fogo, concluindo com louvores a Deus por haver distinguido entre o sagrado e o profano, entre a luz e as trevas, entre o sábado e os dias de trabalho.12

É preparada então mais uma refeição. Ainda restam vestígios do sábado. É como se houvesse partido um hóspede muito querido. Esta quarta refeição é chamada despedida à Rainha Sábado e também Refeição do Rei Davi. O Talmude conta uma lenda segundo a qual Davi perguntou a Deus quanto tempo duraria sua vida. Deus respondeu-lhe que morreria no sábado. Por isso, no fim de cada sábado Davi fazia uma festa, porque lhe era assegurada mais uma semana de vida.

Depois da ceia todos se põem a conversar, relatar histórias e lendas. As mulheres realizam as tarefas regulares da casa, mas não tecem nem costuram.

Entre os judeus da Europa Ocidental e das Américas, o sábado deixou de ser observado desta maneira, como resultado da revolução industrial e da crescente concorrência comercial a que se viram expostos desde o século dezenove. O único grupo judaico que procurou descobrir meios para continuar observando o sábado foi o dos judeus reformados. Contudo, não foram bem sucedidos. Alguns dentre êles celebram serviços religiosos no domingo de manhã, para benefício dos que não podem freqüentá-los no sábado.

Recentemente, tem surgido interêsse por guardar o sábado de alguma maneira. Com esta finalidade, foram iniciados serviços religiosos nas sextas-feiras à noite, após a ceia. São assistidos por homens, mulheres e crianças. Acendem-se velas sôbre o altar, recita-se o Kiddush, um côro canta o Lejá Dodi e outras melodias tradicionalmente sabáticas. O rabino prega um sermão. Também se tem introduzido em muitas congregações serviços religiosos especiais para crianças, no sábado de manhã.

Está sendo reavivado também o uso da “Casa do Estudo,” na sinagoga ou em alguma sala adjacente. Às sextas-feiras de noite, ou aos sábados de tarde, são estudadas a vida e a cultura judaicas. A cerimônia de despedida da Rainha Sábado também está sendo reavivada com formas novas.

ALGUMAS DECLARAÇÕES JUDAICO-CONTEMPORÂNEAS ACÊRCA DO SIGNIFICADO DO SÁBADO

“Os prazeres do sábado são a sexagésima parte das delícias do mundo vindouro; na véspera do sábado Deus dá ao homem uma alma especial, e ao passar o sábado esta lhe é tirada.” 13

“Na realidade, foi o sábado que conservou a Israel, e não Israel que conservou o sábado.” 14

“Nenhum dos valôres espirituais que o judaísmo proporcionou ao mundo penetrou tão profundamente e de modo tão geral na vida da humanidade como o descanso semanal, o sábado. É uma lei de importância não sòmente religiosa, mas também social; contempla as necessidades do homem em seu duplo aspecto físico e espiritual, e lhe outorga, juntamente com um intervalo de descanso na monotonia e fadiga do trabalho, um desafogo para a alma, que nos dias de labuta costuma precisar de uma expansão adequada.” 15

“O sábado faz lembrar o ritmo da criação divina do universo. Se a fôrça cega da Natureza houvesse criado o mundo, não poderia haver-se detido repentinamente durante 24 horas. Deus mesmo é o criador do mundo. Seis dias utiliza o homem as coisas terrestres para seus fins, mas no sétimo dia de cada semana confessa que o mundo é de Deus, que pertence a Êle. Desta maneira, cada sábado se converte para o judeu em sua profissão de fé.

“Deus não suspendeu Sua obra no Schabat porque quisesse descansar do labor, mas porque o trabalho não tem significado sem a tranqüilidade e o repouso contemplativo que o acompanham. O sábado irradia luz sôbre os outros dias. Êstes não são mais do que degraus que conduzem para êle; carecem de nome em hebraico, e chamam-se segundo sua ordem; primeiro, segundo etc., até chegar ao sétimo, Schabat, repouso.” 16

Referências

  • 1) Seção baseada princípalmente em Hayyim Schauss, The Jewish Festivais (Nova York, União das Congregações Hebraico-Americanas, 1938), págs. 21-37.
  • 2) Idem, pág. 21.
  • 3) Erna C. Schlesinger, Tradicones y Costumbres Judias (Buenos Aires, Editorial Israel, 1951), pág. 24.
  • 4) Idem, págs. 24 e 25.
  • 5) Idem, pág. 25.
  • 6) Loc. cit.
  • 7) Schauss, op. cit., pág. 19.
  • 8) Schlesinger, op. cit., pág. 27.
  • 9) Idem, págs. 27 e 28. Música na pág. 26.
  • 10) Idem pág. 30.
  • 11) Idem, pág. 31.
  • 12) Idem, págs. 32 e 33.
  • 13) Trechos do Talmude, citados por H. Schauss, op. cit., pág. 21.
  • 14) Ajad Haám, cit. em E. C. Schlesinger, op. cit., pág. 21.
  • 15) E. C. Schlesinger, op. cit., pág. 21.
  • 16) Loc. cit.