“De tôdas as liberdades sociais, nenhuma é tão congenial ao homem, e tão nobre, e tão frutificativa, e tão civilizadora, e tão pacífica, e tão filha do evangelho, como a liberdade religiosa.” — Rui Barbosa.

Há que distinguir, liminarmente, entre liberdade de consciência e liberdade religiosa. Aquela é inviolável e não se tutela a ditames exteriores, enquanto esta consiste na livre exteriorização do culto. Medidas opressivas ferem esta última, porém não atingem aquela.

O problema da liberdade religiosa é tão velho como o mundo. Pode-se dizer que o assassínio de Abel teve raízes na intolerância religiosa. A organização política do antigo Egito era absolutista, e quando o rei Akhenaten quis alterar o culto solar, recorreu à fôrça, perseguindo atrozmente o antigo sacerdócio de Amon-Ra e seus fiéis. Também os assírios e babilônios eram intolerantes quanto às religiões alheias. Salmanazar, Sargão, Senaqueribe e outros conquistadores acreditavam-se inspirados pelos deuses Assur, Nebo e Marduque. Em vista disso, o deixar de adorar êsses deuses constituía ipso facto crime punível com torturas e morte. Clássico é o exemplo de Nabucodonozor, cêrca do ano 600 A. C., mandando erguer no campo de Dura a gigantesca estátua de ouro, punindo com incineração num forno a quem diante dela não dobrasse os joelhos, num dado momento.

Na antiguidade clássica também encontramos a intolerância religiosa, apesar das avançadas concepções filosóficas dos gregos e dos rígidos princípios jurídicos dos romanos. Que os atenienses eram intolerantes prova-o sobejamente o caso de Sócrates que, por especular sôbre a pretensa virtude dos deuses, foi, no ano 399 A. C. intimado a comparecer perante o Conselho da cidade, e julgado como ateu e destruidor da religião, sendo sentenciado a morrer por suas próprias mãos.

Séculos depois, os gregos sucessores de Alexandre, o Grande, fundaram um reino na Síria e se propuseram a helenizar a Palestina. Como os palestinianos se recusassem a adorar ídolos gregos, sofreram os mais horrendos suplícios, sendo mortos mais de 80.000 e outros tantos cativos e vendidos como escravos durante a perseguição de Antíoco Epífano. Podemos ler estas cruezas nos livros dos Macabeus.

Embora os romanos fôssem mais brandos, havia lá, contudo, a chamada “adoração do Estado, pois Roma era a abstração deificada do Estado.” Os imperadores eram tidos como deuses. Logo no início da difusão do cristianismo, houve perseguição envolvendo autoridades romanas. Que dizermos de Nero, Domiciano, Diocleciano, Valeriano, Décio e outros que perseguiram, desterraram e maltrataram os cristãos? O conceito de que o imperador era divino — pelo fato de ser a encarnação do Estado — foi, em grande parte, responsável por essas atrocidades. 

Posteriormente, com a suposta conversão de Constantino deu-se a fusão da Igreja com o Estado, abrindo as comportas para o chorrilho de inovações que redundaram na apostasia total. E então os fiéis à primitiva pureza cristã passaram a ser vítimas da intolerância da igreja dominante. Temos os anais históricos da época dos reformadores e da tenebrosa inquisição a atestarem esta nódoa terrível; modernamente, a intolerância se encastela por detrás das leis e ação suspicaz de certos governos. Diga-se, de início, que lei magna de nenhum país declara abertamente a perseguição, o desfavor ou desrespeito às crenças religiosas. A despeito disso, existe a perseguição, o espezinhamento aberto ao direito das minorias religiosas, a imposição, com o beneplácito de certos governos, de medidas que violentam a liberdade religiosa do cidadão. 

Os adventistas do sé-timo dia devem lutar para que a liberdade religiosa das minorias seja mantida, cumprindo-se, dêsse modo, as franquias constitucionais que a asseguram. A título de informação, passaremos em revista os artigos que garantem a liberdade religiosa, nas constituições vigentes em vários países. 

Russia

Reza a constituição soviética:

“Com o fim de assegurar a liberdade de consciência, a Igreja na URSS será separada do Estado e a escola será separada da Igreja. A liberdade de culto, assim como a liberdade anti-religiosa serão outorgadas a todos.” Capítulo X Direitos Básicos e Deveres do Cidadão -Art. 124. 

A igreja aí mencionada é a grega, que nos tempos do czarismo cometeu grandes desmandos, comprometendo a ética cristã. Sabemos, contudo, que, apesar dessa garantia constitucional, há lá restrições bem sérias ao exercício do culto. 

A Igreja Ortodoxa é estatalizada.

Iuguslávia

A Constituição da República Federativa Popular da Iuguslávia (que abrange a Sérvia, Croácia, Slovênia, Bósnia, Herzegovina, Macedônia e Montenegro) estatui:

“É garantida aos cidadãos a liberdade de consciência e de religião. A igreja é separada do Estado. As organizações religiosas cujas doutrinas não se oponham à Constituição são livres em suas atividades, bem como na prática de seus cultos. As escolas religiosas para a formação de sacerdotes são livres mas funcionarão sob a fiscalização do govêrno.” — Capítulo V — Direitos e Deveres dos Cidadãos — Art. 25.

Atente-se bem para o final dêste artigo. É comprometedor.

Esta “fiscalização” do govêrno nos seminários tem prejudicado grandemente o livre funcionamento dos mesmos, influindo também no exercício dos cultos. Esta liberdade é muito relativa, quase uma ficção, como os fatos têm demonstrado.

China

A Constituição da República Popular da China afiança:

“Os cidadãos da República Popular da China têm direito à liberdade de consciência.” — Capítulo III — Direitos e Deveres Fundamentais dos Cidadãos — Art. 88.

É de notar-se que aí se refere à liberdade de consciência, e não propriamente à liberdade de culto, o que é sintomático e suspeito. Na mesma Carta Magna há o art. 87 que declara ser livre o direito de reunião, e o art. 90 garante a inviolabilidade do domicílio.

Apesar de tanta garantia constitucional expressa, a perseguição religiosa lá é um triste fato. Não faz muito, a Igreja Adventista proclamou jejum universal em intenção de nossos irmãos chineses, vítimas de atroz perseguição. Os nossos templos foram fechados, alguns membros presos e declarados inimigos das autoridades, aplicando-se-lhes terríveis sanções. Em países de feição totalitária, a liberdade religiosa é quase fictícia. Não é só nos regimes esquerdistas que tal se verifica. As ditaduras da direita também primam pela intolerância. Tomemos, por exem-plo, a

Espanha

Diz a Constituição espanhola:

“A profissão e prática da religião católica, apostólica, romana, que é a religião do Estado, gozarão de proteção oficial. Ninguém será molestado por causa de suas crenças religiosas ou o exercício privado de seu culto. Não serão permitidas nenhumas cerimônias ou manifestações externas, com exceção as da religião católica.” — Direito dos Espanhois — Título 1 — Deveres e Direitos do Povo Espanhol — Capítulo I — Art. 6.

Como se vê, só a igreja oficial é cercada de amplas garantias e favores dos poderes públicos. As minorias religiosas ali não têm sequer o direito de se reunirem em templo aberto. É vedada a propaganda religiosa dessas minorias.

Portugal

A Constituição Política da República Portuguêsa reza:

“É livre o culto público ou particular de tôdas as religiões, podendo as mesmas organizar-se livremente, de harmonia com as normas de sua hierarquia e disciplina.. . . Sem prejuízo do preceituado pelas concordatas na esfera do Padroado, o Estado mantem o regime de separação em relação à Igreja Católica …” — Titulo X — Das Relações do Estado Com a Igreja Católica e do Regime de Cultos — Arts. 45 e 46.

Êsse Padroado confere prerrogativas especiais à igreja dominante, propiciando-lhe favores governamentais, arrecadação de foros e outras vantagens que vêm de longa data. Além disso, as minorias religiosas vivem sob vigilância e sofrem censura em sua literatura. É notório o protecionismo dispensado à igreja dominante.

México

“Todo homem é livre para professar a crença religiosa que mais lhe agrade e praticar as cerimônias, devoções ou atos do respectivo culto, nos templos ou em seu domicílio particular, desde que não constituam delito ou falta defesa por lei. Todo ato religioso de culto público deverá ser celebrado precisamente dentro dos templos, os quais estarão sempre sob a vigilância das autoridades.” — Das Garantias Individuais — Art. 24.

Basta a simples leitura dêsse texto constitucional especialmente da parte final para perceber-se a odiosa pressão e policialismo que se exercem sôbre as atividades religiosas.

Colômbia

“A religião católica, apostólica, romana é a religião da nação; os poderes públicos protegê-la-ão e farão que seja respeitada como elemento essencial da ordem social. Entende-se que a Igreja Católica não é nem será oficial, e conservará sua independência. Ninguém será molestado em razão de suas opiniões religiosas, nem compelido pelas autoridades a professar crenças ou observar práticas contrárias à sua consciência. É permitido o exercício de todos os cultos que não sejam contrários à moral cristã nem às leis. Os atos contrários à moral cristã ou subversivos da ordem pública, praticados com ocasião ou a pretexto de exercício de culto, são submetidos ao direito comum. A educação pública será organizada em concordância com a religião católica.” — Título III — Direitos Civis e Garantias Sociais — Arts. 38, 39, 40 e 41.

A própria redação dos artigos acima sugere o tipo de liberdade religiosa vigente nesse país. As perseguições às minorias religiosas dissidentes da igreja dominante se têm avolumado nos últimos anos, com torturas, perseguições e humilhações de tôda a sorte. Dizer que a igreja dominante não é oficial, mas cercá-la de exclusivismo nos favores oficiais, constitui forma de iludir os cidadãos. A truculência policial tem levado a morte e o confisco a muitos cristãos.

Costa Rica

“A religião católica, apostólica, romana é a religião do Estado, o qual contribuirá para sua manutenção, sem impedir, na República, o livre exercício de outros cultos que não se oponham à moral universal nem aos bons costumes.” — Capítulo Único — A Religião — Art. 76.

Evidente engôdo para as minorias religiosas é bitolá-las à “moral universal”. Com êste expediente se processam as perseguições, o que tem havido nesse país, que, a rigor, adotou uma religião.

Fôrça é convir que, nestes países e outros da mesma índole política, não há, a rigor, liberdade religiosa.

Citemos, a seguir, extratos das constituições dos países liberais, onde presentemente há liberdade de culto. Ver-se-á diferença não só na redação clara e honesta do texto constitucional como também na prática.

Estados Unidos

‘‘O Congresso não poderá passar nenhuma lei estabelecendo uma religião, proibindo o livre exercício dos cultos, cerceando a liberdade de palavra ou da imprensa, restringindo o direito do povo se reunir pacificamente ou de dirigir ao govêrno petições para a reparação de seus agravos. — Constituição dos EE. UU. — Emenda Constitucional nº 1.

Brasil

“Ê inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício de cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes.” — Constituição Brasileira — Capítulo II — Dos Direitos e Garantias Individuais — Art. 141 § 7.

Inglaterra

A índole liberal dos inglêses é um fato. Interessante que a Igreja Anglicana é oficial na Inglaterra. Contudo há a mais ampla liberdade religiosa, assegurada na Constituição, em artigo que vem ainda da Carta de Direitos (Bill of Rights) tradicional e antiga, e se acha incorporado na “common law”, de índole marcantemente liberal.

Suíça

“A liberdade de consciência e de crença é inviolável. O livre exercício dos cultos é garantido nos limites com-pativeis com a ordem pública e os bons costumes.” — Constituição Suíça — Capítulo 1 — Disposições Gerais — Arts. 49 e 50.

Apesar da diversidade de línguas, religião e costumes, nesse país há, de fato, a liberdade religiosa. Os cantões suíços não entram em conflito, apesar das disparidades confessionais, o que prova a excelência da tolerância e respeito às idéias alheias.

Itália

Passado o tufão fascista, a Itália recuperou-se politicamente, e hoje podemos ler em sua Constituição:

“Todos têm o direito de professar livremente sua própria fé religiosa em qualquer forma, individual ou associada, de fazer propaganda da mesma e exercer culto em privado ou em público; desde que não se trate de ritos contrários aos bons costumes.” — Parte I — Direitos e Deveres dos Cidadãos — Título I — Relações Civis—Art. 19.

Recentemente, nesse país, os militares adventistas conseguiram das autoridades isenção de trabalho aos sábados.

Com ligeiras alterações, pelo mesmo diapasão se afinam as franquias constitucionais dos demais países. Consultámos perto de cinqüenta constituições, e os artigos que garantem a liberdade religiosa são quase idênticos. Na Espanha e na Colômbia, há uma religião adotada pelo Estado, em detrimento das minorias religiosas. Em outros países há apenas tolerância, e em outros há liberdade ampla. A tolerância é sinônimo de opressão. C. B. Haynes, escreveu:

“Tolerância não é liberdade. A tolerância é uma concessão; a liberdade é um direito. A tolerância é assunto de conveniência; a liberdade é um princípio. … A tolerância em matéria religiosa pressupõe que o govêrno elegeu e adotou uma religião como a verdadeira, e considera tôdas as demais como falsas, heréticas ou cismáticos. A tolerância permite que estas outras subsistam simplesmente por indulgência, não por direito.”

O princípio mais explícito e liberal se consubstância nestas palavras:

TÔDA A PESSOA TEM DIREITO À LIBERDADE DE PENSAMENTO, CONCIÊNCIA E RELIGIÃO; ÊSTE DIREITO INCLUI A LIBERDADE DE MUDAR A RELIGIÃO OU CRENÇA, E LIBERDADE PARA MANIFESTAR A RELIGIÃO OU CRENÇA NO ENSINO, NA PRÁ-TICA, NO CULTO E NA OBSERVÂNCIA, QUER SÓ OU EM COMUNIDADE, EM PÚBLICO OU EM SECRETO.”— Declaração Universal dos Direitos Humanos, Art. 18.

No dia 24 de fevereiro de 1960, os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos assinaram uma declaração conjunta, denominada “Carta de Brasília”, na qual se propõem a defender as liberdades fundamentais do homem, afirmando o “repúdio de tôda tentativa contra a liberdade religiosa e a limitação da expressão do pensamento.” (Item primeiro.)

Contudo, nós que não cremos que haja um milênio de paz antes da volta de Jesus, mas sabemos que as nações estarão “iradas”, segundo a expressão bíblica (Apoc. 11:18), devemos estar de sobreaviso.

Tempo virá, contudo, em que não poderemos confiar nas próprias franquias constitucionais. Diz-nos a pena inspirada:

“Quando a proteção das leis humanas fôr retirada dos que honram a lei de Deus, haverá nos diferentes países, um movimento simultâneo com o fim de destruílos. … povo de Deus — alguns nas celas das prisões, outros escondidos nos retiros solitários das florestas e montanhas — pleiteia ainda a proteção divina …” —O Con-flito dos Séculos, pág. 687.

À vista dêstes fatos, resta-nos, como obreiros de Deus, fazer diligentemente duas coisas:

  • a) aproveitar ao máximo o tempo de liberdade religiosa que ainda fruímos, não nos esquecendo dos irmãos que habitam nos países em que essa liberdade já não existe: Difundamos o Evangelho;
  • b) orar para que o Senhor abrevie Sua obra e nos prepare para suportarmos com galhardia o impacto da intolerância que está prestes a desabar sôbre o povo de Deus.