ARTUR L. BIETZ

(Membro da Associação Americana de Psicologia, Professor de Cristianismo Aplicado, no Colégio de Evangelistas Médicos, Pastor da Igreja White Memorial.)

CAPÍTULO VI

Disciplina Própria

“Aqui vim em busca de auxílio. Meu problema consiste em que não fui capaz de realizar as coisas que devo fazer. Recebo boas notas no colégio, mas não posso concentrar-me nos estudos durante todo o ano escolar. Procurei tôda espécie de trabalhos, mas logo me canso e busco outro. Enamorei-me de muitas senhoritas mas parece que logo me canso delas e, embora ja conte 28 anos, ainda estou solteiro. Acha o senhor que pode ajudar-me? Diga-me: Que pode fazer?” Assim me falava um jovem perplexo, que me pedira conselho.

Êsse homem representa um grande grupo de pessoas de quem pode dizer-se que sofrem de falta de disciplina própria. Êsses indivíduos desejam realizar muitas coisas, mas carecem da disciplina própria necessária para concretizar seus desejos. Os que sofrem desta espécie de debilidade são em geral egocêntricos e absorventes nas relações com seus semelhantes. Sua capacidade para enfrentar as adversidades é muito pequena. Logo que surja alguma dificuldade, dispoem-se a tudo abandonar. Combater a autoridade e recusar aceitá-la é um sintoma que se manifesta comumente entre quem tem falta de capacidade para fazer o que deve. A rotina aborrece essas pessoas, que estão continuamente buscando alguma coisa nova e diferente. Não podem cumprir ordens nem levar a cabo uma tarefa longa e monótona. A vida social torna-se-lhes desanimadora, porque se lhes afigura impossível aceitarem as pessoas tais quais são, e não formam amizades fortes e duradouras.

O mau hábito de postergar a solução dos problemas ou a realização dos deveres é uma fraqueza comum entre esta espécie de indisciplinados. Nunca se decidem a escrever as cartas que deveriam haver respondido há semanas. Em geral pagam suas contas sòmente sob pressão. A grama que deveria ser aparada hoje, é deixada para a semana vindoura. O aluno a quem falta disciplina própria, deixa a realização de seus deveres para a véspera de entregá-los e, mesmo então, ainda os faz a contragosto.

Tais pessoas sempre devem ser aguilhoadas. É-lhes difícil empenhar-se em seus próprios interêsses. Tudo quanto fazem deve ser iniciado por outrem. Em seu trabalho, fazem apenas o que se lhes diz, e nada mais.

Levantar-se pela manhã é todo um pesadelo para o indisciplinado. Tais pessoas têm inclinação para chegar tarde a todo encontro marcado. Tomam tanto tempo para preparar-se para ir à igreja, que tôda a família se sente já prejudicada quando por fim partem em direção à casa de culto. As mulheres que sabem que precisam arranjar-se e vestir-se nas primeiras horas da manhã, não deixarão para o meio-dia. Têm a sensação de culpabilidade devido à sua negligência, mas parecem incapazes de reagir.

Os indisciplinados gastam energia nas lutas subjetivas que se produzem pelas coisas que deveriam fazer, mas parecem incapazes de começar suas obrigações. Quando um dêsses indivíduos por fim começa alguma coisa, trabalha até quase matar-se, mas tampouco está certo de que se está apressando tanto. Ou não tem nada que fazer, ou trabalha como louco. O indisciplinado não possui o senso das proporções; tende a ser fanático, e, por carecer do senso de equilíbrio, vai aos extremos. Ou fica muito perto, ou afasta-se demais; ou é demasiado lento, ou rápido demais. Tais pessoas se submeterão a um regime alimentar que quase os matará de fome, ou comerão tanto que aumentarão extraordinàriamente de pêso. Há momentos em que falam demais, e outros em que não dizem absolutamente nada; são prêsa de uma felicidade eufórica, ou estão enfermiçamente acabrunhadas. Um elogio os põe em êxtase; uma crítica fá-los passar por uma quantidade de dias de comiseração própria e desesperação.

O indisciplinado é amiúde muito religioso quando se vê sustido por um ambiente religioso. Sempre age bem se fôr possível que alguém possa descobri-lo fazendo alguma coisa incorreta; mas se se muda para uma grande cidade, onde pode fazer o que lhe aprás sem que ninguém o perceba, amiúde irá onde o vento assopre. Por não ter domínio próprio, o domínio exterior, procedente de outras pessoas, é o único que pode mantê-lo direito. O novo ambiente não o converte necessariamente em mau, mas a circunstância de já não estar submetido aos antigos contrôles, põe em evidência sua falta de disciplina própria.

Se alguém quer viver bem, deve ter domínio próprio. Tanto a complacência como a restrição podem ser exageradas. Deve o indivíduo ter um bom senso de equilíbrio entre ambas. A disciplina e a preparação que são frutos das dificuldades e privações são necessárias para uma vida bem equilibrada. Não basta que o indivíduo satisfaça as suas necessidades fundamentais; estas satisfações devem ser equilibradas e controladas. Um pântano pode tornar-se em foco de infecção, e o mesmo acontece com a vida que não está arregimentada e submetida a contrôles.

A pessoa capaz de conseguir a satisfação equilibrada de suas necessidades, graças a um procedimento bem planejado, crescerá em todo o sentido e realmente viverá; estas duas coisas são sintomas de uma boa saúde mental. O indisciplinado sempre padece da maldição de querer possuir alguma coisa logo que a deseja. Sempre está buscando dez lições fáceis que o convertam em um erudito maduro. Incapaz de sacrificar um prazer imediato por um bem futuro, é vítima constante das circunstâncias. É incapaz de dominar seus impulsos com o propósito de progredir na vida. Falto de uma energia que lhe produzirá grandeza verdadeira e significativa, busca valer-se de influências políticas para alcançar postos que lhe outorguem a aparência de um valor pessoal que não possui.

A falta de disciplina própria pode originar-se em alguns desgraçados incidentes ocorridos na infância. O adulto a quem falta domínio próprio e equilíbrio, sofre os efeitos do desequilíbrio que se manifestou em seu lar entre o amor e a direção. Alguns pais administram disciplina severa sem nenhuma manifestação de amor, e outros revelam sentimentalismo sonso, sem nenhuma capacidade para controlar e dirigir. Em ambos os casos, será difícil para a criança o dominar-se ela na vida ulterior.

Para que seja eficaz a disciplina na infância, deve manter o equilíbrio com amor e compreensão; igualmente deve o amor equilibrar-se com correção e direção. É verdade bem estabelecida que ao dar um corretivo quando um mau ato é praticado, e oferecer uma recompensa quando feita alguma coisa boa, são as melhores formas de ensinar e contribuir para o crescimento espiritual e psíquico da pessoa. A liberdade demasiada priva a criança do conceito de autoridade, necessário para a sua disciplina. Pôr ênfase demasiada nas ordens negativas, é sem dúvida pernicioso também. Ainda assim, na educação de uma criança deve haver certa quantidade de orientação direta e sem transigências. Se não há suficiente proteção externa e domínio na infância, não haverá suficiente domínio próprio para que o adulto seja disciplinado.

Bom seria que lançássemos um olhar aos meios pelos quais o domínio externo da infância se converte no controle interno e na disciplina própria da idade adulta. Muitos pais são estritos no domínio externo, sòmente para descobrir que os filhos, uma vez crescidos, lançam às urtigas tôdas as precauções da infância. Que anda mal nesse sistema? O domínio externo imposto pelos pais nunca será aceito sem que êstes sejam amados e apreciados. Os pais que foram estritos na disciplina, sem prodigalizar aos filhos o amor, a compreensão e o afeto que merecem, descobrirão que, em forma de protesto mudo, êsses filhos se desligarão de tôdas as restrições que êles lhes tenham imposto. Tudo quanto os pais estimam e apreciam, será rechassado pelos filhos, porque não amam os seus progenitores. Visto que os filhos não se sentiram amados nem compreendidos dos pais, e dado que não têm nenhum sentimento de afeto para com êles, é-lhes sumamente fácil desenvencilhar-se, sem nenhum remorso, de todos os regulamentos que os pais trataram de impor-lhes. Ao fazê-lo, sentem-se aliviados de uma carga. Os pais, que se haviam convertido num fardo, por nunca haverem amado os filhos, vêem-se desprezados juntamente com os regulamentos, e os filhos tratam de esquecer os incidentes desagradáveis da infância.

Lancemos agora um olhar às crianças que crescem entre adultos que têm domínio próprio. Tais crianças recebem direção, correção e amor. Os pais têm regulamentos e domínio, mas dão os primeiros e exercem o segundo, com compreensão e amor. As crianças aprendem a amar os pais e a nêles confiar. Visto alimentarem sentimentos profundos para com os pais, estão também intimamente convencidos da justiça dos regulamentos que lhe são impostos. O conhecimento do que é justo, divorciado do sentimento de amor, é completamente ineficaz. A pessoa tem disciplina própria porque está intimamente convencida disso e há, além disso, sentimentos afetivos profundamente ligados a essa convicção, e dêste modo sente-se impulsionada a fazer o que sabe ser correto. O simples conhecimento carece totalmente de motivos. Saber o que é correto não é garantia de que se vá agir corretamente. Os sentimentos relacionados com o que é correto e incorreto, surgem na criança sòmente como resultante do pro-fundo amor e dos afetos que a ligam aos pais.

Os que procedem mal, em geral não ignoram o que é o bem. Qualquer degenerado poderia dar explicação de qual deveria ser o comportamento de um bom cristão. Não lhes falta o conhecimento quanto a como deva viver o homem, mas estão totalmente desprovidos de afetos nesse sentido. Tais filhos agirão mal e amargurarão o coração paterno, mas todo o mal que façam não lhes tirará um segundo sequer de sono. São capazes de agir mal e dormir como crianças inocentes, porque não têm o senso do mal e do bem, embora possam explicar claramente a diferença existente entre ambos.

A disciplina própria depende, portanto, e sobretudo, do amor e da orientação recebidos no lar. O conhecimento do correto, unido ao profundo amor aos pais, que conduzirão por um caminho correto, dão em resultado uma vida de domínio próprio. Quando um filho ama os pais, os regulamentos dêles são por êle intimamente aceitos, e o sentimento vinculado com êsses regulamentos garantirá que a pessoa proceda de conformidade com o que sabe ser correto.

Bem faríamos com analisar o procedimento duma criança mimada. Essa criança possui pais demasiado suaves e indecisos quanto a como devem dirigi-la. Os pais que se manifestam temerosos de agir quando corrigem os filhos, não imprimem nem convicção nem certeza aos seus atos, e, portanto, não impressionam a mente da criança. Seja o que fôr que faça o filho para atormentar os pais, não importa quão incômodo seja o seu procedimento, não pode fazer-lhes retrair o seu afeto.

Nos casos em que a disciplina é assim indecisa, a criança não recebe ajuda alguma do sentimento de culpabilidade que surge espontaneamente como resultante de seu mau procedimento. Essa criança nunca se sente agradecida aos pais por sua atitude de brandura que lhe manifesta, visto ser mantida em contínuo estado de suspensão devido aos seus sentimentos íntimos de culpabilidade, e ainda se ressente de ser deixada tão só. A excessiva brandura dos pais dá em resultado um invisível sentimento de insegurança. Deixa a criança totalmente abandonada a si mesma antes que seja capaz de enfrentar adequadamente a vida; deixa a criança a mercê de suas próprias emoções tormentosas, as quais não recebem alívio devido a que perdeu o favor dos pais. As crianças mal educadas albergam sentimentos malignos para com os pais. Desgostosas com os adultos por motivo de sua brandura, fazem ostentação dos mais perigosos tipos de sanha contra êles.

Ao filho de um pai demasiado complacente nunca se lhe pediu que fizesse coisa alguma que o desagradasse. Certa vez em que o pai lhe pediu que se lavasse para tomar a refeição, a criança desandou em imprecações e deu rédea sôlta a uma ira violenta. Essa criança havia sido arruinada pela debilidade paterna. Seu desejo de chegar à plena maturidade tinha por base a idéia de deixar o pai com preocupações tais que lhe manifestassem ressentimento ante seu mau comportamen-to. O que essa criança estava em realidade pedindo ao pai era que resolvesse suas lutas mercê de um procedimento mais positivo e corretor. Suas imprecações e juramentos eram em realidade um pedido de que lhe fôsse administrada disciplina que lhe minorasse a ansiedade vinculada ao sentimento de culpabilidade que tão profundamente a afetava.

Alguns pais dizem:

— O que você quer é uma surra. Continue a aborrecer-me e irá recebê-la!

Ao dizer isto, realmente têm razão. Uma ilustração interessante do que estamos dizendo ocorreu certa vez com uma criança de nove anos, que estava recebendo tratamentos para a gaguice, defeito psicológico que tinha como causa os sentimentos sempre reprimidos da criança. O pai e a mãe eram almas ternas, e êsse era o seu único filho. Certa vez pilharam a criança furtando dinheiro. A mãe tratou de desculpar o procedi-mento do filho, dizendo que não sabia que êsse dinheiro pertencia a outra pessoa. A criança, no íntimo da alma, não desejava solucionar o problema em forma tão disparatada.

— É claro que eu sabia de quem o dinheiro era! disse. Porque não me deram uma surra? Quem me dera que o tivessem feito!

Essa criança, inconscientemente, estava pedindo que se lhe desse disciplina e correção, mas foi-lhe penoso recebê-las.

As crianças sabem quando estão procedendo mal, e êsse conhecimento lhes infunde um sentimento de culpabilidade. Por isso não se respeitam a si mesmas. Quando os pais não tomam em conta o seu mau procedimento, imediatamente perdem por êles todo o respeito. Esta é a causa de que as crianças percam o respeito aos pais complacentes. Tôdas se mostram conscientes dêsse mesmo desejo de alcançar alivia de seu sentimento de culpabilidade, tratando de buscar castigo em sua vida adulta. Dizem:

— Se apenas houvessem feito alguma coisa . . . Se me tivessem dado uma surra, ou coisa que o valha!

A consciência culpada trata de alcançar alívio para o seu sofrimento, buscando correção. Certa tarde houve necessidade de dar um corretivo a uma menina. Ao ser ela levada, à noite, para a cama, lembrou-lhe a mãe que fôra desobediente. A criança respondeu:

— Maria foi desobediente. Mamãe lhe deu uma surra. Agora não falemos mais nisso.

A disciplina resolvera o problema, e já não havia necessidade de falar mais no assunto. A criança alcançara alívio e tudo ia bem.

As crianças necessitam de ter a segurança que lhes infundem os pais que sabem lidar com elas quando parece impossível mantê-las em sujeição. Quando as crianças sentem que são superiores aos pais, sentem-se desgraçadas. Conta-se o caso de certo rapazinho chamado Eduardo, de sete anos, que sofria graves desajustamentos em sua personalidade. O conselheiro da escola conquistara o res-peito da criança, mostrando que sabia que fazer quando o rapaz se tornava insuportável.

“Eduardo parecia muito satisfeito, e demonstrava seu contentamento por seu conselheiro poder protegê-lo. Seu pai, dizia êle, nunca teria podido fazê-lo. Contou como costumava lutar com o pai, e como em geral conseguia vencê-lo seis vêzes em sete. Prosseguiu contando que o pai não era tão bom lutador quanto êle; era tão fraco que, mesmo nas poucas vêzes em que vencia, apenas podia pôr contra o solo ambos os ombros de Eduardo. Não obstante, Eduardo era pouco desenvolvido para a sua idade. O pai fôra oficial da armada e fazia pouco que abandonara o serviço ativo com condecorações que lhe atestavam o valor.

“Três meses de escola bastaram para que Eduardo admitisse francamente que sentir-se superior a seu pai era alguma coisa bem pouco consoladora, que a verdadeira vantagem para uma criança consiste em crer que os adultos lhe são superiores e, portanto, muito capazes de protegê-los. Um dia disse êle a êsse mesmo conselheiro que êle sabia cantar tôda espécie de canções campesinas, e acrescentou:

— Sou muito bom nisso, e essa é a dificuldade!

Perguntou-lhe o conselheiro em que consistia o mal, ao que respondeu:

— Papai não é muito bom nisso: essa é a dificuldade!

Não há quem não tenha ouvido uma criança dizer:

— O meu pai ganha do de você!

As crianças precisam sentir que seus pais são suficientemente fortes para protegê-las.

A segurança da criança repousa na capacidade dos pais para protegê-las e, necessàriamente, dominá-las. Também encontramos os lares em que se executam as coisas em conformidade com o ritmo e os interêsses das crianças, como se não houvesse presentes adultos sérios. Lares tais não estão em condição de proporcionar saúde emocional, porque são lares artificiais, em que os pais agem insensatamente e permitem que as crianças dirijam a vida dos adultos. A insegurança resultante é grande, pois os protetores das crianças precisam estar ausentes, e estas se sentem confundidas no tocante à forma em que êste mundo funciona e quanto à sua própria capacidade e importância.

Dois fatôres são necessários para educar a criança: amor e direção. Quando dirigida sem manifestação de amor, a criança desenvolve-se anormalmente; quando se revela amor a uma criança, sem o menor intento de dirigi-la, disso também resulta anormalidade. Tôda direção deveria dar-se com o propósito de desenvolver o domínio íntimo e a autodisciplina. Não é possível que se desenvolva o domínio, a menos que se haja estabelecido primeiramente o controle externo. Os regulamentos do lar chegam a ser efetivos no íntimo da alma da criança graças à amorosa relação com os pais, e dêste modo os hábitos de autodisciplina darão em resultado que a criança cresça até chegar a ser uma pessoa que possa desenvolver-se só na vida, dotada de domínio próprio e capaz de alcançar bom êxito.

As crianças estão ligadas aos pais pelo afeto e a autoridade, e esta se manifesta em última instância em alguma espécie de disciplina. Os laços afetivos são muito mais íntimos que os produzidos pela mera autoridade, mas não são opostos uns aos outros. Entretanto estou ainda por ver a criança cujo afeto fique prejudicado pela correção justa e sadia, e pela direção. Os fatos refutam o falso conceito de que as crianças se ressentem com a correção.

As crianças bem educadas não se ressentem quando se lhes administra justiça; ao contrário, ressentem-se com a injustiça e a excessiva severidade. Sem nenhum rasgo de malícia nem inflexão de ressentimento, as crianças costumam fazer declarações desta espécie: “Mamãe me deu uma surra esta manhã porque eu me pus a sapatear e, quando ela me chamou, lhe respondi que não iria.”

Sem a faculdade da disciplina própria, ninguém pode conservar a saúde mental e viver bem.