JOÃO HEUSS

(Pastor da Igreja da Trindade, Nova York)

O Pastor Heuss não pertence à Igreja Adventista, e talvez algumas de suas afirmações não possam, em sua totalidade, ser aplicadas à nossa Igreja. Contudo, cremos ser útil meditar na análise pormenorizada e na solução que dá para o pro-blema religioso de nossos dias. — Nota da Redação.

POR muito tempo senti-me desassossegado ao pensar em que nós, os pastôres da igreja, trabalhamos àrduamente sem fazer-nos perguntas acêrca do que fazemos. Cada vez mais se arraiga em mim a convicção de que muito do que consideramos natural na vida da igreja é tão contrário aos seus fins que, em realidade impede que os homens se cheguem livremente a Deus.

Bem poderia acontecer que muitas dessas coisas por que comumente nos felicitamos: aumento estatístico dos membros, construção de novos edifícios, ofertas abundantes, campanhas hàbilmente planejadas, embora em nosso orgulho humano as consideremos com satisfação, se fôrem consideradas como os únicos fins que nossas igrejas buscam alcançai, repugnam a um Deus santo.

Se isso é verdade, precisamos deter-nos bruscamente em meio das apressadas ocupações diárias da igreja florescente e meditar na sabedoria do Salmo 127,. v. 1: “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que edificam.”

Em todos nós, é-nos habitual culpar a mundanidade e o materialismo de nossa época, da indiferença pública pela religião. Minha opinião pessoal é que nenhum dos dois faz tanto dano como a circunstância de que o programa da igreja fala sem voz convincente às multidões que perecem por falta de segurança.

Então, será bom que nos perguntemos: “Onde erramos em nossa condução da igreja cristã?” Se estou certo em meu intento de compreender nossa situação, erramos nos lineamentos. A igreja local norte-americana, por exemplo, é uma instituição notável e única. Jamais houve algo semelhante na história do cristianismo, e talvez não haja nada parecido noutros países. Sua peculiaridade encontra-se em suas assombrosas realizações financeiras e de organização. Sua singularidade consiste na tendência constante para tomar equivocadamente as atividades em lugar das realizações religiosas. Considera-se firmemente a si mesma como igreja, e dedica a maior parte de seu tempo e energias a seus assuntos de negócio.

Como norte-americanos, partilhamos o feitio nacional de manejar bem as coisas. Os dirigentes de nossas igrejas e as congregações estão desejosas de trabalhar com afinco para alcançar êxito. Além disso, alegramo-nos de fazê-lo e passamos horas bem agradáveis em companhia dos demais; mas o resultado de tudo isso é que agora nos é difícil distinguir entre as atividades de fomento e as religiosas propriamente ditas. Deixamo-nos arrastar tanto pelo desenvolvimento do êxito da igreja, que para muitos se torna bastante comum identificar as atividades de negócio com as religiosas. Pagar hipotecas, construir novas igrejas, estimular os membros a que tragam novos membros e a que forneçam mais fundos, trabalhar em grupos e sociedades de uma ou outra espécie, tudo isso é admirável, mas não é religião; a grande tentação do americano ativo é confundi-las com a religião.

Muitos consideram estas atividades como sua verdadeira vida de igreja. Se a igreja está bem dirigida e alcança êxito, resulta em prazer para todos. Fomenta as boas relações. Faz a pessoa sentir que realiza alguma coisa de valor. Não resta dúvida de que contribui para a prosperidade da igreja. Não é necessário ser pessoa transformada para dela participar. Não existe nenhuma exigência espiritual interior acêrca dos méritos que tenha e dos motivos que a impulsionem. A ninguém se lhe pede que, dessa associação de negócios, olhe com olhos críticos o mundo. Enganamo-nos na direção da igreja ao dar demasiada importância às atividades de expansão, a tal ponto que quase cada igreja se ajusta sem dificuldade na cultura da vida comum da classe média. Já se não pode manter com facilidade a verdadeira natureza da igreja cristã, porque a norma convencional da vida da igreja local se interpõe constantemente.

A Igreja Depois de Pentecostes

Se a preocupação absorvente pelas atividades de expansão não é a verdadeira função da igreja local, temos o direito de perguntar: “Qual deverá ser sua verdadeira função?” É fácil responder a esta pergunta em forma idealista, mas não o é tanto o transformar uma igreja moderna de modo que predomine a sua verdadeira função. Não pretendo conhecer o segrêdo que, de forma mágica, realize esta mudança; mas estou certo de que nem, sequer nos aproximaremos da compreensão da verdadeira função da igreja local, a menos que os pastôres e os obreiros leigos estudem amplamente de novo a teologia bíblica.

Precisamos, todos, tornar a entender claramente o que era a comunidade guiada pelo Espírito Santo, que nasceu imediatamente depois de Pentecostes. O que a igreja primitiva fêz pelos membros daquele tempo, deveria estar fazendo na atualidade a sua igreja e a minha. Suas qualidades peculiares deveriam ser as que hoje distinguem nossas igrejas do mundo que nos rodeia. Seu interêsse inteiramente absorvente deveria polarizar-nos os pensamentos e as energias. A fôrça impulsora de sua ação espiritual deveria guiar-nos e dominar-nos. Devêramos fazer dêsse interêsse a norma de nossa vida e ser críticos severos de qualquer coisa que em nossa igreja não esteja em conformidade com as características predominantes.

Quais eram as características que distinguiam essa primeira igreja?

  • 1. Eram homens que haviam tido experiência pessoal a respeito de Jesus que lhes comovera a alma. Ao viver, caminhar, trabalhar, conversar, comer e falar diariamente com Cristo, a imagem do Senhor se gravara na mente dos discípulos. Durante o tempo em que Êle estêve na Terra, reconheceram que nunca haviam conhecido coisa alguma semelhante. Quando a crucifixão O arrancou de seu meio e a ressurreição O restaurou milagrosamente à vida, não puderam dar-Lhe outro nome senão o de Deus. Não lhes importava o que lhes acontecesse, já não poderiam esquecê-Lo. Êle lhes polarizara a vida.

Agora, comparemos esta condição com o têrmo médio dos atuais membros da igreja. Não é uma de nossas preocupações mais tristes o fato de que apenas um que outro tenha sequer remotamente um conhecimento pessoal da realidade de Jesus Cristo que se assemelhe ao da igreja primitiva? A verdadeira função da igreja local começa com o reconhecimento de Jesus como o Cristo vivo. A menos que a experiência dos discípulos chegue a ser a nossa própria experiência, como em realidade pode sê-lo, não acontecerá nada de muita significação religiosa nas igrejas modernas.

  • 2. A segunda qualidade que distinguiu a comunidade de Pentecostes foi a pureza de sua confiança em Deus, através de Cristo. Sua fé era tão intensa que estavam desejosos de confiar a vida às mãos de Deus. Não se inquietavam muito por sua própria conservação. Preocupavam-se por que fôsse feita a vontade de Deus. Não temiam, porque creram. Sem temor, puderam desafiar o mundo. Por motivo dêsse desafio, o mundo os escutou. Tudo isso foi possível porque tinham fé inquebrantável em Deus.
  • 3. A terceira característica dessa igreja primitiva estriba-se em que soube ser uma comunidade transbordante do Espírito. O Espírito Santo descera. Então nada era impossível. A atividade da igreja era comparável à de uma colmeia aberta. Muitos havia que entravam e saíam; mas quem chegava, fazia-o para fortalecer-se na vida da comunidade, na oração e na participação do pão da santa ceia, a fim de levar a preciosa Palavra de salvação até aos confins da Terra. Não desperdiçavam o tempo construindo edifícios, juntando dinheiro ou fazendo vida social. Seu dever era pregar a Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado dos mortos. Tudo mais ficava subordinado à proclamação das boas-novas da salvação.
  • 4. A quarta característica do cristianismo primitivo consistia no conhecimento feliz do perdão do pecado. A confiança em Deus pela fé em Cristo trouxe-lhes uma notável sensação de liberdade. As cargas da ansiedade, do temor e da culpa desapareceram do coração dos crentes. Era-lhes mais fácil vencer a tentação e ser bons. Não sòmente se sentiam limpos, mas restaurados à amizade com Deus.

Com quanta clareza se nota a falta dêsse conhecimento em nossas igrejas modernas! Não sòmente não existe senso de perdão do pecado, mas dificilmente existe conhecimento do próprio pecado. Em muitos lugares não é considerado de bom gôsto mencionar êste assunto. Não obstante, o cristão da igreja primitiva sabia que alcançara sua libertação do pecado. Sua fé e o perdão de Deus fizeram dêle um novo homem em Cristo. A maior parte de nós fica sendo o mesmo homem velho que sempre foi; e dificilmente há em nossas igrejas alguma coisa que sugira que podemos chegar a ser alguma coisa melhor.

  • 5. Por último, era uma comunidade que bem pouca importância dava a qualquer organização ou atividade que diretamente não contribuísse para a glória de Deus e para o bem do próximo. O que elogiavam numa organização era que contribuía para a adoração, o ensino e a recolta de fundos para os irmãos necessitados. Ser membro da confraria não significava um trabalho de comissão. Significava uma nova relação com Deus. Significava uma nova espécie de vida entre os cristãos crentes. Era uma gozosa esperança de que o futuro não podia ser mau. São estas as cinco qualidades básicas que desapareceram de nossas igrejas de modo muito notório. A verdadeira função da igreja é proporcioná-las. Enquanto não se cumprir essa incumbência, a igreja que pareça de maior êxito, segundo as estatísticas, será um fracasso perante Deus.

Algumas Sugestões Positivas

Declarei, já, que não é coisa fácil transformar uma igreja moderna de modo que predomine sua verdadeira função. Busquei assinalar os propósitos mais profundos de nossa verdadeira obra religiosa em contraste com uma descrição deficiente do que, inconscientemente, nossas igrejas norte-americanas chegaram a ser, em sua febre de atividade.

Em vista de meus comentários, proponho-vos, depois de um exame cabal de consciência e de muita vacilação, algumas sugestões positivas:

  • 1. Parece-me que devemos começar por um exame crítico de nossos cultos. Na maior parte são demasiado frios, impessoais e faltos de profissionalismo. O pior é que tendem a formar nos assistentes uma atitude de espectadores. Quando isso sucede, todo o poder da adoração, da comunhão com Deus fica destruído. A simplicidade e a participação da congregação devem ser um princípio fundamental. Devemos eliminar os hinos difíceis de cantar, as apresentações aparatosas dos côros, e as dissertações estranhas ou insípidas dos oradores. Devemos instruir nosso povo em muitas e diversas formas acêrca da significação, do método e da experiência da adoração. Estou firmemente convencido de que qualquer esfôrço que as igrejas locais façam para tornar menos aparatoso o culto, terá mais eficácia que qualquer outra coisa para restaurar essa igreja em sua verdadeira função.

  • 2. Em segundo lugar, podemos melhorar fazendo nova apreciação das oportunidades para ensinar. A igreja inteira é uma oportunidade excelente para ensinar as boasnovas do Evangelho. É lastimável que tantas igrejas pensem que se pode ensinar unicamente na escola dominical, na classe de confirmação ou num grupo de estudo formado por adultos. Nossos cultos são oportunidades para instruir. As reuniões dos dias úteis são outras tantas oportunidades preciosas para pregar o Evangelho e esclarecer-lhe a significação. Quando o pastor é chama-do pelos enfermos, convalescentes ou os confinados em algum sanatório, abrem-se as portas para o ensino em forma tão natural quanto podemos desejar. Os batismos, os casamentos, os funerais, são outras tantas ocasiões que podemos aproveitar para explicar e instruir. Os períodos de conselho, quando os membros vêm com seus pesares e alegrias, em busca de auxílio, podemos aproveitar também para apresentar a religião. A assembléia anual não é um acontecimento tão útil para juntar dinheiro como para ensinar os delegados, e por êles os que representam, muitos aspectos da vida e da crença da igreja. Em uma palavra, tôda a atividade da igreja deve ser considerada um plano educativo. Se se proclama o Evangelho da salvação em tôdas as suas partes não chegará a ser tanto “ruído e entusiasmo vazio de significação”.
  • 3. Quero sugerir um terceiro ponto, talvez mais revolucionário. Creio que em cada igreja é necessário um grupo de homens e mulheres judiciosos que assumam a responsabilidade de fazer três perguntas e obter as respostas.
  • a) Qual é a verdadeira tarefa religiosa desta igreja local?
  • b) Em que forma, tudo quanto é feito nesta igreja pode promover êsse verdadeiro trabalho religioso?
  • c) Até que ponto tudo quanto fazemos transforma a vida das pessoas?

Na generalidade das igrejas ninguém faz estas três perguntas básicas. Comumente os membros supõem que isso é alguma coisa de que o pastor se preocupa.

Não é possível que só êle o faça. Se é o único que se preocupa e pensa nisso, nunca o realizará. Êsse é um trabalho que corresponde também aos membros. Deve ser o tema mais amplamente discutido em tôdas as reuniões da direção da igreja. Tôda a atividade da igreja deve ser julgada pelas respostas dadas a estas três perguntas. Em muitas igrejas onde um grupo de membros leigos realiza esta investigação estão acontecendo coisas pasmosas no comportamento religioso.

  • 4. Minha sugestão final também assombrará. É convicção crescente de que nenhuma igreja pode cumprir sua verdadeira função sem que exista no próprio núcleo de sua direção um pequeno grupo de cristãos verdadeiramente convertidos, transformados e firmes. A dificuldade de muitas igrejas é que ninguém, inclusivo o pastor, está verdadeiramente transformado; mas, mesmo onde houver um pastor consagrado e abnegado não ocorrerão grandes coisas sem que se forme uma comunidade de homens e mulheres transformados.

Queremos homens serenos em sua intransigência com o mal, homens que vivam e suportem os piores sofrimentos, e que em sua comunidade revelem companheirismo cristão tão diferente e tão aceitável que seja irresistível. Essa pequena comunidade transformada, deve mostrar-se sempre desejosa de receber os que queiram partilhar de sua vida, não importando a raça nem a condição a que pertençam. Posso garantir que é assombroso ver como se pode conduzir as pessoas mais indesejáveis a uma verdadeira amizade com Cristo, quando conseguem pôr-se em contato com Êle.

Estas são umas poucas sugestões de alguém que é o último a afirmar que possui a fórmula que curará nossas enfermidades espirituais. Sem dúvida, muitos dentre vós serão capazes de encontrar formas mais eficazes para restaurar nossas igrejas locais em seus verdadeiros objetivos. Minha única súplica é que os pastôres judiciosos e os obreiros leigos pensantes, orem por estas coisas, nelas meditem e as comentem.